Mataram o blog Outro Deus (ou deus). Eu e outros leitores perguntamos por quê, mas não fomos respondidos. Os dois pastores disseram que "aprenderam lições", mas não explicaram quais... Bom, eu, que não me conformo de ter perdido esse espaço de discussão (que prometia), vou ter de me contentar com explanar mais sobre o que já foi dito. (Ok, isso é uma ironiazinha boba.) Falei pouco sobre o post de Gondim que trata da Bíblia, e acho que o assunto merece mais. Vamos lá. (O que ele escreveu está em vermelho.)
1. A Bíblia não pode ser lida cientificamente. É preciso aprender a lê-la como narrativa simbólica da história, mítica e poética.
Até aí, tudo bem. O cartesianismo - que originou o pensamento científico - é ruim para a filosofia e para qualquer reflexão teológica, porque separa o racional do emocional, a mente do coração, o sujeito que pensa da coisa pensada, engendrando oposições falsas. E a Bíblia é mesmo recheada de símbolos, sobretudo Gênesis, Jó, Cantares. Mas essa afirmação deveria ter sido matizada, porque há uma grande distância, por exemplo, entre o livro de Cantares e as cartas de Paulo. Não há como ler as cartas de Paulo como "narrativa simbólica da história, mítica e poética", porque são textos argumentativos com um objetivo muito preciso: conclusões teóricas e práticas do AT e dos ensinamentos de Jesus. Paulo fez um esforço maravilhoso para sistematizar o que Cristo ensinou oralmente aos apóstolos, alicerçando a fé e a justificação na graça de Deus e ampliando Suas palavras para a organização da igreja, a vida conjugal, o trato com os irmãos. Os textos argumentativos falam mais à mente que à imaginação, organizando e estruturando o pensamento. Se tiverem conteúdos "simbólicos e míticos", eles visam a reforçar uma idéia, não constituindo a característica principal desse tipo de texto.
O esforço de tornar os Livros Sagrados um só texto é irreal. Não se pode querer fazer Abraão concordar com Paulo, e nem o Qohélet - Eclesiastes - com Tiago. A Bíblia não é só um livro, mas vários e eles não são homogêneos entre si. Seus autores discordam em vários assuntos.
Aqui já temos cheirinho de heresia. Se a Bíblia não é só um livro (o que aliás é ridículo, pois ela é, sim: senão, teríamos que desmontá-la toda), seguem-se várias conclusões que abalam o que estrutura nossa fé: por que ler a Bíblia como um livro só (começo e fim)? por que considerar a Bíblia Palavra de Deus, se ela contém contradições? Se eu levar esse raciocínio ao absurdo - isto é, for até o fim em todas as suas possíveis conclusões - , acabarei afirmando que não vale a pena crer em Cristo, porque a Bíblia inteira aponta para Cristo: se ela não é "uma só", as palavras contidas nela podem muito bem estar todas erradas, e eu estou perdendo meu tempo acreditando ter vindo da parte de Deus um livro que é apenas de homens. Em resumo: questionar a unidade da Bíblia é questionar a revelação divina sobre os homens que a escreveram. Desmonta todo o alicerce da nossa fé. Depois disso, como assistir tranqüilamente a uma pregação de Gondim, visto que ele vai abrir a Bíblia lá na frente crendo que ela não é uma só? Não sei se ele pensou direitinho em todas as conclusões possíveis do que afirmou.
2. A Bíblia não é um livro que se propõe uma revelação codificada e sistematizada de Deus. Ela mostra as percepções de pessoas, tribos, povos e, principalmente, do povo judeu sobre o cuidado de Deus para com seu povo. Ela não revela como Deus construiu a história, mas como os homens o fizeram e como Deus não os abandonou quando agiram mal. Muitas vezes, a compreensão do povo sobre Deus se mostrará ambígua, porque os homens são contraditórios.
"Codificada e sistematizada" realmente não, porque ela não é um tratado de filosofia - ela é bem mais que isso, pois um tratado de filosofia só pode apresentar conceitos, enquanto a Bíblia se propõe a apresentar uma pessoa: Deus, na figura de Jesus Cristo. A revelação de Deus na Bíblia é a revelação de uma pessoa que se apresenta aos homens, dizendo e fazendo coisas fantásticas. As "percepções" dos homens na Bíblia apontam todas para o Deus que hoje pudemos conhecer: onisciente, onipresente, onipotente, apaixonado pela humanidade, bom, gracioso, misericordioso, tardio para irar-se e disposto até a morrer por nós. Tais percepções se unem naquilo que é importante sabermos de Deus, e nisso a Bíblia é de uma unidade impressionante. Toda ambigüidade só se encontra na cabeça de Gondim, que, tal como Voltaire sobre uma tragédia de seu tempo, ficou questionando os desígnios de Deus sobre o Tsunami: "Como pôde um Deus de amor permitir uma coisa dessas?" Ora, bastava ele ir à Bíblia, que ele vê como fragmentária, e se render à evidência: o Deus do AT e o Deus do NT são um só. Deus é ao mesmo tempo criador e pai. Ele nos criou, Ele dispõe de nós como quer, de acordo com Sua infinita sabedoria. Trememos diante do criador e quedamos tranqüilos diante do Pai: eles são a mesma pessoa, mas com esses dois aspectos, que não são opostos, mas complementares. "Deus deu, Deus tomou: bendito seja o nome do Senhor." Como pode a compreensão de Deus Pai abalar a compreensão do Deus criador? Não entendo: para mim, são um só, e se um dia Ele resolvesse fazer um Tsunami na minha vida, eu seria muito burra de questionar Seu amor e bondade. Eu sofreria muito, tal como Jó, mas lhe pediria todos os dias para me explicar o sentido daquele Tsunami, em um esforço de integrá-lo na compreensão de minha vida como um todo.
3. A essência do ser de Deus continua um mistério para a humanidade. O que se conhece é seu cuidado - pathos - divino. Portanto, toda especulação sobre o ser absoluto de Deus deve ser considerada apenas especulação.
Gondim sofre de uma doença do pensamento, descrita por John M. Ellis em Literature Lost como "lógica do tudo ou nada". Nesse raciocínio ela se expressa assim: “se eu não posso saber tudo sobre Deus, logo tudo o que disser sobre Ele não passará de mera especulação”. O caminho do meio - posso não saber
tudo sobre Ele, mas
algo de objetivo e verdadeiro é possível saber - não lhe passa pela cabeça. Não admira: Ellis expõe essa lógica para afirmar que todo o pensamento moderno está tomado por ela. Os principais autores da modernidade teórica têm a mente estragada por essa incapacidade de enxergar nuances, e por isso dizem e repetem besteiras sem fim como "a verdade não existe", "tudo é subjetivo", "o sentido nunca é um só" etc. etc. Leio e ouço isso há mais de dez anos de educação superior. Ora, Gondim gosta de Marx, Nietzsche, Freud, Sartre "e outros"; Gondim se afina com a Teologia da Libertação; logo...
Mas não preciso ir tão longe: basta dizer que "especulação sobre o ser absoluto de Deus" faz tanto sentido como "especulação sobre o ser absoluto de Norma Braga". Uma pessoa está aí para ser conhecida, não para se oferecer como objeto teórico.
Gondim, se você puder me ler agora, entenda, por favor, algo que tem sido uma conclusão minha depois de anos estudando os autores modernos: a fragmentação da modernidade não é um antídoto para o cartesianismo. Os autores modernos propõem que seja assim, mas não é. A modernidade apenas aprofunda o fosso que Descartes cavou, só que, em vez de exaltar a razão, como era antes, resolve exaltar o outro lado, o lado desprezado pelo cartesianismo. A única coisa que enfrenta o cartesianismo com vigor é a unificação daquilo que ele separou. É saber que o universal não prescinde do particular, o objetivo do subjetivo, o abstrato do concreto, mas que são duas pontas da estrutura do pensamento humano. Escolher uma delas é aleijar a mente. Veja: a modernidade escolhe sempre o particular, o subjetivo, o concreto. É por isso que ela aceita um Deus pessoal, mas não um Deus que traz princípios morais objetivos para a humanidade. É por isso que hoje entendemos com facilidade um Deus de amor, mas não um Deus irado (antigamente era o oposto). É por isso que precisamos, hoje, com a mente de Cristo (presente da salvação), jogar fora esse lixo moderno que é apenas a doença vista por outro lado, e trabalhar com a pessoalidade de mãos dadas com a universalidade. Precisamos elaborar teoricamente, com a ajuda de outros autores, aquilo que restabelece a saúde do pensamento e dá suporte à nossa fé, para nosso próprio bem e o bem de muitos que virão depois de nós. Se Deus assim o quiser e permitir, essa será a tarefa de minha vida.