30 julho 2008

O Senhor dos Anéis

Não participei da euforia geral nas salas de cinema, mas deixei para ver os DVDs em casa. Assisti a todos quase de uma vez só. Fiquei emocionada até nas cenas do making of. O que mais me tocou foi a grande amizade que os personagens demonstravam uns pelos outros, corroborando aquela frase de Jesus: "Não há amor maior do que este: dar a vida por seus amigos." No grupo que se arriscou para ajudar Frodo, todos colocaram o amor pelo hobbit acima de suas próprias vidas. Não pôde deixar de me ocorrer que faltava ao homem moderno essa ousadia de aventuras em nome de um bem maior.

Comprei então uma edição completa em inglês de Senhor dos Anéis. Fiquei feliz por conseguir ler de modo fluido, quase sem recorrer ao dicionário. E, em um diálogo singular que tive com uma amiga esses dias, tentei explicar minhas reações à leitura de The Hobbit:

- Parei naquela cena em que o mago Gandalf visita Frodo. É estranho mas, junto com o prazer da leitura, eu sinto o tempo inteiro uma dor profunda, como se fosse infinita.

- Isso é como ele descreve a dor que sente antes de morrer - respondeu ela. - Uma dor infinita, que não sara nunca.

Eu não me lembrava mais dessa passagem no filme. Na verdade, nem sei se está lá. De qualquer modo, acho tão impressionante ter percebido a história do anel como algo implicado a minha própria vida, ao ponto de expressar com as mesmas palavras a maior dor do personagem, que corri para registrar isso em post. Ainda escreverei mais sobre o romance.

20 julho 2008

O bode marxista e o bode nazista

Pequena explicação prévia: O mecanismo do bode expiatório permite enxergar o mal unicamente no outro, visando sua destruição. É uma espécie de "teatro purgativo". Quando ocorre no nível da linguagem, usa-se a metáfora como um processo facilitador: a (des)razão coletiva escolhe certas figuras malignas como “mais más que outras”, e quem se vale do mecanismo só precisa escolher essa figura e aplicá-la indiscriminadamente ao outro odiado.

O melhor exemplo disso é Hitler. Sim, ele era de fato mau, muito mau, mas hoje sua figura é utilizada para absolver outros tiranos tão maus quanto ele. Erros históricos crassos opuseram o nazismo ao comunismo (enquanto, para o historiador Alain Besançon, ambos não passam de gêmeos heterozigotos) e o abusivo uso comunista do mecanismo estendeu-se à mentalidade de nossa época. Hoje, Hitler é o mal absoluto, não tem para ninguém. (Alguns gostam de citar Bush, mas não o fazem com a mesma força.) E, quando toda a caracterização do mal é despejada em alguém – uma espécie de imitação parasitária da ira divina – , muitos saem absolvidos do outro lado. Geralmente, Lênin, Stálin, Che Guevara, Mao etc. etc. Assim, é fácil perceber por que os conservadores costumam ser insultados o tempo todo de “fascistas”, quando o próprio comunismo deveria receber a denominação comum a ambos os sistemas, segundo Hannah Arendt: totalitário.

Saiu hoje no Estadão: “Amorim diz que ricos mentem como Goebbels”.

O título é perfeito. Mas, antes de explicar por quê, deixem-me resumir a matéria.

Indignado com o que julgou injustiça nas negociações da Rodada Doha sobre a liberalização comercial dos mercados agrícolas, o chanceler brasileiro Celso Amorim afirmou que a estratégia dos países ricos era semelhante à do ministro Goebbels, responsável pela desinformação no regime nazista. “Goebbels sempre dizia que, quando se repete uma mentira muitas vezes, ela se torna verdade”, citou. E completa: “Quando eu vejo o que é dito sobre a liberalização no setor agrícola e no setor industrial, não tenho como não me lembrar de Goebbels. Isso precisa ser desmascarado e não podemos ter um acordo baseado na desinformação.”

A recepção dessas palavras foi a pior possível, causando um acidente diplomático. Nos EUA, a representante de Comércio da Casa Branca Susan Schwab, filha de sobreviventes do Holocausto, desabafou: “É um ataque pessoal e baixo”. O Itamaraty chegou a enviar pedidos de desculpas, mas os ânimos ainda estão longe de se acalmar.

Agora, volto à minha análise. Por que o título da matéria do Estadão é perfeito? Pelo seguinte: ali estão expressos os dois lados do mal-entendido. Trata-se de um flagrante exemplo de conflito calcado no mecanismo do bode expiatório. Explico. De um lado, Amorim desenvolve um argumento sustentado pelo bode marxista (os bons são os pobres oprimidos, os maus são os ricos opressores) para enfatizar o que julga uma injustiça. Seu grande erro foi recorrer a um exemplo histórico associado ao bode expiatório supremo, o nazista, para firmar posição. Ele se sairia bem se, com tato, escolhesse palavras que sugerissem apenas o bode marxista – porque os “maus” representados por esse bode ainda costumam aceitar o papel com culpa assumida. Ou seja, o bode marxista “cola”. Porém, ao colocar um bode na pele do outro, o chanceler escandalizou os representantes dos “países ricos” e meteu-se em uma enrascada, porque entre eles havia uma vítima verdadeira do totalitarismo nazista. Apenas sua presença foi suficiente para desacreditar a estratégia.

Enfim, entendi que Amorim não quis trazer o nazismo para a discussão. Mas, ao levantar esse que é o bode mais pesado, feriu susceptibilidades bastante reais. Vai ser difícil sair dessa.

18 julho 2008

Billy Joel - To make you feel my love

"The winds of change are blowing wild and free." Uma das composições mais lindas de Bob Dylan gravada por Billy Joel. Enjoy!

13 julho 2008

Minha pequeníssima história da arte moderna


No poema de abertura de seu livro sobre o mal - e não por acaso meu preferido - , Charles Baudelaire já vai logo avisando: se você acha que esses males todos aqui não lhe dizem respeito, está enganado, hipócrita leitor, meu semelhante, meu irmão. Mas a poderosa assertiva de depravação total se desvia de promessas de salvação ao longo de cada poema seguinte, rumo à construção de uma outra (e bastante particular) teologia: se não podemos evitar o mal, façamos arte com ele. Não há salvação, mas uma espécie de alquimia: “Você me dá lama, eu lhe devolvo ouro”, declararia mais tarde o poeta, enquanto, depois de baixada a poeira dos processos jurídicos, críticos subseqüentes seriam quase unânimes ao declarar que, a partir de Baudelaire, a beleza estava enfim independente da moralidade.

Quando chega Duchamp com sua privada ridiculamente assinada, seu chinelo sujo de sêmen, sua Monalisa de bigode, essa primeira dissociação entre o belo e o bem se desdobra em várias. A arte é declarada independente não só da moral, mas da técnica, da autoria e sabe-se lá de que mais. Torna-se questão de espaço e contexto: afinal, é algo inteiramente arbitrário que desloca a roda da bicicleta para o campo da exposição. A força motriz dsse “algo” (os autodeclarados artistas, os marchands, os donos de galerias) detém o supremo poder de decisão sobre o que será digno do olhar apreciativo (ou depreciativo) do outro. O objeto da estética se pulveriza cada vez mais.

Hoje, não causa espanto a redução desse objeto a uma idéia. Por isso, nunca foi tão difícil, para os espíritos minimamente teoréticos, falar dele de modo ao menos razoável. Sua singularidade, afirma-se, é sempre o que escapa: o “plural”, o “difuso”, o “desconhecido”. Essa vaguidão, ou vaguidade, ou vagueza, pode cansar de morte os estudiosos finos, mas animar em definitivo os prolixos divagadores (algo bastante francês, reconheço – mas não para mim, que busco deles outra coisa) e os carnavalescos (algo mais brasileiro: a mescla dos dois é o que se encontra a rodo nas faculdades de letras). Affonso Romano de Sant'Anna cita muitos exemplos impressionantes dessa arte como idéia (Desconstruir Duchamp), e então vem Bruno Tolentino, que quase conheci em 2003, e publica nesse mesmo ano os poemas de O mundo como idéia. Não pude perguntar-lhe pessoalmente se esse livro não era, em alguma medida, uma resposta ao pontapé inicial dado (ou inspirado) pelo velho Baud.

Se não serve para instruir nem enlevar ninguém, pelo menos essa minha pequeníssima história da arte moderna explica por que, ainda em plena ressaca pós-tese, ultimamente eu me vejo pouco interessada por pesquisas estéticas e me volto para outros assuntos. Mas que o leitor (meu semelhante, meu irmão) não se engane: ainda que eu não trate quase nunca do tema neste blog (viu, Guilherme Carvalho – demorei mas respondi, hein?), a literatura é desde a infância, e continua a ser, minha paixão primeira.

08 julho 2008

Dois antídotos

Jesus Cristo personifica o único real e válido esforço de reintegração do ser humano consigo mesmo, com seu próximo e com Deus. Todos os demais são idolatria – e, dentre eles, a idolatria mais mortífera é aquela que nos faz tirar os olhos de nossas divisões internas para enxergá-las apenas externamente, como fruto de uma cosmovisão esquemática dualista-moralista totalmente arbitrária, composta de uma dicotomia rígida que se distancia da realidade. No cristianismo, o mal está no interior e é intrínseco à natureza humana desde a queda. No esquema dicotômico idólatra, o mal é apenas exterior, encarnando-se e cristalizando-se em todo aquele que não adere à cosmovisão. No cristianismo, todos nós somos opressores ou oprimidos dependendo de cada situação, mas sobretudo pecadores, porque o mal toma múltiplas formas. No esquema idólatra, o opressor tem sempre o mesmo endereço; é culpado por recusar-se à adesão e por toda forma de expressão pública dessa recusa.

O cristão se reintegra em Jesus, confessando-se pecador e recebendo perdão. O idólatra comunista, socialista e/ou politicamente correto jamais reconhece seu próprio mal, mas se sente reintegrado na doutrina que prega: acabem-se os opressores e o mundo será transformado. O cristão morre e ressuscita em Cristo; o comunista mata ou neutraliza o outro. Não há síntese possível entre esses dois antídotos para as divisões humanas. Se você se sente à vontade como cristão comunista, algo está errado. Das duas, uma: ou seu comunismo se resume a sentimentos legítimos mas mal direcionados de preocupação e solicitude com relação aos menos favorecidos – e você precisa compreender que comunismo não é isso – , ou você está usando as instituições cristãs como uma casca religiosa para embelezar aquilo em que crê de fato. No primeiro caso, alguém o enganou; busque informação. No segundo caso, você é um enganador, e terá de prestar contas a Deus naquele dia.