Pequena explicação prévia: O mecanismo do bode expiatório permite enxergar o mal unicamente no outro, visando sua destruição. É uma espécie de "teatro purgativo". Quando ocorre no nível da linguagem, usa-se a metáfora como um processo facilitador: a (des)razão coletiva escolhe certas figuras malignas como “mais más que outras”, e quem se vale do mecanismo só precisa escolher essa figura e aplicá-la indiscriminadamente ao outro odiado.
O melhor exemplo disso é Hitler. Sim, ele era de fato mau, muito mau, mas hoje sua figura é utilizada para absolver outros tiranos tão maus quanto ele. Erros históricos crassos opuseram o nazismo ao comunismo (enquanto, para o historiador Alain Besançon, ambos não passam de gêmeos heterozigotos) e o abusivo uso comunista do mecanismo estendeu-se à mentalidade de nossa época. Hoje, Hitler é o mal absoluto, não tem para ninguém. (Alguns gostam de citar Bush, mas não o fazem com a mesma força.) E, quando toda a caracterização do mal é despejada em alguém – uma espécie de imitação parasitária da ira divina – , muitos saem absolvidos do outro lado. Geralmente, Lênin, Stálin, Che Guevara, Mao etc. etc. Assim, é fácil perceber por que os conservadores costumam ser insultados o tempo todo de “fascistas”, quando o próprio comunismo deveria receber a denominação comum a ambos os sistemas, segundo Hannah Arendt: totalitário.
Saiu hoje no Estadão: “Amorim diz que ricos mentem como Goebbels”.
O título é perfeito. Mas, antes de explicar por quê, deixem-me resumir a matéria.
Indignado com o que julgou injustiça nas negociações da Rodada Doha sobre a liberalização comercial dos mercados agrícolas, o chanceler brasileiro Celso Amorim afirmou que a estratégia dos países ricos era semelhante à do ministro Goebbels, responsável pela desinformação no regime nazista. “Goebbels sempre dizia que, quando se repete uma mentira muitas vezes, ela se torna verdade”, citou. E completa: “Quando eu vejo o que é dito sobre a liberalização no setor agrícola e no setor industrial, não tenho como não me lembrar de Goebbels. Isso precisa ser desmascarado e não podemos ter um acordo baseado na desinformação.”
A recepção dessas palavras foi a pior possível, causando um acidente diplomático. Nos EUA, a representante de Comércio da Casa Branca Susan Schwab, filha de sobreviventes do Holocausto, desabafou: “É um ataque pessoal e baixo”. O Itamaraty chegou a enviar pedidos de desculpas, mas os ânimos ainda estão longe de se acalmar.
Agora, volto à minha análise. Por que o título da matéria do Estadão é perfeito? Pelo seguinte: ali estão expressos os dois lados do mal-entendido. Trata-se de um flagrante exemplo de conflito calcado no mecanismo do bode expiatório. Explico. De um lado, Amorim desenvolve um argumento sustentado pelo bode marxista (os bons são os pobres oprimidos, os maus são os ricos opressores) para enfatizar o que julga uma injustiça. Seu grande erro foi recorrer a um exemplo histórico associado ao bode expiatório supremo, o nazista, para firmar posição. Ele se sairia bem se, com tato, escolhesse palavras que sugerissem apenas o bode marxista – porque os “maus” representados por esse bode ainda costumam aceitar o papel com culpa assumida. Ou seja, o bode marxista “cola”. Porém, ao colocar um bode na pele do outro, o chanceler escandalizou os representantes dos “países ricos” e meteu-se em uma enrascada, porque entre eles havia uma vítima verdadeira do totalitarismo nazista. Apenas sua presença foi suficiente para desacreditar a estratégia.
Enfim, entendi que Amorim não quis trazer o nazismo para a discussão. Mas, ao levantar esse que é o bode mais pesado, feriu susceptibilidades bastante reais. Vai ser difícil sair dessa.
7 comentários:
Norma, querida,
estou vendo que vc está achando novamente um tempinho para o velho vício virtual do Blog.
Pena não estou tendo ainda um tempo para ler com calma e tentar dar algumas alfinetadas em seus escritos...
Mas tenho acompanhado que está pintando algumas discuções.
Vejamos o que os próximos dias me trazem.
Abrçs,
Roger
Seria melhor ele ter dito que ricos são como o poder Bush e deixar a interpretação livre para quem quisesse. A gente aqui iria interpretar como "Destroem o que não conseguem acordo". Eles lá já interpretariam como "Quão fortes e determinados são os ricos".
Como dizem num programa humorístico brasileiro: "olha o naipe..."
Criou mesmo um super-hiper mal-estar esta declaração do Amorim. Tá certo que tem que defender o lado do Brasil, mas precisa moderar né.
O pior é que, segundo o Reinaldo Azevedo, o lado do Brasil está certo em reclamar de certos aspectos da negociação. Mas isso tinha de ser feito "sem bode nenhum", ou seja, sem os vícios de linguagem marxistas, sem ressentimentos, sem forçação de barra nem chantagem emocional. Faltou à mente brasileira a CABEÇA FRIA para NEGOCIAR em termos bastante tranqüilos: "Essas condições não favorecem meu país, logo preciso propor outras. Se os senhores não aceitarem, lamento, mas prefiro desistir de nosso acordo." Seria tão simples.
Mas o mecanismo do bode expiatório serve para isso mesmo: dividir e causar conflitos insolúveis.
Norma,
É cômica esta situação. O que esperar do Celso Amorim. Embora esteja em defesa de algo coerente. As palavras foram inadequadas. Faltou prudência e sensatez. Entretanto, é preciso lembrar que os paises ricos precisam sentar para uma conversa séria. Os acordos até então, facilitariam a vida dos paises ricos, enquanto que os pobres – sabe como é? Continuam na penúria.
É engraçado. Amorim cobra a desinformação. O governo que ele tanto defende, prioriza a desinformação. É uma imposição do contraditório. Uma simulação contraditória. Mas a sua alfinetada foi porque o Brasil e outros paises ficariam maus na negociação. Agora, acredito que os bodes sejam os mesmos. Para não dizer que são siameses.
Abraços Fraternus,
Christopher
www.cristomarques.blogspot.com
Cara Norma, Parabéns pelo Blog. Ja o conheço ha algum tempo, e foi a partir dele que pensei em criar o meu. Gostaria de te convidar a visitá-lo, o nome e "Blog Tulegato". Se você puder me dar uma dicas, ou indicar uma bibliografia, eu agradeço. Gostaria de ouvir uma opinião.
Thiago
Sra.Norma,
Gostaria que me informasse por gentileza onde posso encontrar uma lista de sobreviventes do holocausto nazista, com nome, sobrenome, endereço e e-mail.
Desde já os meus agradecimentos e parabéns pelo blog.
Cumprimentos,
oswaldo de bittencourt amarante filho
responsável pelo Departamento Nacional de Familiares Desaparecidos da Cruz Vermelha Brasileira.
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