13 dezembro 2009

Calvino e a responsabilidade humana

Um dos erros mais comuns de autores católicos sobre o calvinismo — mesmo os mais inteligentes e até brilhantes em outros assuntos — poderia ser resumido na seguinte frase: “Calvino nega a responsabilidade humana.” O que a mente católica não consegue entender é que todo o monumental esforço de Calvino repousa sobre a necessidade de tentar vislumbrar a realidade do ponto de vista divino. E, antes que o leitor anticalvinista acuse essa empreitada de uma tremenda empáfia intelectual (“Colocar-se no lugar de Deus!”, quase o ouço exclamar), digo que (como geralmente acontece) falta-lhe leitura: Calvino jamais vai além do que o próprio Deus nos permite ir em Sua Palavra. É escorado nesses reconfortantes limites que o reformador detecta chaves de compreensão do sistema de Deus para a criação e a salvação. Habitando a própria eternidade, criador do tempo e de tudo que nele está contido, Deus é Senhor da história: para Ele, não há surpresa alguma no desenrolar dos acontecimentos, nem em nosso proceder. No entanto, longe de endossarmos qualquer visão semelhante a um determinismo, afirmamos antes isto: que a soberania de Deus não briga com a responsabilidade humana, mas, para que Deus seja Deus, onisciente e todo-poderoso, é preciso compreender esse aspecto dual (não dualista) apenas aparentemente contraditório; não para diminuir nossa responsabilidade, mas para ter a correta perspectiva da graça e do senhorio divino. Calvino, portanto, terá elaborado uma teologia que alguns chamam de “teo-referente” para tratar daquilo que qualquer cristão pode ler em sua Bíblia: para Deus, tudo é ao mesmo tempo e tudo está debaixo de Suas mãos, sem que deixemos com isso de ser uma vírgula menos responsáveis por nossos atos. Como? Não sei explicar como, mas sim para: para que, sem negar nossa triste condição sem Deus, pudéssemos nos arrepender devidamente de nossos pecados, oferecendo-nos a Ele para a salvação e a santificação, ao mesmo tempo convictos de que é Dele que vem todo impulso bondoso e toda graça restauradora.

07 dezembro 2009

My Way e Comme d'habitude

And now, the end is near, and so I face the final curtain...

Quem não conhece esse que foi um dos maiores sucessos do Frank Sinatra tardio e uma das canções mais regravadas de todos os tempos? No leito de morte, o eu lírico da composição proclama orgulhosamente: I did it my way (em uma tradução desajeitada, "fiz do meu jeito", ou seja, "vivi a vida como me pareceu melhor"). Se a música fosse poesia, como crítica literária eu diria que se trata de um sujeito forte: seus arrependimentos foram muito poucos que valessem a pena mencionar; cada um de seus passos, tais como os do Chapolim, foram friamente calculados; se havia dúvidas, ele "engoliu e cuspiu", encarando tudo e permanecendo de pé; ri das derrotas e falhas; e termina seu relato dizendo que um homem que não tem a si mesmo é um homem que não tem nada. Ele morre sozinho, confiante e satisfeito. Uau!

Mas poucos conhecem essa que foi a matriz francesa para My Way, chamada Comme d'habitude, de 1967. Curiosamente, a letra original nada na contramão de sua irmã americana, ao descrever a vida de um casal cujos gestos cotidianos são desprovidos de significado. O eu lírico, dessa vez, é um marido deprimido e até conformado com o fim iminente de seu casamento. Diz a canção: "Como de costume, todo o dia/ Eu vou fingir/ Nesta cama fria/ Minhas lágrimas, eu as esconderei/ Como de costume." É o exato oposto do sujeito que toma as rédeas de suas decisões: em Comme d'habitude, o relacionamento sem vida é um subtema para demonstrar a impotência do homem.

Poderíamos dizer que ambas as canções ilustram os atuais modos americano e europeu de considerar o ser humano. Um é otimista demais, quase heroico; o outro, pessimista e até niilista. Porém, é mais interessante pensar que são duas cosmovisões contraditórias oferecidas por um mundo que só consegue enxergar o homem sem Deus. Separado do Criador, o homem pode aventurar-se pela vida crendo que é dele que depende seu destino; ou então, pode afundar em um surdo desespero ao perceber sua incapacidade fundamental para gerir seus próprios caminhos. Enquanto o segundo desistiu de tentar, o primeiro se satisfaz com muito pouco, refestelando-se nas próprias imperfeições e no orgulho de sua solidão. São dois extremos e nenhum deles é verdadeiro. Só o cristianismo é exato em sua radical afirmação: sem Deus, nada podemos fazer; com Deus, submetidos a Ele, podemos viver sem ganas de um falso heroísmo, descansados em Sua vontade e desejosos de Sua perfeição, em um amor que é real e plenamente vivido no Paraíso. Não há nada no mundo que possa comparar-se a isso.