Estive esses últimos dias em São Paulo para o
II Congresso Internacional de Ética e Cidadania, um evento de peso promovido pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, que reuniu pesquisadores da Escola Superior de Teologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, além de acadêmicos de todas as áreas, cristãos e não-cristãos, para debates em torno do controvertido tema “Religião e Ciência”. Como convidada palestrante, falei sobre
René Girard e a questão do mal: o deslocamento da ânsia pelo transcendente como perpetrador de violências, na mesma mesa que Hermisten Maia (que tratou de Calvino e suas considerações sobre ética do trabalho) e Davi Charles Gomes (que abordou principalmente a teoria do conhecimento em Michael Polanyi, tema empolgante para mim). Comentei depois com Davi em um almoço com todo o pessoal do
O Tempora, O Mores, para risos gerais, que nossa mesa tinha um perfil bastante conservador: de um lado, ele e Hermisten dando uma cotovelada no marxismo; de outro, eu aplicando um pontapé discreto no terrorismo e no pensamento PC. Foi divertido.
No entanto, em que pese o perfil conservador de nossa mesa, as palestras e comunicações do congresso assumiram um caráter bastante plural, como deve ser todo evento desse porte. Havia temas muito diversos do meu, em torno de assuntos tão díspares quanto “produção de eucalipto” e “tatuagem”, e orientações muito diferentes das minhas, sobre autores como Emmanuel Levinas, Antonio Gramsci (ui!) e Paul Tillich – sobre este, tive de brincar com Guilherme Carvalho, em quem tive o prazer de dar um grande abraço no final de uma das conferências, dizendo que não iria assistir uma comunicação sobre um autor liberal. (Acabei não assistindo mesmo, mas por motivos contingenciais e alheios a minha vontade – pois é certo que temos muito a conversar! E, para todos os efeitos, Gulherme gosta de Tillich mas está muito, muito longe de ser um liberal.)
Nancy Pearcey
A grande estrela do evento foi Nancy Pearcey, autora requisitada nos EUA, considerada por muitos a sucessora de Francis Schaeffer, que foi seu mentor em L’Abri. Há livros seus publicados hoje no Brasil: A alma da ciência (Editora Cultura Cristã), E agora, como viveremos? (com Charles Colson, CPAD) e Verdade absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural (CPAD) – este último, lançado no evento. Prometo postar alguns trechos dele aqui no blog: já estão devidamente sublinhados.
A separação entre ciência e féNancy Pearcey tratou fundamentalmente da herança iluminista na cultura ocidental, que separa até hoje ciência e fé, colocando-as em estágios estanques sem comunicação possível. Em sua primeira palestra, tratou das duas reações das artes plásticas a essa configuração: a romântica, que aceita a oposição entre razão e espiritualidade e se engaja contra a primeira, originando movimentos como o expressionismo (Van Gogh, Gauguin), o simbolismo (Dalí), o surrealismo (Chirico), a pintura de “ação” (Pollock), o desconstrucionismo (Rauschenberg); e a naturalista, que se confessa empirista e promove uma arte que se propõe “colada” à realidade ou àquilo que o olho pode perceber, como o impressionismo (Monet), o cubismo (Cézanne), a arquitetura Bauhaus.
Foi impressionante a convergência entre essa primeira conferência e a minha palestra, na qual também parti de uma crítica ao romantismo para explicar o que Girard quis dizer com “mentira romântica” – que é a convicção na autonomia, na originalidade e na independência do homem como agente sobre o mundo. Creio que, na literatura, é a tendência romântica – oposição sistemática à razão e às convenções, confiança no “novo” – que se faz mais presente, ainda que aqueles que tratam da “modernidade” no sentido francês gostem de falar da fragmentação e da fraqueza humanas. No entanto, fazem-no, segundo o que posso perceber, no mesmo viés romântico: autores e teóricos literários “modernos” acabam transformando a “fragmentação” e a “fraqueza” em verdadeiras forças de resistência contra o que chamam de tentativa unificadora, ou totalizante, espécie de poder cristalizador que é o vilão da literatura na modernidade. É claro, a religião, via de regra, e especialmente o cristianismo, entra nisso como um dos poderes moralizantes que se deve aniquilar. E quem chega para substituí-la na ânsia humana pelo transcendente? Exato: a arte. Assim como declarei em minha palestra sobre Girard, Nancy Pearcey apontou para o viés romântico na arte como um substituto moderno – amoral, irracional, sem conteúdos objetivos visíveis – para a religião.
Foi uma convergência tão feliz de idéias que acabamos conversando um longo tempo em uma das diversas confraternizações que se seguiram às conferências (eu com meu inglês macarrônico e “with an accent”), além de trocarmos alegremente sugestões de livros e autores. Dei-lhe os nomes de James Houston e John M. Ellis, além de recomendar a leitura de
A condição humana (Hannah Arendt, sobre a cisão cartesiana entre razão e fé) e
O movimento psicanalítico (Ernest Gellner, sobre o conceito freudiano de inconsciente como um substituto para Deus). Ela me retribuiu com uma extensa lista de autores sobre a arte, gente de quem eu nunca havia ouvido falar, como Jacques Barzun, Donald Kuspit, Gene Edward Veith e Roger Lundin – este, sobre teoria literária e hermenêutica. Foi um encontro muito estimulante e produtivo!
O darwinismo I: aleatoriedade estéril e assassinaNas palestras que se seguiram, Pearcey explicou como a rivalidade entre ciência e cristianismo é fundamentalmente um mito, evidenciando o impulso que o cristianismo deu ao pensamento crientífico com seus pressupostos - do qual o mais importante é a crença em uma
inteligência divina por trás dos mecanismos e das estruturas existentes no mundo, o que deu a certeza ao pesquisador de que há inteligibilidade sistêmica por trás dos fenômenos. Ficamos sabendo, por exemplo, que a hostilidade da Igreja Católica à pesquisa científica foi, em grande parte, forjada por historiadores materialistas comprometidos em derrubar o cristianismo, e que a distorção que praticaram tem sido amplamente reconhecida por pesquisadores sérios. Pearcey recomendou o filósofo Alvin Plantinga, que, além de confirmar a matriz cristã para a ciência, adverte que o evolucionismo não garante as crenças mais verdadeiras e/ou verossímeis (
Warrant and Proper Function) e condena o que chama de "liberal duplipensar" (
Darwin, Mind and Meaning). A autora mostrou ainda na tela uma impressionante lista dos grandes cientistas de todos os tempos: ao contrário do que poderíamos imaginar, a esmagadora maioria se confessa cristã ou simpatizante ao cristianismo, com um ou dois ateus ou agnósticos.
Pearcey ressaltou sobretudo as conseqüências nefastas do darwinismo para as ciências humanas, doutrina que trata o homem como produto aleatório da evolução e exalta, por isso, o pragmatismo das decisões da natureza, que elege “aquilo que funciona”. Foi especialmente chocante e triste ter conferido até onde esse pensamento pode nos levar: John Gray, filósofo britânico, fala com desdém na “idéia de dignidade humana que vem com o cristianismo”, e o infanticídio é defendido por Peter Singer como uma extensão lógica do aborto (viram no que dá apoiar esse negócio?!). Ainda há um livro importante que correlaciona darwinismo e fascismo:
Modern Fascism: the Liquidation of the Judeo-Christian Worldview, por Gene Edward Veith, autor cristão.
Aliás, um apelo às editoras cristãs brasileiras: por que não deixar de lado um pouquinho a vertente “psicologia espiritual”, às vezes intimista demais e por isso em consonância com o pensamento moderno, e publicar esse tipo de literatura, que nos ajuda a melhor ser luz e sal no mundo?
O darwinismo II: uma fraude em toda a linhaPor fim, acompanhamos com Pearcey a fraude do darwinismo, cujas principais “provas” - como o aumento do bico do tentilhão, as mariposas de Manchester ou os embriões de Haeckel - foram evidentes manipulações desonestas, já conhecidas em sua época, porém até hoje divulgadas e utilizadas em livros didáticos. De fato, tal tipo de coisa não difere muito daquilo que os conservadores já vêm observado há um bom tempo: a existência de uma ampla tentativa de substituir as bases judaico-cristãs da cultura ocidental por bases seculares, tal como exposto na obra
The Secular Revolution, por Christian Smith, citada por ela.
Observei em meu caderno que o evolucionismo parece ter se valido do mesmo impulso de Freud com relação à psicanálise: conquistar ampla aceitação por meio do carimbo da "cientificidade". No entanto, Pearcey destaca que felizmente não se pode fugir da honestidade de alguns autores:
um filósofo evolucionista, Michael Ruse, chocou a comunidade científica ao declarar que o Darwinismo precisa de pressupostos autofundantes - dogmas - para se afirmar, e que nesse sentido a doutrina evolucionista seria tal e qual uma religião. Conclui desta forma sua série de palestras, afirmando ousadamente que
tudo aponta para o fato de que o evolucionismo não é uma “teoria científica”, mas apenas uma filosofia, uma explicação dos fundamentos da existência para a qual não há evidência propriamente factual ou científica. Nesse sentido, o cristianismo e o evolucionismo competiriam, segundo ela, nas mesmas bases – sendo o evolucionismo também pertencente à esfera da crença religiosa.
No entanto, devo acrescentar que nessa competição nós obviamente estamos na frente: a nosso favor, conta o testemunho ocular dos contemporâneos de Jesus que presenciaram a história em torno de sua ressurreição, que até hoje não pôde ser contradita formalmente por nenhum pesquisador que se dignou a desacreditar a principal base de nossa fé. Nesse sentido, o evolucionismo ainda contém um aspecto irracional que não está presente no que cremos: não há um só
fato fundador das crenças darwinistas, apenas especulações. É quando podemos não só lamentar o estado de ignorância em que se encontram as instituições de ensino em todo o mundo, mas regozijar, porque Deus nos deu meios de provar que nossa fé não é inimiga da razão nem da ciência. Deus seja louvado!
Realmente promete essa série de congressos - que, conforme as palavras do chanceler da universidade, Augustus Nicodemus, unem compromisso com a confessionalidade do Mackenzie e estímulo ao debate. É com expectativas que aguardo o próximo!