Quando eu era novinha, cursando a formação de professores da Aliança Francesa, uma das professoras de literatura abordou e distribuiu em sala alguns poemas de Baudelaire (de As flores do mal) para que preparássemos apresentações individuais. A mim coube La chevelure (“A cabeleira”), um poema bastante longo e que, na época, julguei um tanto cansativo e sem propósito. Começa assim:
Ó tosão que até a nuca encrespa-se em cachoeira!
Ó cachos! Ó perfume que o ócio faz intenso!
Êxtase! Para encher à noite a alcova inteira
Das lembranças que dormem nessa cabeleira,
Quero agitá-la no ar como se agita um lenço!
(tradução de Guilherme de Almeida)
Em seguida, o poeta descreve todas as sensações e associações que a cabeleira lhe desperta. Na cabeleira vivem “uma Ásia voluptuosa e uma África escaldante”, acham-se os cheiros de “óleo de coco, almíscar e alcatrão”, podem-se cultivar “a pérola, a safira e o jade”. Um mundo de exotismo e sensualidade é despertado pelos cabelos da amada. Porém, achando que isso era pouco, e cega para o resto, quis ver mais no poema. E vi: falei em sala, para minha vergonha, da relação entre impérios e colônias, entre opressor e oprimido, aprofundando-me toda à esquerda (nem sonhava então em ser conservadora!).
A professora, de queixo caído, apenas sussurrou um talvez involuntário “Quelle horreur!”, enquanto eu e uma amiga entusiasmada enxergávamos fantasmas progressistas desfilando sem parar pela exaltação baudelairiana da cabeleira. Que horror, de fato!
Mais tarde, eu me "redimi", apresentando o mesmo poema a um examinador do Nancy e, anos depois, a alunos. No entanto, lembro-me desse episódio e penso no quanto as más interpretações textuais, sobretudo as culturalmente orientadas, estão na origem de todo tipo de falácia. Pior, no nosso caso: de todo tipo de heresia. Gostaria de explorar melhor esse fenômeno aqui no blog. Enquanto isso, creio poder afirmar: mesmo sem ser mestres em exegese ou hermenêutica, podemos, com a ajuda do Espírito Santo, chegar a uma compreensão acurada da Palavra de Deus, se soubermos submeter nossas escolhas culturais ao senhorio divino ao mesmo tempo em que chegamos humildes ao texto, não dispensando nem os sentidos mais evidentes, nem orientações e comentários abalizados.
Este é meu desejo para você em 2010: que, despojada de interpretações equivocadas, a verdade bíblica resplandeça mais vívida em sua mente e em seu coração!
33 comentários:
Se fosse para que sua Palavra descambasse para interpretações historica, social ou ou mesmo emocionalmente condicionadas, o Senhor não faria como fez.
As primeiras premissas a balizarem o estudo da revelação especial das Escrituras são a da sua universalidade, a da existência de seus sentidos objetivos e inequívocos, bem como a da possibilidade do ser humano de apreender tudo isso.
Se não, para quê teologia?
Ou Deus, onisciente e onipotente, não saberia se comunicar com suas criaturas?
A queda atrapalha tal empreendimento? Sim. Impede? Não.
E para quê a pessoa estuda? Para legitimar o que aprendeu em sua igreja ou denominação? Para denfender uma instituição eclesiástica? Ou para realmente deixar as verdades do Senhor invadirem sua vida, trazendo restauração, cura, mudança de caráter, rejeição ao pecado, entre outras coisas?
"Examine pois o homem a si mesmo".
Teu blog começa o ano bem, Normitcha. Parabéns.
Bjo.
Ed.
Norma, gostei muito desse texto. Eu e meu marido demos muita risada com a parte da sua interpretação do poema.
Já fui assim também (mas ainda não me sinto totalmente isenta hihi)...o pior é que a gente só descobre um tempo depois e se sente meio ridícula mesmo, mas acho que isso faz parte do amadurecimento de qualquer pessoa. Concordo também com a analogia que fez em relação à leitura da Bíblia. Por experiencia, aprendi a ler, reler, orar e estudar a Palavra e vi que realmente Deus se revela.
Um beijo pra voce e um excelente 2010. Continue escrevendo!
Olá Norma,
1. Eu também estou me livrando aos poucos de anos e anos de ensinamentos românticos sore o socialismo / comunismo, muito comum na educação pública. Ler George Orwell, por exemplo, com o seu 1984 e A Revolução dos Bichos foi fundamental para isso. Mas como não acho que exista direita de verdade no Brasil, não tenho nem candidatos para as eleições deste ano.
2. Sobre interpretação de textos, você sabe algo sobre o conceito de "falácia intencional"? Eu li em um livro, pesquisei um pouco sobre o assunto e publiquei em meu blog, e achei muito interessante.
3. Sobre o idioma francês, você tem alguma dica para dar a mim, que pretendo começar a estudar sozinho o idioma este ano?
4. Feliz 2010. Que seu trabalho online como serva de Deus continue sempre a abençoar os leitores do seu blog.
Abraços.
Cara Norma, muitas das pessoas que se dizem cristãs querem apenas defender suas próprias idéias sem se preocupar se são de fato defensáveis à luz da Palavra.
São idéias que julgam ser relevantes, "geniais", inovadoras, mas que não se sustentam diante do crivo de uma teologia que se empenhe em dar glória somente a Deus. Interpretam à luz da cultura em que estão inseridas, mas não respondem à cultura. São pessoas que estão numa daquelas salas mágicas diante de um espelho com vários outros espelhos e elas dialogam tão somente consigo mesmas, enquanto vêem seus reflexos aplaudirem a vaidade de seus ventres.
Norma, minha cara, oramos por você, para que suas interpretações continuem sempre a ser resultado de uma consciência que se saiba estar acorrentada à Palavra de Deus.
Abraços sempre afetuosos da Família Ribas.
Obrigada, Edinho! Sua amizade é preciosa para mim.
Oi, Carla! Que bom que meu texto fez vocês rirem! Logo logo respondo a seu mail, viu?
Abração!
Oi, Cristiano!
1984 foi uma leitura fulminante para mim, nem tanto em relação a posturas políticas (isso só veio anos depois), mas sobre a própria conversão ao protestantismo. Sobre isso ainda escreverei em post!
Também não acho que exista uma direita de fato no Brasil. Aqui as coisas são muito enroladas. Falta não só informação, mas sobretudo discernimento, no sentido mais básico da palavra: as pessoas misturam tudo e não percebem a identidade de cada pensamento, postura, cosmovisão. Se pudessem esticar a perna para fora dos arraiais brasileiros, a verdade de que o comunismo é uma tremenda furada seria clara como água.
Vou dar uma olhada no seu blog!
Quanto ao francês, preciso saber de seus objetivos para orientar você. Quer aprender o idioma para ler apenas, ou compreender e falar também?
Abraços e Feliz 2010!
"Nós" (Fábio e família, não é?),
Muito obrigada pelas palavras carinhosas! Feliz 2010 a toda a sua família!
Olá Norma,
Aguardo com muita expectativa esta história de conversão relacionada à obra 1984.
Sobre o francês, seria ler, falar, ouvir, e principalmente, estudar com a minha esposa; uma atividade conjugal :)
Um amigo meu que domina o idioma e mora no Canadá me disse uma vez que entender a pronúncia francesa inicialmente é mais difícil do que no caso do inglês ou alemão. Por isso já comprei um guia da Berlitz com CD de áudio para ouvirmos.
Sobre a "falácia intencional", como você parece ser da área, gostaria apenas que lesse sobre o que pesquisei aqui, quando puder e se quiser, pois na época achei este assunto bem interessante.
God bless.
Oi, Cristiano,
Olha, não quero desanimar vocês, mas falar a língua francesa é mais difícil do que se costuma imaginar. Eu recomendaria enfaticamente que vocês tivessem um bom professor, de preferência brasileiro, formado em Letras ou na Aliança Francesa, alguém que desde a primeira aula ensinasse os sons (poucos ensinam) e que os corrigisse sempre. Essa correção constante assegura a boa pronúncia e a boa formação de frases e textos orais.
Caso vocês não possam mesmo contratar um professor, sugiro, além dos métodos autodidatas acompanhados de cds, os seguintes livros: uma Grammaire Progressive intermédiaire (livro azul), com seu livreto de corrigés (que não vem junto), excelente para o aluno que estuda sozinho; um Bescherelle (livro de conjugações); e bastante música, bastante filme, para "inserir" vocês no idioma.
Abração!
Ah, Cristiano, esqueci de dizer: comentei no seu blog! ;-)
Valeu pelas dicas, especialmente aquelas do "não poder contratar professor". Mesmo sendo autodidata (minha profissão meio que exige isso de mim), nunca deixei de reconhecer o valor deste profissional, e se tivesse dinheiro, iria mesmo atrás dele.
Obrigado pelo também pelo comentário. Eu havia pesquisado o assunto, mas queria mais opiniões de gente da área.
God bless.
Olá Norma,
Gostei muito do seu artigo no site chamada.com.br sobre o evangelho apócrifo de Judas. A mídia faz questão de alimentar dúvidas inexistentes e isso me revolta. Parabéns pelo trabalho desenvolvido.
Oi Norma, tudo bem?
A sua preocupação com a hermenêutica e a exegese são válidas. Mas aí entra a mente "crentês" e quase reduz a interpretação à ação do Espírito, que a bem da verdade, é abstrata, subjetiva e não confiável.
Aliás, é bem provável que aquele que se oriente pelo "Espírito" cometa as mesma falhas que você cometeu com o poema em questão.
A falha é de fazermos que o "Espírito" nos ajude a interpretar o texto segundo as nossas convicções de fé já estabelecidas.
Não gosto de discutir fé. Uns crêem que são predestinados ao céu, outros crêem que decidiram por livre vontade irem prá la.
No final das contas, como você apreende subjetivamente o que lê na Bíblia é o que conta para sua vivência espiritual.
Mas não estou com isso dizendo que não possa haver objetividade na exegese. Mas você vai perceber que o esforço acadêmico da exegese bíblica dispensa qualquer influência espiritual. Alguns até diferenciam exegese acadêmica da exegese pastoral.
um abraço
Oi, Eduardo,
Devo dizer que estou pasma com seu comentário. Pasma duas vezes: primeiro, por ver o sentido de meu texto tão reduzido a subjetivismo; e, bem mais grave, por perceber que você parece indistinguir ação do Espírito Santo e... subjetivismo!
Se você atentar melhor para o que escrevi, verá que privilegio, sim, a ação do Espírito, mas acrescento que deve vir acompanhada de uma atitude humilde diante do texto e uma leitura que, não desprezando os sentidos mais evidentes, nutre-se de orientações (ou seja, perguntar ao pastor, ao presbítero, ao professor de EBD, ao irmão mais maduro) e comentários abalizados (Calvino, Stott, a coleção "das bolinhas"). Você passou ao largo de tudo isso.
Porém, mantenho que, acima de tudo, é Deus que nos capacita a compreender Sua Palavra. Se tiver dúvidas, dê uma olhada nas orações de Jesus ao Pai e no que Ele diz sobre o Espírito. Isso é tão básico na nossa fé que me espanta um protestante dizendo de outra forma. A não ser que você seja católico e ainda não tenha me contado (pois os católicos também nos acusam de subjetivismo).
Abraços.
Eduardo, faltou dizer:
Quanto à diferença entre exegese acadêmica e exegese pastoral, acho-a apenas uma diferença de forma e de ênfase. Se você levar muito a sério essa diferença, cria uma esquizofrenia na igreja, dissociando os estudos profundos da necessidade de pastorear, senão uma igreja, o próprio coração.
Olá Norma!
Parabéns pelo seu blog muito bom, as matérias são excelentes, já estou seguindo.
Quando puder faça uma visita no meu blog http://wwwadoradoresemverdade.blogspot.com/.
Deus Abençoe fik na paz.
Norma, não se escandalize comigo, eu sou assim mesmo: um protestante a-protestante, ou um cristão a-cristão.
Ou seja, para mentes muito condicionadas (não estou dizendo que é o seu caso), minha liberdade de pensar fora dos cânones é sinal claro de perigo: herege na área!! rsss
Minha querida, a sua afirmação de que é Deus que nos capacita a compreender a palavra é um chavão da teologia evangélica usada muitas vezes por alguns para dizerem: "Deus me revelou".
Mas e aí, quem vai dizer se Deus revelou mesmo? talvez você responda: "Temos que julgar pela palavra", sim, mas aí o círculo vicioso se fecha, porque o meu e o seu julgamento, também podem estar condicionados pelas nossas próprias crenças e concepções.
Você é calvinista. Logo, tem no arminiano alguém que "não compreendeu a palavra", mas na verdade, o outro é apenas alguém que compreendeu de forma diferente da sua e isso, talvez, invalide a pretensão absoluta das duas opiniões.
O que é absoluto não é por ninguém discutido. Alguém poderia contestar a gravidade?
E quanto às possíveis esquizofrenias que podem ser causadas nas pessoas, não se pertube por isso: A igreja evangélica já está cheio de esquizofrenias e esquizofrênicos.
Não veja rudeza no que escrevo, quero apenas provocar o diálogo com alguém que eu respeito.
abraços
Prezada Norma e leitores do blog,
Finalmente foi construída uma estratégia com grande potencial para reduzir a pó os delírios calvinistas:
http://www.youtube.com/watch?v=If24hicv1yw&feature=player_embedded
HAHAHAH, me acabei de rir aqui, Osmar!
Eduardo, não vejo rudeza não. Vejo muitos lugares-comuns antiprotestantes, na verdade. E não há coisa mais triste que um portador de lugares-comuns achar que não tem "a mente condicionada".
De minha parte, quero ter a mente condicionada pela Palavra! ;-) Esse mito do livre-pensador, teologicamente falando, não passa disso mesmo, mito. Devemos ser livres em relação aos homens e escravos de Deus. Aliás, só sendo escravos de Deus é que podemos ser livres em relação aos homens.
Você enuncia dois falsos extremos. A coisa não é "Deus se revela e eu julgo pela Palavra", mas sim "Deus se revela NA Palavra". Mas, é claro, isso é matéria de fé: uma fé que Deus dá, porque Ele é o Revelador. Se Ele não revelar, não adianta. Você vai ler a Palavra e aquilo não vai compor um todo coeso para a sua vida. Vai lhe parecer mais um livro estranho em meio a tantas outras mil coisas estranhas no mundo.
A igreja está mesmo cheia de esquizofrênicos, mas os que são realmente salvos estariam muito pior se não estivessem lá.
Quanto à minha posição diante dos arminianos, que você "gentilmente" descreveu para mim, sinto dizer que sua descrição não bate. Mesmo sem entender as ênfases calvinistas, um arminiano pode ter um coração lindo para com Deus. Cuidado para não colocar o pensamento dos outros em uma caixinha para sobressair melhor o "não-condicionamento" do seu. Mais uma vez, isso não é rudeza, mas um rebaixamento das posições do outro (um tanto ingênuo, diga-se) que não combina com a palavra "respeito" citada por você no fim de seu comentário.
Abraços.
Hugo e Luis, muito obrigada pelas palavras amáveis!
Norma, tudo bem?
É verdade que todos nós temos nossos condicionamentos.
Você, por exemplo, é condicionada "pela palavra", desde que tal palavra tenha a interpretação calvinista, é claro.(sem ofensas, por favor rss)
Respeito isso. Respeito muito a fé. Pois isso, como você disse, é matéria de fé.
Não sou antiprotestante. Nem mesmo anticalvinista. Sou ao contrário, tolerante com qualquer tipo de religiosidade sincera que busque expressar essa ânsia que temos por Deus.
A sua afirmação "Deus se revela na palavra" é matéria de fé, é teologia protestante. Logo, se você declara isso, não tenho o que comentar.
Mulçumanos crêem que Maomé foi assunto aos céus em um cavalo branco, cristãos protestantes conservadores acreditam que elias subiu ao céu em volto ao fogo de uma carruagem e que Jesus também subiu ao céu em volto a nuvens...matérias de fé.
Você não pode dizer(assim creio) que o mulçumano crê numa mentira ou num mito, pois o mesmo ele poderá dizer de você. E cada um ficará com suas certezas de fé.
E também não creio que ser livre pensador em matéria de teologia seja um mito. Pelo menos da minha parte, busco sempre dialogar. Não quero ter mesmo nenhuma certeza em matéria de teologia e nem desprezo os que a tem.
Mas com certeza, sou mesmo "condicionado" a não gostar muito de dogmatismos.
Teologia para mim deve ser livre. E isso, é claro, pressupõe a aceitação e o respeito para as teologias alheias.
Olha, eu tenho 44 anos e estou na igreja evangélica desde os 15 quando me batizei numa Assembleia de Deus.
Já vi todo tipo de esquizofrênico na igreja. Freud tinha um pouco de razão aí.
E muito dessa esquizofrenia toda tem origem em certos dogmas e em certas "certezas" evangélicas.
Desculpe, sinceramente, se fui infeliz ao colocar como sua, a posição que você teria em relação aos arminianos.
mas a sua frase
"Mesmo sem entender as ênfases calvinistas, um arminiano pode ter um coração lindo para com Deus."
é de um "etnocentrismo teológico" de quem tem certeza que o seu pensamento teológico deve julgar todos os outros.
Se interpretei mal sua frase, desde já, peço novas desculpas.
Pois saiba também que um pretenso livre-pensador como eu também pode ter um "coração lindo para com Deus" rsssss
Abraço carinhoso
Caro Eduardo, parece-me que sua argumentação já começou furada, e o furo se transformou num rombo quando você simplesmente ignorou a primeira resposta da Norma. O resultado foi o seguinte. Você disse:
"a sua afirmação de que é Deus que nos capacita a compreender a palavra é um chavão da teologia evangélica usada muitas vezes por alguns para dizerem: 'Deus me revelou'."
E logo sem seguida, tendo se esquecido de que você mesmo havia dito "muitas vezes", deu prosseguimento à sua argumentação como se isso fosse sinônimo de "todas as vezes". Sem essa confusão, todo o restante do argumento em sua segunda participação neste espaço não vale nada. Mesmo com ela, porém, o argumento é problemático. Por exemplo, você disse:
"O que é absoluto não é por ninguém discutido. Alguém poderia contestar a gravidade?"
Trata-se de um absurdo evidente, pois muitos absolutos foram (ou são) longamente discutidos. Por exemplo, na Idade Média discutia-se muito sobre o valor da hipotenusa de um triângulo retângulo de catetos iguais a 1. Na sua opinião, isso prova que um Eduardo Medeiros do século XII estaria correto em dizer que a resposta é "subjetiva", sem um absoluto subjacente? Na minha, não prova. Quem porventura tenha dito que a resposta correta é algo próximo a 1,4142 estava correto. A ausência de uma verdade absoluta não é de modo algum a única explicação possível para a falta de consenso. A ignorância é a principal explicação alternativa. Além disso, a verdade nem sempre é evidente; se fosse, a mecânica quântica teria sido descoberta por Adão (ou, se você preferir, por um Pitecanthropus qualquer).
Porém, a coisa ficou pior ainda no seu terceiro comentário. Você havia dito inicialmente que "não estou com isso dizendo que não possa haver objetividade na exegese". Mas depois você disse:
"Você, por exemplo, é condicionada 'pela palavra', desde que tal palavra tenha a interpretação calvinista, é claro."
No entanto, aqui você apenas pressupôs o que deveria ter sido provado: que a interpretação calvinista não é objetivamente baseada na Palavra. Sem essa prova, a insinuação contida aqui contradiz sua afirmação inicial. Pois, se a exegese objetiva é possível, o que permite a você afirmar que o calvinismo não contém uma interpretação correta das Escrituras? A única solução seria apontar e comprovar os erros da exegese calvinista. Você, no entanto, não fez isso, e nada em seus comentários permite inferir que você sequer conhece os princípios que norteiam tal exegese. Você não apresentou razão alguma pela qual alguém aqui deva concordar com você quanto ao ponto mais importante da sua argumentação. Por isso, fica parecendo que você comprou a ideia de que todas as exegeses são subjetivas antes de procurar conhecer direito alguma delas.
Essa impressão é reforçada pelo próprio exemplo que você cita, sobre os muçulmanos. Em primeiro lugar, eles creem que os profetas de Israel foram autênticos profetas, e a Bíblia, embora corrompida com o tempo, portadora de muitas verdades sobre a revelação divina aos judeus. Por isso, um muçulmano não necessariamente é obrigado a negar os relatos sobre a vida de Elias e sua partida deste mundo. Além disso, não há relatos sobre a ascensão de Maomé no Alcorão, de modo que nenhum muçulmano é obrigado a crer nele. Os relatos sobre a vida de Maomé estão contidos numa multidão de textos que foram se multiplicando extraordinariamente nos séculos seguintes ao VII, o que levou muitos eruditos muçulmanos a procurar critérios objetivos para separar os autênticos dos espúrios já no século X. Portanto, os muçulmanos também não têm obrigação de crer na ascensão de Maomé num cavalo branco. Sei que esse exemplo é circunstancial, e você podia ter usado outro. A questão, porém, é que esse uso demonstra a superficialidade de seu conhecimento e, portanto, evidencia a pressa indevida com que você chegou a uma conclusão sobre o tema.
[continua]
De qualquer modo, se eu encontrar um muçulmano que crê na ascensão de Maomé e não na de Elias, sentir-me-ei perfeitamente à vontade para dizer que ele crê em mentiras, e poderemos debater, por exemplo, sobre a confiabilidade histórica dos documentos e sobre a coerência interna ou externa dos sistemas religiosos subjacentes a um ou outro relato. A pretensão manifestada por você de reduzir tudo à subjetividade é descabida diante de um campo tão vasto aberto para debates.
Sua pretensão de ser um "livre pensador em teologia" também não combina com seu desejo, expresso no mesmo parágrafo, de não querer "ter mesmo nenhuma certeza" sobre o tema. Se você não quer ter certezas, está preso a isso, e é obrigado a procurar pretextos para desqualificar as certezas alheias. Isso, aliás, é tudo o que você fez ao longo de sua conversa com a Norma. E é, de fato, muito fácil encontrar pretextos para o ceticismo, sobretudo quando se é ignorante; nesse caso, não compreendendo bem as causas das certezas dos outros, o sujeito passa a crer que essas causas inexistem e, portanto, são subjetivas. E considera-se um livre-pensador por ter atingido tal conclusão. C. S. Lewis disse que o ceticismo é o pai da ignorância. Mas também é verdade, em muitos casos, que a ignorância é a mãe do ceticismo.
Para encerrar, devo deixar claro que concordo com você quanto à sua afirmação final, de que um "pretenso livre-pensador" como você "também pode ter um 'coração lindo para com Deus'". Apenas complemento dizendo que, para que isso aconteça, basta que ele deixe de lado essa tola pretensão.
Abraços!
Norma,
Dou graças a Deus porque, com o passar dos anos, Ele trabalha em nossas mentes e corações para corrigir as más interpretações que temos de Sua Palavra e mesmo da realidade.
É o que também acontece comigo. No passado, na Cristãos Reformados, tivemos várias divergências, algumas até ásperas, e agora, anos depois, vejo que estava errado na maioria dos casos e que você estava certa. Como sempre há tempo para pedir perdão e dar a mão a palmatória, aproveito para fazer isso agora.
Que o Senhor continue abençoando sua vida e seu ministério.
Graça e paz do Senhor,
Helder Nozima
Barro nas mãos do Oleiro
André,
Para variar, só para variar (hehe), concordo cem por cento com você!
Helder,
Que legal vocêr ter vindo aqui para dizer isso! Olha, no tempo da Cristãos Reformados (pois é, faz tempo, hehe!), eu também estava errada em um monte de coisas importantes. Deus teve muita misericórdia de nós dois!
Grande abraço!
Caríssimos,
Chego meio tarde a este debate para que proponha muita coisa. No máximo, devo dizer que subscrevo o comentário do André, principalmente no seguinte ponto: "Se você não quer ter certezas, está preso a isso, e é obrigado a procurar pretextos para desqualificar as certezas alheias".
Acrescento apenas algo que repito insistentemente no meu blog. Não há razão isenta de fé. A pretensa razão autônoma só pode levar ao desespero epistemológico do ceticismo e ao silêncio. Quem quer que deseje falar, deve ter fé nos seus pressupostos todos, na sua cosmovisão. Logicamente que esta fé não é sinônima da fé bíblica, mas lhe é afim. E esta, a fé bíblica, tem por pressuposto fundamental a Revelação do Absoluto Deus, que a tudo dá razão e significado, sendo o único fundamento possível do pensar.
À parte do debate, fico indizivelmente feliz em ver meu confrade Helder por aqui. E lhe digo, Norma, que o convite que lhe foi feito se deve muito a ele. Exulto em ver Deus operar em nós!
No amor do Senhor,
Roberto
Ah, a propósito, essa confusão que identifica fé e subjetivismo e contrapõe fé e razão é o que motivou meu comentário.
Aliás, todo relativismo e subjetivismo é conseqüência, mesmo que indireta, de uma razão que, julgando-se autônoma, verificou-se incapaz, mas na pretensão de se manter autônoma, não passa de pensar, se é que pensa, no âmbito da doxa. Assim, episteme só haverá se houver fé, e fé bíblica!
NEle,
Roberto
Andre:
como você tomou "as dores" da norma e ela concordou com você sobre o meu comentário, só tenho o seguinte a dizer.
Você me chamou de pretensioso, desconhecedor do calvinismo, de fazer argumentação furada...
muito obrigado pelos elogios. Posso ver em seus comentários o afã de alguém que daria a vida pelo teologia que segue.
Bom, eu não dou a vida por teologia nenhuma.
Só vou tentar esclarecer os pontos principais do seu comentário.
sobre o "absoluto" da gravidade - quando dei esse exemplo, eu estava querendo dizer que a milhões de anos atrás, tudo o que fosse jogado para cima, caia, e assim será até o fim dos tempos. Ou não? alguém vai revogar a lei da gravidade? dizer que o que é jogado para cima pode não cair e ficar flutuando?
Reconheço que muitas vezes cometo contradições quando escrevo, mas isso é um defeito da minha cabeça meio pertubada, pretensiosa e furada. Desculpem-me.
Tento consertar.
quando digo sobre a "objetividade da exegese" digo que cada método exegético pode ser objtivo dentro dos pressupostos que propõem. Mas isso não deixa de ser condicionado pelos próprios métodos.
Evidente que isso também acontece comigo. E com todo mundo.
Nunca disse que o calvinismo ou o arminianismo ou a neo-ortodoxia ou a ortodoxia não são fundamentados na bíblia. Eles são exemplos do que eu citei acima.
você dizer que o mulçumano crê em mentiras não é nenhuma novidade, visto que mulçumanos pensam exatamente igual a você de você.
abraços a todos.
Caro Eduardo, convém, antes de tudo, lembrá-lo do seguinte:
Dizer que eu te acusei de ser "pretensioso, desconhecedor do calvinismo, de fazer argumentação furada" é apenas meia verdade. A acusação de pretensão se refere especificamente à sua pretensão de ser um livre pensador. A de desconhecedor do calvinismo se justifica diante da qualidade das críticas levantadas por você, que têm sido sempre bem rasas. Mas estou pronto a retirar o que disse, se você demonstrar seu conhecimento. Se você acha injusta minha acusação, pode começar a contestá-la, por exemplo, nos explicando como veio a conhecer os princípios da hermenêutica reformada, já que é esse o assunto em foco. E quanto à argumentação furada, eu não só o acusei, mas justifiquei minha acusação. Se você discorda - o que não parece ser o caso, já que você reconheceu cair em contradições muitas vezes -, só lhe resta continuar argumentando.
Você disse: "Posso ver em seus comentários o afã de alguém que daria a vida pelo teologia que segue". Não sei de onde você tirou isso. Não vejo nenhuma semelhança concreta entre dar a vida por uma teologia e escrever num blog uma refutação aos comentários de uma pessoa que mora em outro Estado.
Não era necessário esclarecer o que você quis dizer com a referência à gravidade, pois eu o entendi bem. Entendi e considerei irrelevante. Pois voce citou esse exemplo em corroboração à afirmação de que "O que é absoluto não é por ninguém discutido". Para refutá-lo, bastava-me citar contra-exemplos; e foi o que fiz.
Mas o ponto principal está aqui:
"quando digo sobre a 'objetividade da exegese' digo que cada método exegético pode ser objtivo dentro dos pressupostos que propõem. Mas isso não deixa de ser condicionado pelos próprios métodos."
Você parece considerar isso tão óbvio que jamais julga necessário argumentar a respeito, como se o simples enunciado de sua opinião bastasse para nos convencer de sua validade. Lamento dizer que é necessário mais que isso. Por qual motivo você acha que uma exegese só pode ser objetiva dentro de seus pressupostos? Por que esses pressupostos não podem estar fundamentados na própria natureza do texto? Se você tiver respostas para isso, peço que as exponha com maior clareza.
Agora quanto ao seu comentário final:
"você dizer que o mulçumano crê em mentiras não é nenhuma novidade, visto que mulçumanos pensam exatamente igual a você de você."
Pode ser, mas não quanto ao ponto específico levantado por você, como já afirmei. Aliás, a própria semelhança subjacente à sua comparação, que pressupõe os muçulmanos como sujeitos exclusivistas e de mente fechada, é incorreta. O islamismo é uma religião essencialmente ecumênica; até demais, na verdade. Algumas correntes islâmicas estão mais para o seu relativismo difuso que para a minha suposta obtusidade exclusivista. De qualquer forma, dizer que há no mundo alguém que discorda de mim não é motivo suficiente para me convencer de que estou errado. Até o subjetivismo pode ser defendido com argumentos melhores que esse.
Abraços!
André, é o seguinte. Não quero continuar esse papo aqui no blog da norma.
Não tenho que te provar como aprendi a hermenêutica reformada e nem te provar que conheço o calvinismo. Não tenho que te mostrar meu currículo! Mesmo porque, ele deve ser bem menor que o seu.
A discussão com você é impossível, visto que para você, deve existir um método exegético que seja a palavra final em matéria de interpretação bíblica.
Se você pensa assim, porque outros assim não pensam? por que existem tantos métodos diversos e divergentes em exegese? Por que o "Método" não é percebido por todos como único?
se você quiser levar essa conversa para o seu blog ou para o meu (sala do pensamento) podemos continuar. Aqui não mais.
Ok, Norma?
Caro Eduardo, antes de tudo, discordo quando você diz que o fato de eu achar que "deve existir um método exegético que seja a palavra final em matéria de interpretação bíblica" torna a discussão impossível. Pelo contrário, é aí que ela deveria esquentar. Todas as questões que você colocou em seguida ("Se você pensa assim, porque outros assim não pensam? por que existem tantos métodos diversos e divergentes em exegese? Por que o 'Método' não é percebido por todos como único?") são legítimas, e são justamente essas que eu esperava que você respondesse; sobretudo a primeira. Aí poderíamos verificar se minhas respostas a essas mesmas perguntas se sustentam.
Você de fato não deve a mim, pessoalmente, provas de seus conhecimentos quanto ao calvinismo e à hermenêutica reformada. Mas não considero descabido pedi-las, já que você fez aqui uma apreciação sobre ela e não ofereceu uma única justificativa, mesmo depois de ter participado neste espaço quatro vezes. Dada essa conduta, não é nada ilegítimo desconfiar que você não justificou suas afirmações por não saber como fazer isso. É claro que nada obriga você a provar o contrário. Mas sou, então obrigado a manter minha impressão atual sobre isso.
Dada essa impressão, portanto, não vejo motivo para continuar a conversa em outro lugar. A menos, é claro, que haja interesse de sua parte. Nesse caso, sugiro que deixemos os blogs pra lá e conversemos por e-mail.
Abraços!
André, eu gosto muito de conversar com fundamentalistas, desde que sejam do tipo que admitem que existe possibilidade de teologia para além dos seus próprios umbigos.
Se você for desse tipo, vamos continuar conversando. Se for do outro tipo, eu te mando um grande abraço e você fica com o seu fundamentalismo (que aliás, considero legítimo mesmo porque eu fá fui assim), e eu continuo com o meu falso "livre pensamento teológico".
Ora, Eduardo, não entendo você. Você chegou aqui e disse uma porção de coisas: algumas demonstravelmente falsas, outras mutuamente contraditórias, outras ainda indicadoras de uma enorme ignorância. E as poucas que restam, e que poderiam ser discutidas, você se recusou a defender com argumentos. E agora sai reclamando porque a "minha" teologia não vai além do meu umbigo...
Bem, na verdade, minhas palavras iniciais foram apenas retóricas. Eu entendo você, sim. Você aderiu a certos dogmas e se convenceu de que o mero ato de levantar a hipótese de serem falsos é sintoma de estreiteza mental. Exigir argumentos que os jutifiquem, então, é sinal de fundamentalismo, no mais pejorativo sentido possível do termo. E o fato de alguém ser capaz de raciocinar fora desses dogmas é tomado como prova da incapacidade de raciocinar dentro deles. Espero que um dia você perceba que está reproduzindo com perfeição os comportamentos que denuncia nos outros.
Dizer que considera legítimos os erros dos outros por já ter sido assim é só uma maneira suave de expressar seu próprio sentimento de superioridade, e traz a vantagem adicional de fazer parecer que quem assim fala está sendo compreensivo com a estupidez alheia. Quanto a mim, não posso dizer que "já fui assim" como você. Já tive meus flertes com uma teologia aberta demais, mas não com todo esse dogmatismo disfarçado de tolerância. Ainda assim, mais tarde abandonei essa posição por ter enxergado seus perigos, e é por isso mesmo que não a considero legítima.
Sendo assim, um grande abraço! Fico com meu fundamentalismo e você com seu falso "livre pensamento teológico". Mas não pense que isso é um adeus. Nos encontraremos ainda no post de cima e, quem sabe, também nos que ainda estão por vir.
Abraços!
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