Li John Stott muito menos do que gostaria. No entanto, se pudesse, gostaria de ter dito a ele que seu livro Cristianismo básico foi responsável por um giro fundamental em minha mente, logo nos primeiros meses de conversão. Isso, imagino, teria deixado o teólogo bem mais satisfeito que uma menção à leitura de sua obra completa. Não tenho o livro aqui comigo, mas posso lembrar até hoje que um trecho dizia mais ou menos assim: “Não se preocupe tanto assim com seus sentimentos, pois a Palavra de Deus está acima deles.” Com essas poucas palavras, através de Stott, Deus me libertou de um perigoso subjetivismo que ainda era o meu, aliviando meu coração da terrível carga de precisar sentir-me salva (pois ainda oscilava muito na novidade das certezas recém-adquiridas da fé) e desviando minhas expectativas de segurança para o que está dito na Palavra (estou salva porque assim Deus diz). Glória a Deus: foi mais um passo em direção à exteriorização da fé, ou seja, à convicção de que a fé é algo que nos vem de fora, de Deus, algo implantado graciosamente em nós, e não algo que criamos, uma “projeção mental” ou qualquer coisa parecida.
Assim, é bom não se esquecer de uma das inversões mais daninhas de nossa época: a absolutização da subjetividade e o questionamento incessante (e geralmente absurdo) do que é exterior e real. É como se os sentimentos do homem moderno fossem um mar bravo sempre ameaçando submergi-lo. Em sua trajetória cristã, muitas vezes você não sentirá aquilo que acha que deveria sentir, mas a prova viva de que Deus infundiu a fé em você não estará em seus sentimentos, e sim na obediência e na lealdade ao que Deus lhe comunicou (aquilo que teologicamente se chama “perseverança dos santos”). Como pecador, você já sabe que não ama a Deus como precisaria amar – imagine o resto. Mas “Deus efetua tanto o querer quanto o realizar” (Filipenses 2.13): se você quer amar ao Deus da Bíblia de todo o coração, de toda a alma, de todo o entendimento e de toda a força (Marcos 12.30), e de fato já está no caminho da obediência, é porque o próprio Deus inspirou esse desejo em você, pois isso é impossível ao homem natural. Então, descanse: Ele continuará a obra até o final, desejo e realização. (E, by the way, não ligue tanto assim para os seus sentimentos. Esse, claro, é um conselho de uma introvertida inveterada que tem mais olhos voltados para dentro que para fora, e que, apesar de liberta da tirania dos sentimentos, ainda é tentada por eles. Mas, se você for um extrovertido, melhor prestar um pouquinho mais de atenção ao que sente…)
Glória a Deus, repito, por seu servo e filho John Stott!
12 comentários:
Hoje mesmo escrevi em meu twiter uma frase dele que diz "crer é também pensar!". Depois fiquei sabendo de seu falecimento.
Norma,
Tenho alguns livros de Jonh Stott, inclusive Cristianismo Básico, que ainda não li. Soube agora de sua morte, pelo seu blog. Fiquei triste, mas sabemos que ele está com Deus e
certamente feliz. Ótima reflexão.
Abs.
Norma, creio que Deus usou a instrumentalidade de exposição de idéias biblicas de Stott com muiiiiitos, assim como com vc. Quando fui ler Stott pela primeira vez, aprendi a importância de pensar e traduzir o pensamento bíblico com clareza. Não sei se consigo, mas desde então, tenho este mesmo objetivo!
... mas a prova viva de que Deus infundiu a fé em você não estará em seus sentimentos, e sim na obediência e na lealdade ao que Deus lhe comunicou....
Pensarei (nos dois sentidos) muito sobre esse trecho do seu post.
Joab Barros
Oi, Norma,
Vênia máxima, eu não entendo direito a certeza da salvação. Ela costuma esbarrar, para mim, no "a quem muito foi dado, muito será cobrado", que não retrata uma analogia de certeza, mas de certa dúvida. Sei que quem aceitar Cristo como Senhor estará salvo, mas vejo esse "aceitar" como o que dizemos não apenas com palavras, mas humildemente com toda nossa vida. Os santos certamente hão de perseverar. Mas eu me vejo ainda no meio da estrada, não posso, por mais que eu queira, garantir que perseverarei. Deus certamente pode: está fora do tempo, vê o todo, nós só vemos o presente e lembramos (meio que seletivamente) do passado. Enfim, não consigo me contar no meio dos santos. Inclusive estive a conversar com alguns ateus e eles logo acusam uma certa prepotência dos cristãos, pois assumem estar salvos enquanto os outros estão danados. Retruco dizendo que essa é uma visão errada, mas me parece que você discordaria de mim.
Se tiver um tempinho, gostaria que explicasse o argumento que sustenta a certeza de salvação de uma forma que não aparente prepotência, para que eu possa defender meu ponto de vista e o seu ponto de vista caso outros ateus se apresentem no meu caminho - sejam eles curiosos ou apenas provocadores. Como minhas conversas costumam ser públicas, em portais de notícias, a correção dos argumentos é importante não apenas para o interlocutor, mas para quem pode acompanhá-los.
Desde já agradeço,
Hugo
Hugo,
atrevo-me a antecipar-me à Norma, mas deixando-a à vontade para corrigir-me se eu estiver equivocado.
Sim, “a quem muito foi dado, muito será cobrado”. Exatamente por ter sido dado pelo Senhor é que Ele cobrará, sabedor de que aquele de quem é cobrado poderá responder dignamente, exatamente porque não a resposta não partirá da sua condição particular, mas da condição originária daquilo que foi dado e de Quem deu. Os santos hão de perseverar por Aquele que os sustenta, e não pela própria condição de perseverar, e somente alguém bem incoerente pode se vangloriar de ser salvo, mesmo sabendo que o é tão somente pela condição que o Senhor Deus lhe deu. A prepotência de que muitas vezes nos acusam os incréus existe, sim, em alguns santos, mas, como dito, é uma atitude interna incoerente com a própria sistemática da salvação. Alguma coerência talvez pudesse ser encontrada a partir do sistema arminiano, já que o homem participa em algum grau da salvação – aceitando Jesus, crendo para depois ser salvo, enfim –, mas, a partir de uma soteriologia reformada – e aqui me faço propositadamente repetitivo -, a prepotência é incoerente.
A certeza da salvação se percebe quando nos debatemos muitas vezes contra a fé, resistimos, queremos fugir para profundos abismos, distantes desertos, para o mar aberto, para o mais longínquo céu, e lá, amorosamente, a mão do Senhor nos alcança e nos coloca de volta no caminho, então nos sentimos como aquela centésima ovelha, sendo lançada bem a contragosto aos ombros do pastor e levada de volta ao aprisco. E por vezes olhamos à volta e vemos tantos que um dia estiveram no aprisco, e se foram, e hoje vivem suas vidas alheios ao projeto de salvação do Senhor, sem incômodos interiores, e nos perguntamos por que nós não conseguimos viver assim, por que aquela voz sempre nos cobrando a volta, ainda que aparentemente muitas vezes não queiramos demonstrar e procuremos aparentar tranqüilidade no distanciamento do Senhor, por que a angústia, a saudade, a dor, o vazio... os santos perseveram porque o Senhor os sustenta, e só por isso eles continuam de pé, e isso é motivo de um profundo sentimento de humildade, jamais de prepotência.
Norma,
Primeiro, desculpe a intromissão aqui, me fazendo de comentarista no seu espaço. Querida irmã, há cerca de um ano e três meses eu tomei contato com seu blog, com o do André, e você me concedeu até mesmo o privilégio de algumas trocas de e-mails. Naquela ocasião, posso dizer sem medo de que isso seja tomado por você com algum ranço de vanglória, mas com alegria e gratidão no Senhor, que eu voltei ao caminho, porque o Senhor me trouxe e te usou para isso. Agora de novo! E isso não é algo que eu gostaria de ficar contando por aí – as minhas vacilações na fé – mas não posso me furtar a expressar minha gratidão ao Senhor por esse espaço que Ele te proporciona manter, e por usá-lo para o fortalecimento da minha fé, para sustentar-me e, algumas vezes, levantar-me aos ombros e amorosamente me trazer de volta ao Seu aprisco. Louvado seja o nome do Senhor nosso Deus por tantas maravilhas, por tanta misericórdia que manifesta em nossas vidas, pela tão grande salvação que nos proporciona e em que nos preserva.
Um forte abraço!
Luciano, obrigado por dedicar um tempinho para me responder. Acho que encontrei uma boa síntese, que deixa a prepotência de fora: quando assumimos que Cristo nos salva, também assumimos que somos incapazes de salvar a nós mesmos. É um sinal de humildade, não de prepotência.
Porém, a ideia de que alguém pode ter a certeza de que está salvo antes do fim de sua vida ainda apresenta problemas. Por exemplo, o assassino norueguês Breivik se dizia cristão, membro da Igreja Reformada da Noruega (embora também se dissesse maçom, ou tantas outras coisas auto-contraditórias). Todos nós sabemos que ele não é cristão ("pelos frutos conhecereis"), mas quem quer atacar o cristianismo não está nem aí para isso. O ponto que quero chegar é que ateus, ou qualquer pessoa, podem levantar a pergunta válida: "e esse aí, também já está salvo?". Se digo que não, a réplica é imediata: "mas o que aconteceu com a certeza da salvação?". Se digo que sim, nem é preciso réplica, mas ela costuma vir na forma: "como seu Deus é cruel e injusto!". E se digo que ele não é cristão, a réplica possível seria: "e quem garante que você é cristão?". Me parece que a certeza de salvação antes do fim de nossos dias fica cercada por todos os lados, e eu não consigo defendê-la. Não que minha incapacidade signifique alguma coisa, mas sempre é bom saber quais são os melhores argumentos para elevar qualquer debate.
Talvez a pergunta do exemplo ajude a entender minha dificuldade: sendo cristão, o Breivik (ou qualquer outro assassino) está salvo mesmo matando uma porção de inocentes? Uma sequência de perguntas equivalentes poderia se seguir: Alguém salvo mataria um inocente? Se não, quais outros pecados mostrariam que alguém que se julga salvo não está salvo? Por consequinte... meus pecados mostram que ainda não estou salvo? Por fim, alguém poderia, então, se dizer salvo com certeza?
Norma, se preferir me cortar, fique à vontade. Você já sabe que às vezes eu abuso quando me dão espaço, tenha certeza que não ficarei magoado.
Abraço,
Hugo
Norma.
Eu também lamento ter lido pouquíssimo o Stott (ainda terei todos os livros dele). O meu preferido é "Ouça o Espírito, Ouça o Mundo".
Eu estou terminando de ler, o último dele "O Discípulo Radical", e estou na metade de "Eu Creio na Pregação".
Esse semestre vamos estudar com os jovens esse fantástico livro (Cristianismo Básico) e espero que ele seja tão útil para eles como foi para vc.
Abraços,
Em Cristo.
Esli Soares
Hugo,
a presença entre os santos de pessoas como o Breivik só pode me remeter à parábola do joio e do trigo. Como o joio no meio do trigo, que parece trigo até o momento em que se diferenciam definitivamente e, então e somente então, pode ser cortado e jogado fora. Abusando da figura metafórica, o joio sabe que é joio, e o trigo, que o é. O Breivik, se achava que estava salvo, era lá na loucura dele que o levou àqueles atos atrozes. Assim também o membro de igreja evangélica que lá dentro é uma coisa e fora, voluntariamente, é outra totalmente diferente sabe que na verdade não é salvo, pode até querer se enganar, mas sabe que está fora. Digo "voluntariamente" porque não acho que o santo verdadeiro não cometa deslizes fora, e às vezes até mesmo dentro, da congregação, mas quando isso acontece ele sabe o que fazer e o que não fazer mais.
Talvez para o incréu isso não seja explicação pra nada, mas será que há alguma que ele vai aceitar? Percebo a sua angústia em ter a resposta para as indagações do ímpio, sobretudo quando ele vêm contra nós arrotando intelectualidade, com argumentos filosóficos - também tenho o mesmo sentimento -, mas não sei se algum dia todas as perguntas deles serão respondidas, até porque quando eles são alcançados pelo Senhor, muitas delas deixam de incomodá-los.
Um abraço.
Norma,
de novo estou eu aqui dando pitacos. Se quiser me interromper também, está tudo bem, hem?
Abraços.
Descanse em paz, Dr. Stott.
Lá no céu, espere por nós... Obrigado pelo livro A Cruz de Cristo.
Marcelo Hagah
João Pessoa-PB
http://hagah72.blogspot.com
Profa. Norma, parabéns por quem és. O Senhor te proteja.
John Stott causou espanto ao defenderdefende a doutrina do aniquilacionismo e certo evolucionismo.
O aniquilacionismo prega ser o castigo dos ímpios a aniquilação, a não existência, em detrimento da glória eterna para os justificados pela fé em Cristo.
John Stott, reconhecidamente conservador, opinou que o relato da criação em seis dias não deveria ser tomado literalmente, e que o ser humano evoluiu a partir de formas de vida menos sofisticadas.
Constrangidos, os protestantes linha dura sempre se recusaram a lidar com essas posições indigestas do bom velhinho.
Sorte dele que não era tupiniquim, pois, se fosse já teria sido vítima dos apologetas dessas plagas.
Paulo
Paulo, não conheço nenhum protestante desses que você chama "linha dura" (?) que estejam constrangidos com o "bom velhinho".
Conheço, sim, protestantes que, mesmo reconhecendo os erros doutrinários de Stott, não deixaram que seus poucos erros obliterassem seus acertos e bênçãos.
Seria bom, pelo jeito, você experimentar o convívio com outros círculos apologéticos no Brasil.
Abraços,
Norma
Postar um comentário