26 junho 2011

Meios de graça

Mesmo quando não estamos totalmente conscientes das implicações de nossas escolhas, nós escolhemos, e muitas vezes escolhemos mal. Essa é uma das extensões possíveis do texto bíblico que diz: “O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento” (Oseias 4.6). Essa palavra é ordenada por Deus e proferida por Oseias a um povo que, tal como a esposa adúltera do profeta, pecava continuamente contra seu Senhor, prostituindo-se com deuses estranhos e maquinando o mal, mesmo depois de ter sido libertado da escravidão no Egito e de ter testemunhado tantos milagres e providências em seu favor. É uma palavra dura, dirigida tanto ao povo quanto aos sacerdotes, que estavam tão “prostituídos” como o povo. E que “conhecimento” é esse? Não é geral, mas específico: “Porque tu, sacerdote, rejeitaste o conhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas sacerdote diante de mim; visto que te esqueceste da lei do teu Deus [grifo meu], também eu me esquecerei de teus filhos” (Oseias 4.7). A lei — os limites de Deus para a formação de um povo não só livre, mas santo — era posta de lado. Não mais honravam a Deus acima de todas as coisas, como ordenado no primeiro mandamento, mas diluíam seu amor e sua adoração em farras e procedimentos “toma-lá-dá-cá”, no melhor estilo pagão, para receber o que desejavam. Por exemplo, realizavam um ritual de fertilidade nos campos que incluía orgias e depois creditavam a esses rituais a colheita abundante, exatamente como a esposa de Oseias recebia do marido seus víveres e presentes, mas atribuía essas dádivas a seus “amantes” (Oseias 2.5-8). Desconheciam tanto ao Deus de seus pais (todo-poderoso, bondoso e disposto a perdoar) quanto a sua lei (cuja obediência em amor é a única resposta humana adequada a esse Deus).

“Ah, eu nunca vou chegar a esse ponto”, você pode pensar. Cuidado: “esquecer” geralmente não é um ato abrupto, “esquece-se e pronto”. O estágio desesperador do povo e dos sacerdotes na época de Oseias é feito de pequenas inconsciências que se acumulam. Sim, o cristão pode se afastar tanto dos meios de graça disponibilizados por Deus que passa a desconhecer Seu caráter e Sua vontade quase que inteiramente. Desses meios de graça, sem dúvida um dos mais poderosos é o contato frequente com a Palavra: leitura da Bíblia, estudo de comentários, pregação fiel por ministros fiéis (se sua igreja não tem uma pregação sólida, talvez seja o momento de deixá-la). Se o cristão não souber a vontade de Deus expressa em Sua Palavra, como poderá fazer boas escolhas, que não o levarão a lamentar-se pelo restante de sua vida? De onde tirará (como de um tesouro) os valores que embasarão suas decisões? Como se orientará em um mundo que mais confunde que esclarece? “Desperta, ó tu que dormes, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará” (Efésios 5.14). O ressuscitado espiritualmente por Cristo não pode continuar agindo como morto-vivo.

Assim, muitos confundem a salvação pela graça com uma passividade do tipo “eu fico sentado aqui e Deus me abençoa”. Mas viver a fé não é isso. O amor inclui a adoração, que é ativa: Deus disponibiliza os meios de graça e nós O buscamos por esses meios, simplesmente porque O amamos. Imagine uma esposa que nunca demonstra seu amor para com o marido: esse é o cristão que não faz uso dos meios de graça. A esposa não deixa de amar de repente, mas cumpre um pequeno ato de abandono a cada dia: atos externos e internos. Usa de desculpas (excesso de tarefas, cansaço, necessidade de lazer) para deixar de lado as devocionais, faltar à igreja e estudar menos a Palavra. Intimamente, justifica a si mesma pelos pecados cometidos (em vez de reconhecê-los e pedir perdão por eles), e logo nem mais pensa nesses repetidos pecados. Nem ora, nem vigia, mas vive como que levada pelas ondas do mar, ao sabor dos acontecimentos, vulnerável a todas as tentações. É assim que, desprovidos da “armadura de Deus” (Efésios 6.13 ss.), somos inundados sem defesa alguma pelos princípios e preceitos mundanos sobre a vida, o mundo, o sentido das coisas. Então, esquecidos do Deus zeloso e doador de todas as bênçãos, optamos por recorrer a “outros deuses” quando precisamos de algo, preenchendo nosso vazio com aquilo que sabemos não vir de Deus. Logo o esquecimento pode ser completo e o resultado inevitável será o abandono total do único caminho de vida verdadeira.

Idolatria é inconsciência: é preferir tomar decisões com base no desconhecimento de Deus, em vez de buscar ativamente tal conhecimento. É preciso ter consciência da inconsciência, arrepender-se e buscar viver dentro do maravilhoso padrão de Deus, nossa proteção e nossa santidade. O apóstolo Paulo se dirige aos tomados pela inconsciência (que nos espreita a cada dia) quando diz: “Vede prudentemente como andais, não como néscios, e sim como sábios, remindo o tempo, pois os dias são maus. Por esta razão, não vos torneis insensatos, mas procurai compreender qual a vontade do Senhor” (Efésios 5.15-17). Não sejamos como o personagem da parábola que meu sogro gosta de contar em suas pregações: tendo recebido de graça um bilhete de navio para uma ilha maravilhosa, passou todo o longo trajeto escondido em sua cabine, comendo os sanduíches de mortadela que tinha levado, porque achava que não estavam incluídas no presente as lautas refeições que eram servidas no salão. No final da viagem, descobre que tudo aquilo estava à sua disposição o tempo todo.

O “bilhete” que nosso Deus nos dá não inclui somente a salvação. O caminho com Deus é feito de múltiplas e maravilhosas alegrias, não só materiais, afetivas, vocacionais etc., mas sobretudo espirituais. Uma igreja íntegra, um pastor firme, irmãos com quem podemos contar e orar, e principalmente os tesouros inesgotáveis da Palavra. Como negligenciar tudo isso? “Ah! Todos vós que tendes sede, vinde às águas; e vós, os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão, e o vosso suor, naquilo que não satisfaz? Ouvi-me atentamente, comei o que é bom e vos deleitareis com finos manjares. Inclinai os ouvidos e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá” (Isaías 55.1-3).

21 comentários:

Ricardo Mamedes disse...

Norma,

O seu texto é motivador. Há dias em que nos sentimos muito fracos e ler um texto como este nos fortalece.

Ricardo.

Norma disse...

Ricardo,

Muito obrigada! Sinto-me também muito fortalecida por comentários como o seu. :-) É maravilhoso como Deus opera através da igreja, irmãos abençoando irmãos, mesmo virtualmente. Grande abraço!

Camila disse...

Um bálsamo, querida.

A tristeza por aqueles próximos de mim que não buscam este conhecimento muitas vezes me enfraquece.

Obrigada.

Leonardo Bruno Galdino disse...

Norma,

certa vez ouvi de um general que "a indisciplina é um monstro que se alimenta de pequenas concessões". De igual modo, penso que a negação a Cristo se alimenta de pequenos desleixos espirituais, até que não mais O reconheçamos. Ótimo texto o seu. Parabéns!

Abraços!

Ana Paula Gurgel disse...

Ai Norma, que texto edificante!!!
Fico sempre feliz ao ler seus escritos, suas meditações que sempre nos acrescentam.
Deus é maravilhoso e formoso é tudo que faz!!
bjoks amiga e saudades
Ana Paula Gurgel

Norma disse...

Camila,

Pois é, pensei em tantas pessoas quando escrevi isto. Vejo que há cristãos andando por este mundo como verdadeiros moribundos (tristes, sem vigor), e não precisava. Às vezes eles parecem renascer com uma palavra bíblica. Isso é lindo. Falta simplesmente a conscientização de que é preciso buscar, buscar, buscar sempre o dono e o amado de nossa alma, com todos os meios de graça que Ele generosamente nos proporcionou!

Abração!

Norma disse...

Leo, é isso mesmo! A metáfora militar também é bíblica e muito rica para compreendermos que, sem a disciplina em amor para buscar a Deus, nós perecemos na luta que é viver neste mundo que jaz no maligno.

Abração!

Norma disse...

Querida Ana, muito obrigada! Sinto-me imensamente feliz de ver que essa leitura fez você louvar a Deus - glórias a Ele!!!

Abraços e saudades também!

Tania Cassiano disse...

Norma,
Como sempre tudo muito claro, objetivo e direto.É sempre bom lembrar, eu mesma, fiquei cá com meus botões, fazendo reflexões... sair do marasmo e "trabalhar".
Abs.

Escola Bíblica Dominical - Seminário Teologico Permanente disse...

Graça e paz, minha irmã!

Seu texto é simplesmente ma-ra-vi-lho-soooo! Traduziu exatamente o que eu precisava ler depois da decisão que tomei sobre um determinado assunto (foi instantâneo, me surpreendi!). Veja o amor e zelo que o Senhor tem com Sua igreja! Ele ministra aos nossos coraçãoes e usa outro servo para testificar! Aleluia!!!

"Uma igreja íntegra, um pastor firme, irmãos com quem podemos contar e orar, e principalmente os tesouros inesgotáveis da Palavra. Como negligenciar tudo isso?"

Não, não podemos negligenciar isso, de maneira nenhuma!

Beijo grande, cara irmã Norma!
Deus continue te usando desta forma excepcional!!!

Simone Tavares.

Clóvis Gonçalves disse...

Norma, Norma,

Passo um tempo sem ler seu blog, e quando volto a ler fico pensando no quanto perdi. Pois esse texto me faz engolir a intenção de "ler somente este e voltar a trabalhar" e navegar buscando mais preciosidades como essa.

Amei.

Em Cristo,

Clóvis
Editor do Cinco Solas

Norma disse...

Obrigada, Tania! Gosto muito de quando você vem aqui, seus comentários são sempre preciosos!

Simone, como fico feliz! Deus seja glorificado!

Clóvis, muito obrigada!!!

Daniel Faria disse...

Norma, tudo bem?
Gosto bastante do seu blog, sempre passo um bom tempo lendo postagens antigas. Nesse texto, você escreveu:

'O “bilhete” que nosso Deus nos dá não inclui somente a salvação'.

Como você definiria 'salvação'? Mateus 1:21 diz que Jesus salvará o povo dos pecados deles. Mas algumas igrejas protestantes usaram e usam a salvação como 'ida ao céu e fuga do inferno'.

Se fosse uma pergunta dissertativa de vestibular divino, como você definiria salvação?

Abraço!

Hugo disse...

Norma,

Belas palavras, obrigado por compartilhá-las.

Gostei muito do seu alerta: '"esquecer" geralmente não é um ato abrupto, "esquece-se e pronto".' Ele me faz lembrar um pouco da história do século passado com relação à degradação da família, e um caso interessante é o dos EUA.

Primeiro a Planet Parenthood surgiu, com a Margaret Sanger advogando que anticoncepcionais não eram nada mal, afinal, nem abortivo eram... A primeira reação das famílias era de que aquilo não passava de nonsense. Martelou-se que os anticoncepcionais eram um bem, e poucos anos depois já eram lugar comum. Pois bem, uma geração com mentalidade contraceptiva surgiu. Só que os métodos falhavam às vezes (e ainda falham), e a geração que não queria conceber deu fruto à geração que não queria conceber de jeito nenhum, e dessa forma (e com a ajuda da farsa do Roe vs Wade) legalizou-se o aborto. Hoje são 1 milhão de bebês mortos por ano só nos EUA, um massacre que me deixa sem fôlego só de pensar no que significa. E tudo começou com a pílula, esse "pequeno" esquecimento...

Em paralelo, a mentalidade contraceptiva acabou desvirtuando o significado da própria família. Esqueceram o que ela era, autorizou-se o "no-fault divorce" - que é o divórcio em que não é necessário nenhum fato grave para a dissolução do matrimônio, apenas um "não quero mais esse(a) aqui", e tudo ficou extremamente volátil. Como para a geração atual família parece ter perdido completamente seu significado, toda sorte de união de quem se sente emocionalmente ligado com outrem ganhou tal status. E a família, aos poucos esquecida, não é mais nada para boa parte da população americana.

De repente, o que parecia apenas um lapso se torna uma revolta contra Deus. Que Ele nos dê forças para que não caiamos nas armadilhas e mentiras adocicadas do inimigo!

Hugo disse...

Ops... Troquei "Planned Parenthood" por "Planet Parenthood". Desculpe meu descuido.
Abraço,
Hugo

Jemima Schützer Lasso disse...

Norma, seus textos são sempre uma benção pra mim!
Louvo a Deus por sua vida =)
Um abraço com carinho,
Jemima

Norma disse...

Oi, Daniel,

Desculpe a demora, viu? Minha resposta para o Vestibular Divino é essa abaixo. :-)

Quando o primeiro homem e a primeira mulher pecaram, a morte foi inevitável, já que Deus havia falado que eles morreriam caso desobedecessem a Ele e comessem da árvore do conhecimento do bem e do mal. A Bíblia diz que "o salário do pecado é a morte"; como pecamos, "a morte entrou no mundo". Ao longo da Bíblia, há a explicação de que não apenas morremos fisicamente, mas, sem Deus, de quem nos afastamos no Éden, estamos mortos sobretudo espiritualmente. O caminho natural de todos é a morte eterna, quando morremos e, sim, arcamos com a ausência total de Deus, uma condição horrível que Jesus descreveu como "sheol", ou inferno, "onde haverá choro e ranger de dentes". Mas há uma saída, e Jesus é a porta. Só Deus, através do sacrifício de seu Filho Jesus Cristo, pode nos fazer reviver: Cristo morreu a morte eterna que nos estava destinada e ressuscitou, e com Ele ressuscitamos duas vezes: a primeira é a conversão, ressurreição espiritual, quando nos reconciliamos com o Pai para viver uma vida em dependência Dele, uma vida cada vez mais santificada, sem pecados recorrentes; a segunda é a vida eterna, em que estaremos para sempre com o Pai onde "não haverá choro". Assim, a salvação é o mesmo tempo pessoal e geral. De um lado, é a resposta suprema para o mal no mundo (já que Deus redimirá todo o universo no final); de outro, é a resposta imediata para todo aquele que crê em Jesus ainda nesta vida (e inicia, sustentado na graça de Deus, seu processo de santificação, arrependendo-se, confessando e abandonando seus pecados) e é nossa "herança" para a vida futura, eterna, com Deus.

Abraços!

Norma disse...

Hugo,

Não sei se vejo uma correlação muito estreita entre o esquecimento que descrevi e os anticoncepcionais. Mesmo assim, vale a pena pensar nos mecanismos seculares de destruição da família e nos valores que hoje norteiam a escolha de não ter filhos.

Abraços!

Norma disse...

Jemima,

Deus a abençoe! Fico muito feliz por continuarmos a ter, também com Fernandinho, um contato tão frutífero através da internet.

Grande beijo pra você!

Daniel Faria disse...

Norma, gostei muito disso aqui:

"a primeira é a conversão, ressurreição espiritual, quando nos reconciliamos com o Pai para viver uma vida em dependência Dele, uma vida cada vez mais santificada, sem pecados recorrentes"

Acho a palavra 'conversão', enquanto 'novo nascimento', uma expressão linda. 'Salvação' como dependência integral - e eterna - em Deus, que graça maravilhosa!

Obrigado pela resposta, e creio que seria uma resposta nota 10 no Vestibular Divino :)

Abraços!

Norma disse...

Sendo que o mérito da nota 10, Daniel, é todo de Jesus! :-) :-D

Abração!