13 julho 2008

Minha pequeníssima história da arte moderna


No poema de abertura de seu livro sobre o mal - e não por acaso meu preferido - , Charles Baudelaire já vai logo avisando: se você acha que esses males todos aqui não lhe dizem respeito, está enganado, hipócrita leitor, meu semelhante, meu irmão. Mas a poderosa assertiva de depravação total se desvia de promessas de salvação ao longo de cada poema seguinte, rumo à construção de uma outra (e bastante particular) teologia: se não podemos evitar o mal, façamos arte com ele. Não há salvação, mas uma espécie de alquimia: “Você me dá lama, eu lhe devolvo ouro”, declararia mais tarde o poeta, enquanto, depois de baixada a poeira dos processos jurídicos, críticos subseqüentes seriam quase unânimes ao declarar que, a partir de Baudelaire, a beleza estava enfim independente da moralidade.

Quando chega Duchamp com sua privada ridiculamente assinada, seu chinelo sujo de sêmen, sua Monalisa de bigode, essa primeira dissociação entre o belo e o bem se desdobra em várias. A arte é declarada independente não só da moral, mas da técnica, da autoria e sabe-se lá de que mais. Torna-se questão de espaço e contexto: afinal, é algo inteiramente arbitrário que desloca a roda da bicicleta para o campo da exposição. A força motriz dsse “algo” (os autodeclarados artistas, os marchands, os donos de galerias) detém o supremo poder de decisão sobre o que será digno do olhar apreciativo (ou depreciativo) do outro. O objeto da estética se pulveriza cada vez mais.

Hoje, não causa espanto a redução desse objeto a uma idéia. Por isso, nunca foi tão difícil, para os espíritos minimamente teoréticos, falar dele de modo ao menos razoável. Sua singularidade, afirma-se, é sempre o que escapa: o “plural”, o “difuso”, o “desconhecido”. Essa vaguidão, ou vaguidade, ou vagueza, pode cansar de morte os estudiosos finos, mas animar em definitivo os prolixos divagadores (algo bastante francês, reconheço – mas não para mim, que busco deles outra coisa) e os carnavalescos (algo mais brasileiro: a mescla dos dois é o que se encontra a rodo nas faculdades de letras). Affonso Romano de Sant'Anna cita muitos exemplos impressionantes dessa arte como idéia (Desconstruir Duchamp), e então vem Bruno Tolentino, que quase conheci em 2003, e publica nesse mesmo ano os poemas de O mundo como idéia. Não pude perguntar-lhe pessoalmente se esse livro não era, em alguma medida, uma resposta ao pontapé inicial dado (ou inspirado) pelo velho Baud.

Se não serve para instruir nem enlevar ninguém, pelo menos essa minha pequeníssima história da arte moderna explica por que, ainda em plena ressaca pós-tese, ultimamente eu me vejo pouco interessada por pesquisas estéticas e me volto para outros assuntos. Mas que o leitor (meu semelhante, meu irmão) não se engane: ainda que eu não trate quase nunca do tema neste blog (viu, Guilherme Carvalho – demorei mas respondi, hein?), a literatura é desde a infância, e continua a ser, minha paixão primeira.

9 comentários:

Guilherme de Carvalho disse...

Ótimo, Ótimo!

Manda ver!

Então esperemos a Norma,
nem sempre (mas quase)irônica
ao óbvio dar forma exótica,
sintática,

e pôr em descostume a forma
da mente que contempla apática
a idéia que fosse mundo, hipnótica...

mas não é, se em si não passa
de travessa ilusão de ótica!

L'Abri Brasil disse...

Apenas para fazer um "update", agora que já é dia e o sono passou,

não há nada de pejorativo no "óbvio"!

Guilherme

Norma disse...

Guilherme, você fez esse poeminha enquanto batíamos papo? Incredible!

Gostei! Ao óbvio (sim, não-pejorativo) dar forma exótica... e ao não-óbvio também! :-)

Guilherme de Carvalho disse...

Ih, foi na hora mesmo.

Aquela coisa do "mundo como idéia" ficou na cabeça.

Norma disse...

Você vai gostar do livro do Tolentino!

Alex Carrari disse...

Norma, o Duchamp fez foi uma brincadeira, uma gozação com a cara dos críticos e público da época e o levaram a sério. A questão é que o pendatismo intelectual ancorado num gosto duvidoso, vestido de uma moral relativa - e não falta dela - levou ao que hoje somos obrigados a engolir como arte moderna. Moderno foi Giotto, De la Francesca, Duccio, Pontormo, El Greco, mestres que não precisaram banalizar nem relativizar conceitos firmes para serem revolucionarios. Não podemos confundir arte moderna, com crise de paradigmas e rebeldia sem causa.

Norma disse...

É, Alex, o termo "moderno" é usado e abusado à vontade hoje em dia...

Quando ao Duchamp, era um pândego, mas fez escola, e como fez!

Abraços!

Unknown disse...

Ao mesmo tempo que acho arte conceitual uma coisa meio ridícula, admiro (com olhos arregalados e suando frio) o nervo, a audácia, e pura cara de pau de muitos artistas. Como o Portrait de Iris Clert, do Rauschenberg. Não é grande arte, mas você tem que respeitar os cojones de qualquer pessoa que passa um telegrama como um retrato.

Alex Carrari disse...

João, a questão central na discusão sobre a arte conceitual, está não na obra em si, pois o belo pelo belo em si não quer dizer nada, nem os gregos apreciavam o belo simplesmente por questões estéticas, antes o que envolvia a concepção de uma imagem estáticamente perfeita (dentro dos padrões de beleza clássica), era um ideal, um arquétipo ideológico a ser buscado e absolutizado. Pois bem, o que temos hoje pós-Duchamp, não é mais a apreciação do objeto em si, coisa que fez o francês em tom de gozação, mas assim como na mentalidade grega, a perpetração de um padrão com bases insólidas na conceituação do valor de tal obra centrado unicamente no gosto individual. Assim tem-se arte conceitual, uma arte que não depende de padrões, escola, estudo, tempo de reflexão, etc, mas uma arte que depende unicamente do conceito de valor que o indivíduo lhe atribui. Assim, não podemos falar em arte conceitual, e sim em egoísmo e despreso pelos valores implícitos na concepção de uma obra de arte.