21 setembro 2007

Girard e o politicamente correto

Estou lendo um livro chamado Quand ces choses commenceront, transcrição de uma longa entrevista de René Girard. Traduzi aqui alguns trechos sobre o politically correct e o "totalitarismo da vítima", termo de Girard que expliquei algumas vezes aqui no blog. Traduzi também o que ele afirma sobre "os crentes fundamentalistas" americanos - algo que se estende perfeitamente a nós, crentes brasileiros, que somos criacionistas, não cedemos ao politicamente correto e não abrimos mão da nossa fé por uma pretensa rivalidade entre fé e ciência, fé e filosofia, fé e intelectualismo.

Se você quiser estender a mão para além do alcance dos livros evangélicos e continuar nos arraiais bíblicos, não perca tempo com os Bettos e Boffs da vida; leia Girard. Tem me abençoado muitíssimo. Minhas observações estão entre colchetes e em itálico.
Hoje, as perseguições são todas em nome da vítima. (...) Veja, por exemplo, o verdadeiro terror que paira atualmente sobre as áreas de letras e de ciências humanas, chamadas antigamente de setores mais vulneráveis da universidade americana. É a união dos "single-issue lobbies", ou seja, os grupos de pressão étnicos, feministas, neomarxistas, gay and lesbian liberation etc. A partir do momento em que a preocupação vitimária se universaliza de modo abstrato e se transforma em um imperativo absoluto, torna-se por sua vez um instrumento de injustiça. Através de uma espécie de mecanismo de compensação, existe hoje a tendência de considerar um privilégio o simples fato de pertencer a um grupo minoritário, algo que dá direito, por exemplo, a títulos nas universidades. A cada vez em que talento pedagógico e qualidade de publicações são substituídos por critérios de seleção puramente étnicos e sociais, a universidade americana perde em eficácia ao abrir mão das regras que regem a concorrência, com base em méritos. [Estamos caminhando para isso no Brasil...] O meio universitário se transforma em uma burocracia autocrática, em um sistema hierárquico alheio a critérios como a pesquisa bem-sucedida ou os bons resultados na transmissão de saberes. Essa nova hierarquia que vemos suplantar a antiga não representa progresso algum. No plano social, um Nietzsche ao contrário não é melhor que o original, que pregava o aniquilamento dos fracos e dos vencidos.

No final das contas, o poder da vítima se torna tão grande em nosso universo que acaba se transformando em um novo totalitarismo. (...) Os textos cristãos o previram! (...) O Apocalipse de João é todo constituído dessas predições. O que significa Anticristo? Significa que haverá uma imitação de Cristo, como uma paródia. Descreve-se um mundo exatamente como o nosso, no qual aqueles que mais perseguem o fazem em nome da luta contra a perseguição. [Incrível como vivemos em um mundo que se parece como uma sala de espelhos: as inversões se sucedem, até se tornarem inversões das inversões das inversões...] O comunismo soviético foi exatamente assim.

Os nazistas diziam: "Nós vamos mudar a vocação do mundo ocidental, anular o ideal de um universo sem vítimas. Vamos fazer tantas vítimas que será reinstaurado o paganismo." Mas hoje, nos Estados Unidos [no Brasil também], o que nos ameaça é o politically correct... que eu defino como a religião da vítima, isenta de toda transcendência, com a obrigação social do uso de uma verdadeira "língua de pau vitimária" que vem do cristianismo, mas que o subverte mais insidiosamente que um anticristianismo escancarado. [Costumo dizer que a forma cultural do esquerdismo, que é o politicamente correto, sobrevive como um parasita do cristianismo: mantém a casca, mas "come" por dentro todo o aspecto principal, transcendente, da fé cristã. E o mecanismo da "língua de pau" nos manda dizer "afrodescendente", "homossexualidade", "direitos reprodutivos da mulher", enquanto joga negros, gays e feministas contra brancos, heteros e homens, multiplicando a violência sob a máscara de uma linguagem neutralizada por pressão.]

É preciso sobretudo não se fixar em uma posição "revolucionária" ou "tradicional". Eu sou um moderado, na verdade... As pessoas me vêem como uma obsessivo, só porque não mantenho ilusões à la Rousseau, que acreditava na bondade inata do homem. A teoria do pecado original ensina como nenhuma outra a moderação, ao contrário do que dizem seus críticos. Crer na bondade inata do homem, fonte perpétua de desilusões, leva sempre à caça do bode expiatório. [Quando o homem não vê o mal dentro de si, ou seja, não se reconhece como pecador, ele procurará extirpar o mal fora de si - fazendo-o encarnar-se em outros homens. Por isso, também, o cristianismo é um poderoso inibidor de violências.] Sobre isso, aliás, são exemplos a própria história de Rousseau e o desenvolvimento de sua paranóia.

[Os criacionistas e os fundamentalistas em geral] são hoje o bode expiatório da cultura americana. [Da brasileira também!] A mídia distorce tudo o que eles dizem e os trata como os últimos dos últimos. (...) São verdadeiros banidos da sociedade. É fato que os americanos não conseguem resistir a pressões sociais. Veja a Universidade: essa tropa imensa de carneirinhos que se crêem perseguidos, enquanto não são. Os criacionistas são, mas resistem à pressão social. Para eles, tiro meu chapéu!

Nos EUA e em outras partes do mundo, o fundamentalismo é resultado da ruptura do acordo diplomático entre a religião e o humanismo anti-religioso. Foi o humanismo anti-religioso que efetuou tal ruptura, defendendo causas como o aborto e manipulações genéticas, e que ainda culminarão na adoção de formas de eutanásia em perfeita conformidade com regras sociais. Em poucas décadas, o homem terá se transformado em uma repugnante máquina de gozo, liberta das dores e até mesmo da morte, ou seja, de tudo o que o estimula paradoxalmente não só à transcendência religiosa, mas a tudo que há de mais nobremente humano.

Os fundamentalistas até defendem teses que eu rejeito, mas existe neles um resíduo de sanidade espiritual que os faz pressentir o horrível campo de concentração que as burocracias benevolentes estão preparando para todos nós. A revolta deles me parece mais respeitável que nossa sonolência. Estamos numa época em que todo mundo abre a boca para se vangloriar de ser um pária, um marginal, ao mesmo tempo em que demonstra uma espantosa docilidade mimética. [É de fato o que vivemos: todo mundo clama ser diferente e original, mas todos afirmam as mesmas coisas, partilham os mesmos valores, cultivam as mesmas reações. O crente, não.] Os fundamentalistas são dissidentes verdadeiros.

03 setembro 2007

Os dois infinitos

Romanos 7:14-25

Compreender a altura imensurável da santidade de Deus, longe como o céu, e aprofundar o alcance de minha própria condição de pecadora. Sim: infinito para cima, infinito para baixo. Olho para cima e toda aquela distância é demais para mim, jamais chegarei. Olho para onde estou e o fosso é enorme, jamais sairei dele. Quanto mais contato tenho com Tua Palavra, Senhor, mais entendo os dois infinitos. Quanto mais entendo a extensão da Tua santidade, mais suja me vejo, mais indigna sou.

Quando penso ter vencido um pecado, mil outros se afiguram diante de mim, aparentemente intransponíveis. Salva-me!

Quando me alegro com alguma atitude amorosa, mil outros pensamentos abomináveis se apossam de mim, em uma sucessão e força insuportáveis. Salva-me, Senhor!

Quando minhas motivações me parecem razoavelmente boas, mil sentimentos contraditórios e perversos apenas aguardam a vez de mostrar seus rostos terríveis. Oh, Senhor...

Este corpo de morte é pesado demais, não o consigo carregar.

Mas, se me sento e choro, é a Tua mão que rompe toda barreira entre os dois infinitos e me ergue no ar, pecadora como sou. Se me reviro em horror diante de mim mesma e encolho-me diante de Tua perfeição, é o sorriso de Jesus que me convida a entrar nesse vácuo aberto por Ele: “Eu te apresento limpa diante do Pai, não temas.”

Jesus é o ponto de intercessão entre os dois infinitos que, sem Ele, jamais se cruzariam. Irrompe no tempo e restabelece a relação com o Pai, para sempre. Enquanto eu me lembrar disso, jamais errarei o caminho. Mas, se esqueço meu infinito e o infinito de Deus, meu coração se acostuma à sujeira de minha alma e não vê a pureza do Pai. Perco meus dois referenciais máximos e me destruo ao inventar um padrão estreito para mim mesma.

A vida cristã é a tensão entre o infinito mal do homem e o infinito bem de Deus, tensão que só se resolve em Jesus. Meu mal só não é infinito porque eu O tenho. Mas, se não O tenho, renuncio a sair do fosso em que estou, também para sempre.

Querido Jesus, livra-nos do mal eterno. Amém.
Ó eterna verdade, verdadeiro amor, querida eternidade! Tu és o meu Deus e eu suspiro por ti dia e noite. Quando comecei a conhecer-te, elevaste-me para ti para me mostrares que eu tinha ainda muitas coisas a compreender e como era ainda incapaz de o fazer. Fizeste-me ver a fraqueza do meu olhar, lançando sobre mim o teu esplendor, e eu estremeci de amor e de espanto. Descobri que estava longe de ti, na região da dissemelhança, e a tua voz vinha a mim como que das alturas : “Eu sou o pão dos grandes; cresce e comer-me-ás. E não serás tu que me transformarás em ti, como acontece com o alimento do teu corpo; mas tu é que serás transformado em mim.” Agostinho (354-430), Confissões, VII, 10