17 dezembro 2012

Revolucionários e conservadores

                                    "Precisamos viver uma vida mais revolucionária que a dos revolucionários." Irmão André

Vamos pensar nesses termos em seu sentido mais básico e universal. O que são as tradições em si? Apenas o saber humano acumulado ao longo do tempo e cristalizado em linguagens, costumes, valores morais, comportamentos, leis. Nada são, se Deus não as sanciona, ou seja, se não procedem da sabedoria divina. E o que são as revoluções? Apenas as mudanças radicais e corajosas.

Nessa apreciação mais ampla da palavra, Jesus foi, sim, um grande revolucionário em sua época. Ele desafiou e aboliu as tradições vazias do judaísmo que vigorava então, oferecendo a quem desejasse um relacionamento profundo e verdadeiro com Ele, a fonte de vida. Da mesma forma, podemos dizer que nossa fé é revolucionária: enquanto todas as demais religiões enaltecem o mérito humano, pois procedem do coração enganoso, viver na graça de Deus será sempre novidade de vida enquanto estivermos neste mundo. Por outro lado, Jesus deixou muito claro que não vinha para abolir a Lei judaica, mas para a cumprir. Reportava-se sempre ao Antigo Testamento como fonte de verdade, assim como fazemos hoje em relação à Bíblia inteira. Ele não jogou tudo fora, muito pelo contrário: seus embates com os fariseus objetivavam restabelecer o espírito original e legítimo da Lei. Assim, Jesus também foi um conservador, afirmando o sentido correto de uma tradição que não vinha de mãos humanas, mas havia sido entregue aos homens pelo próprio Deus.

A questão central, como o leitor já deve ter percebido, não é a postura conservadora ou a postura revolucionária em si, mas a boa triagem do que se deve conservar e do que se deve abolir - um equilíbrio que deve ser mantido tanto no nível individual quanto no da sociedade, já que tal equilíbrio é responsável pelo progresso. Não se consegue muito na vida apegando-se demais ao passado, sem critério algum; muito menos projetando tudo para o futuro, sem o devido apreço por aquilo que funciona adequadamente há gerações.

Tendo dito isso, passo a considerar o sentido moderno e contextualizado no mundo ocidental dos termos "conservador" e "revolucionário". Afinal, palavras e conceitos não são unívocos, mas ganham sentidos específicos de acordo com cada tempo e cultura. Assim, há certo consenso em torno dos termos "conservador" e "revolucionário" hoje quando usados como "termos técnicos", ou seja, por gente que entende minimamente de política.

Esse sentido, moderno e contextualizado, obviamente tem história, e sua história se confunde com a do próprio cristianismo ocidental. Através da graça comum de Deus, o Ocidente passou a moldar-se pela ampla influência da igreja cristã, desde os tempos do primeiro imperador cristão, Constantino (272-337), dando um fim aos aspectos mais cruéis dos costumes romanos. Esse processo gerou aos poucos um consenso cultural em torno de valores legitimamente bíblicos, tais como: a apreciação incondicional pela vida humana independentemente de status social; o amor como mais alto ideal; o amor pelos inimigos; a importância da interioridade; a inviolabilidade da consciência; o cuidado com os mais fragilizados da sociedade (pobres, estrangeiros, órfãos e viúvas); a valorização da mulher e da criança, e muitos outros. Se você abre sua Bíblia, encontra nela esses valores e concorda com eles de imediato, como se respondesse "é óbvio" à Palavra de Deus, não se engane: foram necessários séculos para que você chegasse a esse estado. A graça comum de Deus gerou consensos na cultura e você, leitor, como ser social, também é fruto desses consensos.

No século XIX, Karl Marx (1818-1883) definiu toda a realidade em torno do conceito de luta de classes. Para ele, uma sociedade igualitária seria desprovida de classes sociais, diferenças econômicas e divisão do trabalho. Ora, tal nivelamento não-natural dos indivíduos só pode ser conseguido através de um poder gigantesco que atue em duas frentes: coerção violenta (prisões arbitrárias, execuções sumárias, instituição do crime de consciência) e pressão ideológica onipresente (controle estatal da mídia e da educação). Assumido como tarefa do Estado, tamanho ideal aniquilava as vocações pessoais, as benesses merecidas por esforço, o livre pensar, a individualidade.  O povo precisava deixar seus princípios mais básicos de lado e consentir com assassinato, roubo, mentira, manipulação, tudo em nome da idolatria ao Estado. Quem não se adaptasse seria suprimido - por isso os regimes comunistas e socialistas mataram tanto na antiga União Soviética, na China, e ainda matam em Cuba e na Coreia do Norte.

Nos países mais democráticos, imaginava-se que, expandindo-se o marxismo pelo mundo, o proletariado se levantaria naturalmente para lutar pela causa socialista. Tal não ocorreu, e os ideólogos da Escola de Frankfurt culparam os valores cristãos pela ausência de um espírito revolucionário espontâneo. O Deus cristão, zeloso e exclusivista, passou a ser novamente o alvo maior por parte de poderosos e aspirantes ao poder, tal como havia sido na época do Império Romano. A diferença é que, enquanto a ambição dos ditadores romanos não era totalitária, a nova ideologia coletivista demandava que essa idolatria fosse prestada de coração, substituindo por completo tanto a consciência individual inviolável perante Deus quanto os limites morais em conformidade com os dez mandamentos e os ensinamentos de Jesus. Para isso, em prol da revolução por vir, conforme concluíram esses ideólogos, a "cultura judaico-cristã" teria de ser combatida. Sob as bandeiras da modernidade, do progressismo, da juventude e do amor, as mentes revolucionárias de nosso tempo buscam solapar toda ideia do Deus cristão, negando o certo e o errado, a moral sexual, os laços familiares, a noção dos deveres. Intentam criar uma geração de pessoas vazias, mesquinhas e devassas, mais facilmente corruptíveis ou manipuláveis.

Esses são os "revolucionários" de hoje, que, além da revolução socialista propriamente dita, geralmente defendem causas relacionadas ao marxismo cultural, ou pensamento politicamente correto, aferrando-se ao feminismo, ao movimento gay, às ações afirmativas, à negação de qualquer autoridade (divina ou constituída por Deus), a projetos de descriminalização do aborto, do infanticídio (cf. Peter Singer) etc. Em contraste, os conservadores ocidentais (sempre nessa segunda acepção, mais específica) são os não-socialistas que se importam com a manutenção do substrato cristão na cultura, cujos ideais são frontalmente opostos aos anteriores. Esses sabem que a preservação dos valores cristãos que compõem a civilização judaico-cristã é fundamental para impedir a morte e a destruição  de pessoas e sociedades - em um sentido literal. Sabem que, quando abençoa a cultura, o cristianismo:

- protege o indivíduo, impedindo a injustiça e a opressão máxima, inclusive a estatal (pois estamos todos igualmente debaixo de autoridade divina e a ela respondemos);

- protege os laços familiares (pois milita contra o divórcio e o adultério);

- protege a mulher do abandono e  da maternidade enquanto solteira (pois a ajuda a guardar-se para um homem que realmente se comprometa com ela);

- protege a criança no ventre e fora do ventre (pois abomina o aborto, o infanticídio e os abusos sexuais).


Esses são aspectos concernentes à graça comum. Mas sabemos que o cristianismo ultrapassa em muito os benefícios para esta vida, iniciando-se com a morte do velho homem e o renascimento espiritual em Cristo. Assim, caso sejam cristãos verdadeiramente convertidos, os conservadores conseguirão escapar ao moralismo raivoso e infrutífero que por vezes os caracteriza, salgando e iluminando a terra, ao mesmo tempo em que apontarão para a necessidade de conservar, sem tradicionalismos vãos, mas de modo vívido e atento, todas as bênçãos advindas da graça comum de Deus para a sociedade, através da infusão da Bíblia na cultura. E é por amor que o farão.

É claro que, na prática, o espectro de variações é enorme. Há os conservadores naturais, pouco afeitos a mudanças, e os revolucionários naturais, muitas vezes "rebeldes sem causa". No âmbito político, além de conservadores e revolucionários, há os liberais, que defendem o Estado mínimo mas, presas de um economicismo que é quase a outra face da moeda marxista, não se importam com o fim dos valores cristãos na cultura; nos EUA, há os "neocons", menos apegados ao cristianismo. Mas atenção: no Brasil, "direita" é coronelismo e militarismo; nunca houve um verdadeiro conservadorismo histórico em nosso país. Existem esquerdistas moderados, não totalitários, mas são bichos raros na América Latina, continente rico de vitimizações e antigos complexos de colônia, onde se espera que tudo venha do governo. O Brasil, infelizmente, tende à esquerda "deixe que o governo faça por você". Entre os cristãos, além dos conservadores convictos, há muitos conservadores inconscientes que simpatizam de longe com a esquerda somente pela "causa social". Conheço alguns deles e, quando encontro abertura, procuro ajudá-los a compreenderem melhor sua posição. E há muitos esquerdistas cristãos que tentam, sem sucesso, preservar a ideologia, rejeitando o relativismo moral que lhe é inerente e adotando apenas o amor aos pobres e o sonho de uma sociedade igualitária. O problema é que, ao sancionarem regimes como o de Cuba ou demonstrarem indiferença diante das matanças comunistas, aderem ao relativismo moral inescapavelmente (em outras questões também, via de regra - e quanto mais socialistas, mais tenderão a confundir revolução com Reino de Deus).

Ainda uma nota sobre Francis Schaeffer. Quando o grande apologista escreveu isto,
 

A maior injustiça que se pode pedir a um jovem é pedir que ele seja conservador. O cristianismo não é conservador, mas revolucionário. Ser conservador é não entender o principal, pois o conservadorismo significa permanecer na corrente do status quo, e isso não mais nos pertence

espero que tenha ficado claro agora, com meu artigo, que ele se referia ao sentido universal de "conservador", e não ao sentido moderno, político. Na política, Schaeffer era indiscutivelmente conservador, ou seja, não comungava de modo algum com os ideais esquerdistas. Se você não leu o suficiente de sua obra para constatar isso, fique atento, pois pretendo escrever mais sobre o tema "Schaeffer conservador" no futuro. Se tiver pressa, porém, leia O grande desastre evangélico e Como viveremos, e depois venha falar comigo nos comentários.

Por fim, uma observação pessoal. É no sentido político que me considero conservadora, e não no sentido amplo. Nunca deixei de ter coragem para mudar, e quem me conhece há muitos anos sabe disso. Aliás, minhas inclinações naturais sempre foram progressistas em vários aspectos, mas foi Deus que me ensinou a abandonar os deslimites tão daninhos incentivados hoje pela cultura e a abraçar Seus limites protetores. Glória a Ele por isto!

12 comentários:

Pastor Geremias Couto disse...

Se eu escrevesse qualquer coisa mais, seria para repetir tudo quanto você registrou. É a síntese do que penso.

Permissão para assinar.

Pr. Geremias do Couto

Norma disse...

Obrigada, pr. Geremias!

Abraço!

Ruy Marinho disse...

Irmã Norma, eu só tenho uma palavra para expressar o conteúdo de seu artigo: excelente!

Ruy Marinho

Edson Camargo disse...

Olá, Normitcha,

Belas observações.

A própria história do Ocidente prova que, para se viver uma vida minimamente digna e mais criativa, mais vale agir baseado em valores universais e irrevogáveis, como os da fé cristã, do que confundir a liberdade do espírito com a recusa a estes princípios, que Deus, o próprio fundamento da toda a realidade, nos revela nas obras da natureza e nas Sagradas Escrituras.

Nas palavras do pr. Lynn Harold Hough:

O “Paraíso Perdido” de Milton é a descrição de uma batalha entre a aventura sem lei e a obediência leal. Esse conflito é o que torna o poema magnificamente criativo. Sem o Deus que tem o direito de exigir obediência, não haveria campo para o trabalho do verdadeiro espírito criativo. Se a tragédia da ausência de leis aparece em trevoso esplendor em “Paraíso Perdido”, a glória da obediência ganha pelo ordálio domina “Paradise Regained”.


(http://www.midiasemmascara.org/artigos/conservadorismo/12652-o-conservadorismo-e-o-espirito-criativo.html)

Bem, esse ensaio foi publicado na Modern Age, fundada pelo Russel Kirk, cujo conservadorismo tinha entre suas balizas a rejeição às ideologias modernas, que Voegelin criticou, entre outras coisas, pela ânsia de seus autores em forjarem sistemas. Ele falou que se a teoria se apresenta como sistema, não há dúvida de que é falsa, e que os autores clássicos e cristãos jamais tiveram tal pretensão. Neste sentido, acho que qualquer ser humano minimamente sensato sabe que a realidade é bem mais complexa e rica do que qualquer sistema intelectual forjado por mentes humanas. O próprio Kirk negou o caráter de sistema do seu conservadorismo. Por outro lado, reafirmou algo caro aos cristãos, e que a obra de Schaeffer sempre pôs em pauta, ainda que nem sempre nos mesmos termos: toda questão, todo assunto, é sempre um assunto teológico.

Na vida interior, pondo à luz quem somos diante do Senhor, descobrimos que estas criações macabras da mente humana: ideologias, sistemas baseados em premissas falsas, utopismos, etc., não passam de manifestações intelectuais e culturais de coisas fazem parte da condição humana, pois somos seres caídos, precisando sempre adequar, a cada dia que passa, o que pensamos com o que o Senhor pensa, "levando cativo todo o pensamento para torná-lo obediente a Cristo".

Com isso em mente, fica claro que um certo ceticismo em relação à política é sempre bem vindo. De direita ou de esquerda, não importa: somos pecadores. E não se faz boa gemada com ovos podres, como lembrava o saudoso Chuck Colson.

Agora, não dá para levar cativo o pensamento à obediência de Cristo tentando misturar cristianismo com ideologias forjadas justamente por gente anticristã. O máximo que se consegue com isso é passar ridículo esquerdizando Schaeffer, Kuyper e até Agostinho, como já vimos por aí. Ou, querendo "um outro mundo possível" (taí um termo que bem expressa a revolta contra a realidade típicas das ideologias), achar bonito e até chamar de "apologética" a destruição de doutrinas cristãs históricas e essenciais, em nome daquela "tolerância" de mão única típica dos esquerdistas muito mal disfarçada de amorrr cristão, mas que não passa de auto-lisonja de liberal teológico.

A verdade é que sem um auto-crítica profunda, que a fé cristã sempre incentivou, não se faz nada de útil, de bom, de belo e de verdadeiro. O "importa que Ele cresça, e que eu diminua" ainda é o melhor caminho para uma vida frutífera, seja na esfera pessoal ou pública, seja na arte, na política, na ciência, na cultura, etc.

Chega, né, 'falei' pra caramba!
Bjo!

Tom Alvim disse...

Parabéns pelo texto Norma, já estou repassando o link para os meus amigos. Concordo com cada vírgula.
Tom Alvim.

Marcio Barroso Estanqueiro disse...

Parabéns Norma!
O texto é muito esclarecedor. Oxalá que muitos pudessem lê-lo para saber exatamente qual deve ser o entendimento cristão sobre todos esses conceitos que são explorados erradamente pelos inescrupulosos.
O texto é abrangente sem ser repetitivo. Gostei muito, e pude rever esses valores em minha vida.
Um abraço.

Norma disse...

Obrigada, amigos!
Deus os abençoe!
Deverei ainda abordar o tema sob outros ângulos em postagens futuras.
Abraços a todos!

Leonardo Bruno Galdino disse...

Norma,

a leitura do seu texto em muito me abençoou. Muito obrigado!

Abraços.

Rafael Galvão disse...

Demorei um pouco para comentar porque estava sem internet, mas eu prometi comentar e eu tenho que dizer que é um texto bem escrito, não estou querendo começar um debate, já gastei toda a minha energia no post anterior, mas só quero comentar que vejo que isso depende de definições, do que é e do modo que as pessoas encaram um termo. Obviamente eu não posso exigir teoria de um postagem em um blog, mas eu creio que você deveria escrever um livro ou artigos acadêmicos elaborando uma teoria do pensamento conservador, isto é, desta versão de conservadorismo.

Norma disse...

Rafael,

Não sei se é uma boa ideia, porque todo o meu conservadorismo é um efeito da teologia bíblica, entende? Então, para mim, o conservadorismo está subordinado a um pensamento cristão mais amplo, e eu só insisto tanto nesse tema porque realmente creio no efeito devastador da ideologia socialista para a cosmovisão cristã e para a vida em geral (individual e social), e busco dissuadir alguns leitores a seguirem pelo caminho estatista. Mas talvez eu pense em um livro que enfoque de modo especial a política, daqui a alguns anos, pois ainda há muito a estudar. :-) Espero que você tenha compreendido quando eu disse que a questão semântica era algo a ser esclarecido em suas intervenções. Obrigada pelo comentário.

Unknown disse...

Olá Norma! Texto muito esclarecedor e oportuno. Para muitos, os herodianos foram revolucionários, porém, Jesus foi conservador em seu embate com eles. Jesus foi revolucionário em conversar com samaritanos, publicanos e pecadores. Entretanto, foi conservador com os saduceus e fariseus.
O que acontece na verdade é uma questão semântica dessas palavras e quais são os seus pressupostos para formulá-los em nosso pensamento. Por ter uma cosmovisão cristã os meus pressupostos precisam estar alinhados as escrituras e não à ideologias socialistas/marxistas.
quando puder faça uma visita ao www.cafeegraca.blogspot.com

Luiz Renato disse...

Norma,
excelente texto. Entretanto, ele levanta um problema: como "não ser do mundo" em um "mundo cristão", na cristandade ocidental, nitidamente moldada pelo cristianismo, mas não verdadeiramente cristão? Os valores dessa cristandade são ou não são cristãos? É fácil ser conservador num mundo cristão ou revolucionário num mundo não-cristão, mas o que ser na cristandade?
De resto,obrigado pelo texto.