Se alguém me pedisse para elaborar uma lista com as dez melhores músicas pop rock de todos os tempos, The Carpet Crawlers (do Genesis) seria uma delas. Lembro que a ouvia quando adolescente, bem antes de me converter. Era a versão com Phil Collins nos vocais (hoje acho a do Peter Gabriel mais bonita). Da letra eu entendia pouca coisa, mas cantava o refrão, que enuncia repetidamente: “We’ve got to get in to get out” (Temos que entrar para sair).
Nos meus 16 anos, esse bordão combinava-se muito bem com outro, “toda experiência é válida”, na boca de amigos que acabaram me instigando a fazer coisas de que me arrependi bastante depois. A música ficou como um emblema dessa fase; no entanto, apesar dessas lembranças, nunca consegui deixar de enxergar beleza nela.
E foi bom, porque hoje, com a letra diante dos olhos, percebo que “temos que entrar para sair” não é um convite do compositor para uma desejada abertura a todo tipo de experiência, como eu pensava na minha meninice. Longe disso: é a reprodução hipnótica de uma multidão rastejante que aceita um chamado para a idolatria.
A atmosfera é sufocante e bizarra. Pessoas se arrastam por um corredor vermelho-ocre em direção a uma pesada porta de madeira, atraídas por um ímã. No entanto, “acreditam ser livres”, comenta o observador. Voltados insistentemente para cima, os rostos são ávidos como plantas em busca do sol. Segue-se uma imagem de inversão: super-homens são despojados de seu vigor (“presos em criptonita”) enquanto mulheres virgens acham graça naquilo tudo. Pela porta aberta o observador nos conta o que vê: um banquete à luz de velas e uma escada que espirala para cima, até se perder de vista. A aparição da escada é outra imagem de inversão, remetendo a um vislumbre de falsa transcendência, de falso céu, já que é o homem que sobe a Deus. Para chegar até ali e arriscar-se na escada, é preciso contemplar a inversão, participar do banquete, beber daquele líquido que congela nos cântaros (será que congela a alma?). O bando repete sempre o refrão, como em uma hipnose coletiva, arrastando-se para aquele lugar, e seu ídolo adorado é tão invisível e fugaz como parecem ser os ídolos de nossa época.
O deus pode ser não-identificável, mas a ideia por trás dele é bem antiga. Em seu livro sobre o Apocalipse, Mais que vencedores, William Hendriksen explica que, nos tempos das cartas às igrejas, o cristão era chamado a participar de banquetes tão sinistros quanto o narrado por Peter Gabriel. Na verdade, era praticamente obrigado a participar caso não quisesse ser expulso do comércio e da vida social, pois em Tiatira (Ap 2. 18-29) os negócios “ se associavam com o culto de deidades patronais; cada negócio tinha seu deus guardião” (p. 103). Essas festas continham as famosas “comidas sacrificadas a ídolos” de que trata Paulo em suas epístolas e, pior, sempre terminavam em orgias. O crente de Tiatira que fugisse delas cometia um harakiri social, mas guardava sua santidade. É nesse contexto que surge Jezabel, a “profetisa” que arrumou uma justificativa afiada para que os cristãos não se preocupassem mais com isso. Conta Hendriksen (p. 103):
Ela aparentemente argumentava assim: para vencer Satanás, você precisa conhecê-lo. Você jamais será capaz de vencer o pecado, a menos que se torne experimentalmente familiarizado com ele. Resumindo, um cristão deveria aprender “as coisas profundas de Satanás”. Atendendo, de qualquer forma, às festas das associações e cometendo fornicação... e ainda permanecendo um cristão; tornando-se, até, um melhor cristão!
Em suma, a palavra-de-ordem de Jezabel aos cristãos era: Você tem que entrar para sair!
Adolescente, criada em um lar não-cristão, não tive quase nada que funcionasse como um freio para as situações terríveis que me puxaram como ímã, prometendo libertação e um arremedo de transcendência do outro lado. Mas dentro da igreja esse lema jezabelino pode ainda seduzir a muitos, que tentarão convencer a si mesmos de que não há problema em deixar-se vencer “estratégica e temporariamente” pelo pecado. Não devemos nos deixar enganar, porém: é impossível entrar para sair sem comprometer a alma, às vezes de modo irremediável.
10 comentários:
Tenho tido muitas derrotas na minha vida sexual. Tenho 22 anos. Desde minha conversão venho lutando com dúvidas e muitas derrotas. Sei que não devo cometer esses pecados de sexualidade, mas muitas vezes sou vencido. Mereço a ira de Deus. Porém quero sua misericórdia. Vc acha, Norma, que esse texto serve para mim, que muitas vezes fui negligente na oração, estudo e meditação da palavra? Por favor me ajude.
Olá, Henrique,
Olha, por experiência própria, qualquer tipo de pecado - inclusive o sexual - só começa de fato a ser vencido quando a gente consegue vencê-lo na mente. Ou seja, se as suas dúvidas incluem o próprio fato de ser tal ato pecado ou não, fica muito mais difícil vencê-lo, mesmo quando somos inundados de culpa. É preciso encarar as dúvidas com seriedade.
Eu também tive muitas derrotas, mas, como a culpa nunca me deixava (e creio ser isto um sinal da misericórdia de Deus), eu continuava rogando a Deus que me libertasse, com muito choro. Posso dizer, com base em minha vida, que Ele nos liberta de pecados sim! Às vezes certos pecados demoram demais a ser expurgados da vida da gente. Mas é assim mesmo: o crescimento espiritual é lento e Deus trabalha conosco muito profundamente, durante anos a fio.
Acho que você pode insistir nisso: na santificação da mente. Buscar na Palavra, no aconselhamento e em tudo quanto é tipo de ajuda o esclarecimento das suas dúvidas. Procurar uma igreja fiel na pregação da Palavra (a pregação água-com-açúcar é, a meu ver, um dos maiores obstáculos para a santificação do cristão). O importante é que você não desista nunca. Saiba que, se você reconhece suas derrotas e se sente culpado por seus pecados, Deus não desistiu de você. Isso é sinal de amor e misericórdia da parte Dele. Persevere!
E, se quiser, coloque suas dúvidas aqui, terei o maior prazer em responder. Se não quiser deixar em público, pode me mandar como comentário com um endereço de e-mail. Eu não publico e respondo em pvt.
Quanto ao texto, acredito que se aplica mais ao pecador impenitente que se deixa guiar pelas "Jezabeis" da vida, e ainda se acha um cristão. Mas esse é um perigo do qual todos nós devemos nos precaver, durante toda a vida. Porque um pecado não abandonado sempre pode acabar se tornando uma porta para uma ausência total de arrependimento, o que a Bíblia chama de "endurecimento do coração", o que nos levará progressivamente para longe de Deus.
Grande abraço!
Querida Norma, que assunto pertinente, hein? Muito bom.
A Igreja precisa estar atenta à sedução da serpente. Jezabeis andam soltas por aí.
Mais uma música, não? Seu primeiro post foi sobre música também. Pink Floyd. Gostei.
Estamos "construindo" uma proposta de blog que tenha a nossa cara. Passa por lá. Ainda estamos apanhando um pouco no uso dessa nova ferramenta, mas, estamos gostando muito.
Abraços.
Querida Norma, há alguns meses descobri seu blog através do Tempora-mores e me tornei assídua, sempre venho aqui; vou encaminhar uma dúvida e gostaria que vc me respondesse por e-mail:
O fato de trabalhar com o ramo de entretenimento secular me faz uma pecadora? Tenho um Café/restaurante e lá tem bebida com álcool. Tenho pesquisado e estudado esse assunto desde que me converti; confesso a vc que preferia não vender, me sentiria mais aliviada, mas não posso também ser acusada pelo meu marido, futuramente, de ter prejudicado o negócio por causa de uma postura minha (ele não é convertido). Admito a vc que sinto esse incômodo, mas meu coração está confuso, ora me acusa, ora não. Qual a sua opinião?
Antes que eu esqueça, parabéns pelo bebê!! Deus abençoe sua família!
Licianeabf@gmail.com
Norma,
O seu texto mostra como a associação errada entre garantia da salvação e frutos pode levar ao distanciamento de Deus. Ou seja, posso tudo por que sou salvo? Os crentes de Tiatira e de Corinto pensavam assim, ou pelo menos parte deles. Há muitos hoje que ainda pensam do mesmo jeito, vivendo um cristianismo falso e hipócrita, fundamentado em hermenêutica rasa a respeito do "posso tudo naquele que me fortalece".
Na verdade, posso tudo, mas nem tudo me convém. Assim, a santificação é resultado da graça, dom gratuito de Deus, e não do cumprimento da lei, ou da observância de dogmas e legalismos.
Grande abraço.
Ricardo.
O que mais me assusta é que coisas "cotidianas" e "sem tanta importância" se repetem exatamente pelo motivo que você colocou aqui e espero que tenhamos olhos para ver isso sempre, afinal, não é sempre que um pecado começa grande (normalmente ele começa pequinininho, dentro do nosso coração e da nossa mente), não é mesmo?
nao entendo usar a religião que nao seja para uma busca de valores espirituais, pq sempre associam o sexo a pecado? tá eu sei que rola assim, mas o sexo com amor é tão espiritual quanto uma oração.
Não é bem isso, so sad. São várias coisas. Vou tentar explicar o que, para mim, é essencial.
O cristianismo é uma religião que não dissocia corpo e alma, nem rebaixa o corpo para exaltar a alma. Não acreditamos que haja na matéria alguma coisa intrinsecamente ruim; pelo contrário, Deus criou a matéria, que é boa. Quando fomos atingidos pelo pecado, isso se deu de forma geral: nosso corpo passou a ser passível de destruição e nossa alma se corrompeu de várias maneiras.
Agora, o que isso tem a ver com o sexo? Simples: o sexo é a união mais total que um homem e uma mulher podem ter. Essa união, se for dentro de um contexto onde ambos podem se separar ("ficada", namoro etc.), não é total. Logo, para que o sexo cumpra sua função de unir totalmente, precisa se dar no contexto do casamento - que para Jesus é indissolúvel ("O que Deus uniu, o homem não separe").
Se o sexo é praticado fora do casamento e os dois podem se separar facilmente, já não se trata de uma união total em amor como no casamento, mas sim de uma busca de prazeres egoísta, de uma satisfação de necessidades (físicas e emocionais) imediatas etc. etc. Se o outro pode ser abandonado, que "amor" é esse? Um amor condicional, sujeito a circunstâncias. Não é isso que Deus deseja. Ele não permite que algo tão radical como o sexo seja usado de modo leviano, produzindo sofrimentos para a pessoa que é abandonada, falta de esperança quanto a encontrar a pessoa "certa" e muitas vezes gerando bebês considerados "indesejáveis" (isso então é muito triste e injusto com a criança!).
Por isso, consideramos o sexo fora do casamento algo imoral, ao mesmo tempo em que vemos o sexo dentro do casamento algo lindo e completo, do jeito que Deus deseja.
Abraços!
Oi, Liciane,
Vou falar de minha opinião, o que não impede que um pastor possa fornecer uma palavra mais abalizada, tá? ;-)
Acredito que, o negócio sendo de vocês dois, e seu marido não sendo convertido, não há muito a fazer. Se você pressionasse para ele se livrar das bebidas, seria considerada "a religiosa chata" e isso não ajudaria em nada seu testemunho diante dele. Pelo contrário, a sua conversão deve mostrar a ele mais dedicação e doçura de sua parte, já que cabe a você apontar com atos (e, quando der, com palavras) os caminhos do Senhor. Se ele puder ver Cristo em você, irá se interessar pela religião cristã e, quem sabe, converter-se também. Daí sim, as posturas com relação ao negócio podem ser reavaliadas.
Isso me lembrou um restaurantezinho muito chique e gostoso em Niterói, de uma família de adventistas. O local era uma delícia, mas não vendia bebidas alcoólicas (e sim sucos maravilhosos e chiques com leite condensado, hummm!). Os donos avisavam esse fato na entrada do restaurante e diziam que os clientes podiam trazer as próprias bebidas para alguma comemoração. Geralmente as pessoas levavam vinho. Eu acho que essa sugestão dos adventistas é bem boa. Outra que acho bem legal - e de que sinto falta, tem mais em SP que em outras cidades - é um bar estilo anos 50, com imagens de carros, Elvis Presley, James Dean etc., e que só venda bebidas sem álcool tipo vaca preta, milk shake... e que funcione até tarde da noite. Eu ia AMAR um lugar assim! Hehehehe!
Mas qualquer mudança precisa ser consensual. Sendo o marido o chefe da casa, precisam partir dele as decisões. Por isso, eu diria para você não se preocupar com essa questão por enquanto - pois de fato não está em suas mãos - e orar para que Deus a ajude a dar o melhor testemunho ao seu marido, pedindo pela alma dele. Qualquer decisão precisa ser fruto de um longo processo de maturação e santificação em Deus. Que seu marido possa glorificar ao Senhor em breve!
Abração!
Casal 20,
Eu vi o blog e adorei! Já estou seguindo!
Abração!
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