Essa é uma análise do Segundo movimento da Sinfonia número 3, Lamentações, do compositor polonês Górecki. Não deixe de ouvir antes de ler: aqui. Basta rolar o cursor até a soprano Dawn Upshaw e clicar em "escuchar".
A peça se inicia com uma introdução instrumental leve e de curta duração, para logo dar ensejo a acordes bastante graves em ritmo lento, cuja cadência sugere o badalar de sinos fúnebres. Logo o canto da soprano se inicia bem grave também, acompanhando os acordes com poucas variações, como em uma linha horizontal. Em seguida, os acordes começam a realizar uma subida rápida (se comparada ao andamento), com a voz da soprano se destacando cada vez mais, descendo apenas em poucos e breves momentos – como quem pára para descansar em uma escada muito extensa, ou como quem recua em uma dança apenas para ganhar um impuso maior. Finalmente, a voz atinge o ápice – ou vários momentos de ápice, sempre recuando brevemente – , e é nesses momentos mais agudos que o acorde dominante passa a maior, em vez de menor. Para quem se entrega a uma escuta atenta, ainda que não compreenda o que se canta, é notável o ambiente de profunda tristeza e dor que a peça evoca. Pois são justamente esses momentos agudos, de acordes maiores, que configuram uma espécie de alívio em meio à lamentação: quando a dor parece chegar a um ponto insuportável, evocado pelos acordes ainda menores, a subida da voz e a mudança para acordes maiores parecem insuflar uma grande lufada de consolo em meio à dor. Em todo o movimento, a dor é grande, mas não é o fim. Há esperança.
Quando li o que inspirou as Lamentações, fiquei impressionada com as associações entre a música e o que se canta. Embora cada uma das três lamentações tenha uma letra já pronta vinda de lugares e épocas diferentes – a primeira é de um monastério do século XV, de uma coleção chamada “Canções de Lysagóra”; a segunda, uma inscrição encontrada em um dos porões da Gestapo em Zadopane, de uma jovem de 18 anos presa em setembro de 1944; e a terceira, uma canção folclórica em dialeto Opole – , há um tema comum entre as três: uma mãe perde o filho assassinado. Isso ocorre em uma situação de injustiça, como foi o caso de Jesus Cristo (primeiro movimento), da jovem aprisionada que escreve a sua mãe (segundo movimento) e de um filho morto por inimigos (terceiro movimento). No segundo movimento, analisado aqui, a letra é o texto da jovem encarcerada pela Gestapo à sua mãe, pedindo-lhe que não chore, seguido de uma oração a Maria (Gorécki era católico).
Encontramos assim na letra do canto dessa lamentação a mesma atmosfera de dor evocada pela música, mas uma dor que tem escapatória na certeza de um amparo celestial: consolo que, em meio à dor expressa pelas “linhas horizontais” das notas graves e dos acordes menores quase sem variação, surge nos pontos fortes da peça – os agudos e os acordes maiores que os acompanham.
Creio que, ainda que se trate de uma peça com marcada conotação católica, o cristão protestante poderá apreciá-la pela profunda dor filial que ela evoca (a perda de um filho é talvez uma das dores mais lancinantes que existem), bem como pela conotação geral que infunde no ouvinte: a certeza de socorro do Alto como única solução possível para a dor irreparável da morte, intuitivamente percebida para quem não sabe polonês. Apenas isto já basta para que a peça seja uma obra de arte singular em meio à reiterada negação de qualquer instância transcendente, vício constitutivo de nossos tempos, fundo comum a quase toda produção artística atual.
Desde que a descobri, não posso ouvi-la sem cair em prantos convulsivos. Já bem pequena era muito sensível a questões da maternidade perdida: passava um sofrimento semelhante à audição de uma música cantada por Zizi Possi, “Pedaço de mim”, imaginando logicamente um filho pranteado. Para a análise da peça de Gorécki – que seria parte de minha tese de doutorado, mas acabou sendo descartada – , ouvi a composição três vezes, mas não houve “distanciamento crítico” algum: chorei da mesma maneira nas três. (Por isso, também, meu horror absoluto, e igualmente bem antigo, ao aborto.) Que Deus tenha recompensado a Gorécki por isto.
Em tempo: talvez eu nunca tenha filhos biológicos. Mas sei que Deus olha para esse impulso de amor maternal em mim e prepara filhos adotados – sejam bebês rejeitados, sejam discípulos, saberei apenas quando vierem. Não importa o que aconteça, Deus seja louvado!
15 comentários:
Meus impulsos paternais são desse tamanhozinho aqui, mas achei tocante o texto. São raros em minha vida os momentos nos quais uma atitude planejada de distanciamento crítico é destruída e moída a pó por sensações e sentidos e mensagens, mas noto que são os momentos quando sou confrontado com grande beleza, mas uma beleza com profundidade, uma beleza que contém em si algo imemorial (digamos logo, eterno) que atravessa o desespero e a alegria, carrega-os consigo, e os leva para um lugar além (quase sempre, aos pés de Deus). Não sou dos mórbidos que apreciam coisas tristes pela tristeza que há nelas, mas existe algo dentro de nós- pessoas quebradas e de felicidade temporarária (por enquanto) que somos- que só a tragédia consegue alcançar. O trágico é uma lâmina emocional que nos abre, e permite em nós entrar algo mais belo ou horrível, e de qualquer forma mais terrível, do que achavamos estar preparados para receber. E (como no caso do aborto) nos faz perceber o quanto é urgente que lutemos para corrigi-lo.
Há como divorciar os sensos que nossos corpos recebem dos sentidos que atribuímos aos sons, e mais, aos sentidos pessoais que somamos com a mensagem original da arte em questão? E se temos como separar a beleza de nossa reação- se nos tornamos mestres em suprimir nosso êxtase e gratidão e nossa angústia justificada, em apagar nossa ira quando ela deve estar acesa e em cobrir com cestos todas as nossas luzes- isto é uma boa coisa?
Verdadeiramente fiquei tocado com a peça e com tuas palavras, tão humanas, sutis... Obrigado!
"Para quem se entrega a uma escuta atenta, ainda que não compreenda o que se canta, é notável o ambiente de profunda tristeza e dor que a peça evoca."
"poderá apreciá-la pela profunda dor filial que ela evoca (a perda de um filho é talvez uma das dores mais lancinantes que existem), bem como pela conotação geral que infunde no ouvinte: a certeza de socorro do Alto como única solução possível para a dor irreparável da morte, intuitivamente percebida para quem não sabe polonês. Apenas isto já basta para que a peça seja uma obra de arte singular em meio à reiterada negação de qualquer instância transcendente, vício constitutivo de nossos tempos, fundo comum a quase toda produção artística atual."
"Não importa o que aconteça, Deus seja louvado!"
Marcos Rangel.
Minha amiga NORMA,
Que maravilhas: a música que nos serviu e o post em si.
Que grande riqueza é a música sacra e que grande (e bela) confissão pública você nos faz.
Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
Vou repercutir em breve no meu blog.
Amitiés,
Beto.
ah, Deus!
que fofura!!!
Isaías 48, 10:11 e 15.
"la expresión que necesitan en cada momento, fragilidad, melancolía, humor y pasión."
Marcos Rangel.
Queridos amigos, muito obrigada pelos feedbacks emocionados e inspirados. Mas não deixem de ouvir a música e, ao ouvi-la, coloquem também suas impressões aqui!
Abraços e beijos a todos!
Norma,
Já conhecia essa belíssima peça, de um vídeo do Youtube feito na campanha portuguesa pela vida. A música insere-se durante a gravação de um aborto, junto de uma declamação de poesia sobre toda a vida que o pequeno bebê não viveu. É tocante.
Uau, Pedro! Não vou nem ver agora, porque não posso chorar. Estou burilando a tese e mergulhada em um espírito analítico, se cair em prantos agora o trabalho já era! :-)
Obrigadíssima pelo link!
"Ó vós todos os que passais pelo caminho,
atendei e vede
se há dor semelhante à minha dor."
(Lamentações 1,12)
oi Norma
Sendo o assunto "lamento", desejo fazer-lhe a indicação do livro do filósofo Nicholas Wolterstorff (Calvin College), parece-me que é a única obra dele publicada em português! O título do livro é "Lamento por um Filho" (Ultimato Editora, 1997). É um desabafo e um lamento pelo falecimento prematuro de seu filho Eric que, aos 25 anos, morreu num acidente de alpinismo na Áustria. Um livro para quem chora com integridade...
Pr Ewerton B. Tokashiki
Eu, quando crescer, quero escrever coisas assim.
Lindinha!!!!Te amo...
Confesso que às vezes sou tomado por certa tristeza e melancolia, e alguns momentos de incredulidade em relação à aventura humana... Outros momentos sou tomado de certo gozo e alegria, quando consigo enxergar (muitas vezes pela via do mais transitório) algo de permanente que aponta para o Divino, para o Eterno, o Verdadeiro, o Bom e o Belo. A música indicada me causa impressões aparentemente paradoxais, como você ressaltou, é quase impossível escutá-la e não notar o teor melancólico, tristonho, doloroso, mas isso exposto, ou melhor, expresso de uma forma harmônica, intensa, verdadeira, solene, enfim, bela, e que parece deixar subtendida a mensagem de que há algo superior a tal melancolia, tristeza e dor, e para o qual recorremos e reclamamos ser ouvido nessas horas, e com alguma certeza de que só por esse algo poderemos ser compreendidos. A mim me parece que a peça nos remete de alguma forma à nossa pequenez e a uma grandiosidade que nos transcende, a uma Pessoa Superior que funciona como o nosso interlocutor e como a única pessoa capaz de nos compreender perfeitamente, e nos consolar, e solucionar nosso "problema". Aponta também para a idéia de que no fim das contas as coisas se resolverão. Essa nossa subentendida capacidade de comunicação com o Transcendente mostra que somos seres dotados de certa dignidade, parece insinuar a possibilidade de nossa eternidade no seio dessa Transcendência, ao mesmo tempo que aquilo que A comunicamos mostra nossa pequenez... Sei lá, talvez em última instância os sentimentos despertados por uma peça como esta remeta à Queda originária, à nossa condição afastada do Criador, e à possibilidade de reatar esse vínculo, na pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Beijo no coração,
Marcos.
Norma:
Bem-aventurados os que choram.
Belissimo o seu texto! Enquanto lia, lembrava Camoes. Abra a Lirica e releia pausadamente:
Sobolos rios que vao
Por Babilonia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembrancas de Siao
E quanto nela passei.
..................
A Vos so' me quero ir
Senhor e grao Capitao
Da alta torre de Siao,
A qual nao posso subir
Se me Vos nao dais a mao.
...................
Nao basta minha fraqueza
Pera me dar defensao,
Se Vos, Santo Capitao,
Nesta minha fortaleza,
Nao puserdes guarnicao.
...................
Quem do vil contentamento
Ca' deste mundo visivel
Quanto ao homem for possivel,
Passar logo o entendimento
Pera o mundo inteligivel:
Ali achara' alegria
Em tudo perfeita e cheia
De tao suave harmonia,
Que, nem por pouca, escasseia,
Nem, por sobeja, enfastia.
Ali vera' tao profundo
Misterio na Suma Alteza,
Que, vencida a Natureza,
Os mores faustos do Mundo
Julgue por maior baixeza.
O' tu, divino aposento,
Minha patria singular,
Se so' com te imaginar
Tanto sobe o entendimento,
Que fara', se em ti se achar?
Ditoso quem se partir
Pera ti, terra excelente,
Tao justo e tao penitente,
Que depois de a ti subir
La' descanse eternamente.
Como dizia Corcao, ha' na Lirica de Camoes poesia para abastecer de gloria pelo menos uma duzia de poetas. Quando eu estudava em Nova York, meu professor de Geometria Diferencial me disse que estava aprendendo a lingua portuguesa, so' para poder ler Camoes no original!
Para nao me prolongar demais, minha citacao final e' o celebre texto camoniano sobre o desconcerto do mundo:
"Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcancar assim
O bem tao mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, so' pera mim
Anda o mundo concertado."
Seu amigo Hereticus.
Norma
É grave a censura ao Júlio Severo. Se deixarmos passar em branco, além da injustiça em sí, os censores vão ficar ainda mais ativos.
O endereço do escrítório da Google em São Paulo é:
Sr. Alexandre Hohagen
Diretor Geral
Av. Brigadeiro Faria Lima
n° 3900 5 Andar
São Paulo, 04538-132
Renato
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