Dos vídeos que tenho aqui no computador, há dois que não me canso de ver. O primeiro é Down By the River, com Crosby, Stills, Nash and Young, gravado em um estúdio de televisão. Nos primeiros momentos, você olha para os instrumentos redondos deles, as camisas engomadas e abotoadas, os cabelinhos (todos) muito bem penteados com escova, sem um fio fora do lugar, e duvida que dali possa sair algo contagiante. Que nada. Desde os primeiros acordes, eles quase não olham para os espectadores e parecem desconhecer o paradeiro da câmera. Olham, sim, uns para os outros, e um prazer evidente demais para ser ignorado os envolve e unifica o que fazem. Cada um parece em sintonia o tempo todo com o outro e, ao mesmo tempo, concentradíssimo no próprio instrumento. O resultado disso é mágico: como se não houvesse platéia, eles não tocam para quem os vê, e sim para eles mesmos. Quando as guitarras começam a dialogar, então, é como se sequer os instrumentistas estivessem ali: o duo rascante de cordas rouba a cena, o som ganha vida, e quando Young recomeça a cantar é com a inocência de quem ignora por completo a magia que acabara de se efetuar. Bonito de se ver.
O segundo é I’m Down, no Shea Stadium, com ninguém menos que... The Beatles! Sim, o grupo que começara a fazer sucesso debaixo das asas cautelosas de Brian Epstein – que inventou seus penteados, uniformizou suas roupas e fez com que agradecessem juntinhos com uma reverência ao fim de cada apresentação – ainda era capaz de mostrar no palco uma alegria deliciosamente infantil. Aqui, o prazer não é quieto, concentrado, como em Neil Young e seu grupo; é, sim, cheio de pulos, risos e muito suor, como uma correria de crianças no parquinho. Bom, se não é novidade ver Paul McCartney sorrir ao tocar seu baixo, nesse vídeo ele ri, se sacode todo e dá um surpreendente giro de olhos fechados – coisa de delírio cinematográfico... No canto do palco, John Lennon toca seu órgão Hammond e divide com George Harrison o microfone do coro. É um show à parte: os dois estão impossíveis, trocando olhares cúmplices e gargalhando sem parar. Divertindo-se a valer, John quase não pára quieto em frente ao instrumento, mas ergue as mãos para a platéia e percorre freneticamente o teclado com o cotovelo, várias vezes. Você se deixa levar pelo entusiasmo do grupo e fica difícil deixar de gargalhar junto com eles.
Alguns – os mais cínicos, talvez – dirão: “Mas Norma, são as drogas.” Sei não. Hoje também há drogas (quem duvida?), e não vejo nenhum artista se divertindo no palco. Pelo contrário, vejo-os executando movimentos cuidadosamente coreografados, perdidos em meio a mil pirotecnias, voltados sobretudo para os olhos fixados neles e conscientes demais do que fazem para se soltar. O foco, antes na música e no prazer de fazer música, parece estar exclusivamente na recepção, quando obrigatórios homens de marketing ganham fortunas planejando os efeitos que o artista deve causar na platéia. Com exceção dos “dinossauros do rock” – Rolling Stones, Pink Floyd, o próprio Neil Young – , não vejo muita autenticidade nos shows de rock ou pop-rock de hoje. Há muito teatro, o que também é bom de se ver. Porém, confesso que, quando vejo esses vídeos, sempre me espanto ao comparar as duas épocas e constatar a existência de um tipo de exposição em que a identidade e a presença do artista não eram tão calculadas, e sua espontaneidade era realmente espontânea.
Isso tudo dá no que pensar: advoga-se e luta-se tanto pela espontaneidade desde os anos 60, época das explosões na cultura, nas relações conjugais, na educação infantil. Porém, sem uma base identitária ou um desejo real de transparência - que só a fé em Jesus pode dar - , essa espontaneidade acaba sendo engolida por mais uma necessidade de modelo exterior, para ser pasteurizada, condensada e vendida. É o processo natural do homem natural, que tende a compensar o pecado com diversos tipos de vestimentas. O problema é que o mesmo processo tem vingado nas igrejas, e aí devemos refletir bastante sobre suas conseqüências: uma espontaneidade fingida, cercada por novas regras - bem mais sutis e interiorizadas que as anteriores - , pode fazer com que o cristão perca seu bem mais precioso: a simplicidade para com Deus, mesmo a portas fechadas com Ele. A desenvolver (prometo!) em próximo post.
10 comentários:
Muito bom esse post. Não lembra em nada suas propostas mais conservadoras, na área teológica. De fato, há uma robotização em todas as áreas chegando à Igreja e ao culto. Uma das razões que me entediaram.
Engraçado você dizer isso, Lou. Para mim é o oposto: tenho encontrado mais liberdade e espontaneidade justamente entre aqueles que professam uma teologia reformada e conservadora. Na minha opinião, os limites em si não são o problema, mas saber quais devem ser e onde aplicá-los. Percebo que há hoje, nas igrejas em geral, uma subjetivização dos limites - ou seja, uma série de regras implícitas de comportamento e postura diante de Deus - que, além de não se enunciarem biblicamente, sufocam a expressão individual e não servem para nada de substancioso. Mas, como disse, isso é assunto para um próximo post. :-)
Olá Norma. Antes do comentário propriamente dito, quero dizer que estou muito contente em descobrir este espaço de discussão que abarca a vida humana em suas diversos aspectos, tendo o cristianismo por pano de fundo. Descobri este espaço "por acaso", quando de uma pesquisa sobre a polêmica do teísmo aberto. Graças a Deus por sua vida.
Bom, quanto a forçosa "espontaneidade", entendo que esta advém da tentativa de a igreja se desprender de legalismos e religiosidade. Estamos indo de um extremo a outro, quando o ideal é o equilíbrio. Aliás, o ideal e o que demanda menos esforço, pois demonstrar ser o que não se é em tempo constante é trabalhoso demais. Entendo também que a dificuldade em se alcançar o equilíbrio é fruto de um cristianismo de super crentes, no qual o que erra é execrado, não há lugar para exposição dos cansaços, das fraquezas e limitações, portanto, para que não sejamos preteridos do convívio, fazemos de conta.
Não temos paciência para com os fracos, pois somos muito "santos", e não encontramos paciência quando os fracos somos nós, "pecadores incorrigíveis". É logico e evidente que há exceções, pois Deus sempre reserva para si os que não se dobram a Baal, no caso os que não erguem altares em seu próprio louvor, já que estão cientes de que toda boa dádiva vem de Deus e que são o que são pela graça divina. Que o Senhor nos ajude a não nos separarmos da simplicidade do evangelho, deixando de lado as complicações de uma vida de faz-de-conta. A Ele, todo o mérito.
Eu quero agradecer pelos vídeos. Bem legais. Assim, lendo o que escreveu e vendo os vídeos, fica aquela impressão de "não estamos sós". Quero dizer, o problema não é só dos evangélicos. Todos estão interessados em vender imagem, em sacrificar a essência, etc.
Espero você desenvolver essa idéia dessa falta de sinceridade e esponteneidade entre os cristãos.
Enquanto isso, fala mais do que você ouve! :)
Beijão, Norma.
Olá Norma.
Creio que a raiz desse problema está em nossa motivação.
O que é que levava os Beatles a cantar? O que é que movia Jim Morison? Qual o incentivo que incendiava a guitarra de Jimmi Hendrix? Com certeza não eram os holofotes da Britney Spears, mas sim o prazer que havia em manifestar sua arte. As gargalhadas espontâneas dão testemunho disso.
Agora voltemos nossos olhos ao meio cristão. O que é que motiva um ministro de louvor a gritar em meio a uma música? A dar pulos e bater palmas? A chorar copiosamente? Que força nos move a isso, ou nos deixa de mover a isso (quando assim convém)?
Sabe, há tempos a igreja vem tentando de todas as formas "domesticar" o Espírito Santo. E o resultado disso não poderia ser outro: programações maravilhosamente bem elaboradas, mega-shows da fé. Danças, curas, palavra, música, orações... Tudo me seu lugar. Meticulosamente dosado. Afinal, se houver oração demais e dança de menos o "povo" não vai se interessar por nossos "cultos"...
Aí vem a distorção do que é "culto". Temos "Culto da Família", "Culto de Libertação", "Culto dos Empresários", "Culto da Fogueira Santa da Faixa de Gaza"... e por aí vai.
E o culto a Deus vai sendo esquecido.
Na real, temos que oncordar que os nomes desses "cultos" estão corretos. Afinal quem está sendo cultuado nesses rituais é mesmo a família, os empresários, a fogueira santa, etc.
Resta-nos lembrar que o Senhor está à porta de igreja de Laodicéia. "Eis que estou à porta e bato, se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, eu entrarei"...
Valeu Norma!
Fica claro que o segredo da motivação cristã está na simplicidade do relacionamento com Deus, como evidencia o trato e convivio de Jesus com as pessoas...
Paulo falava muito mais bonito (e difícil) que Jesus, tanto é que muitos cristãos evangélicos não indentificam com clareza seus ensinamentos e tornam alguns assuntos polêmicos e de conclusão duvidosa...
Contemplando a Cristo, Sua maneira simples, clara e direta de se relacionar, rumamos em direção ao equilibrio, bom senso e verdadeira motivação...
Cara Norma:
Eu não sei qual a sua opinião, mas eu sou do contra: Pink Floyd foi muito mais marcante na História da música do que os Beatles. Concorda ou discorda ?
Você disse tudo, Giancarlo: "domesticar" o Espírito Santo. As pessoas têm medo de um Deus livre, soberano, diante de quem estão todos os nossos dias. Por isso os pacotes de controle das igrejas, as infindáveis programações, as invenções de regras cada vez mais subjetivas, os Open Theism da vida. São pessoas que acabam fazendo culto a seus próprios desejos, não ao Deus da Bíblia, que não permite ídolos.
Não concordo com sua dicotomia, André (Jesus: simplicidade X Paulo: fala bonita mas difícil). Jesus também deixava muita coisa obscura no que dizia. E Paulo fez teoria a partir dos ensinamentos Dele, contribuindo para "arrumar" e aprofundar o que Jesus falou. O resultado é que tanto o simples como o erudito são atingidos, se tiverem o coração sensível a Ele.
Fábio, nem me pergunte isso: amo os dois. Os Beatles foram minha paixão de pré-adolescente, e Pink Floyd, de adolescente. No final, fui para o jazz e a música clássica, mas ainda ouço e tenho um carinho muito especial pelos dois grupos.
Geison e Nagel, eu é que agradeço a vocês a leitura atenta e interessada. Abração!
Olá Norma. Esse texto seu já faz uns anos que foi escrito, e o li agora. Gostei muito do modo inteligente e cristão de abordar o assunto. Eu sou fã de rock e heavy metal, e penso mais ou menos assim com relação aos artistas... aqueles artistas que sabem ser espontâneos ao realizarem seu trabalho. Tu apontou sobre as drogas e os possíveis comentários sobre o uso de drogas e seus efeitos no palco. Quero corroborar contigo. Por exemplo, Brian Jones, o famoso e finado guitarrista do Rolling Stones, que quanto mais usava drogas mais triste e decadente ficava. Por fim foi demitido. Logo depois morreu. Muito do que há no rock e no metal é alegre e estimulador para minha inteligência e consciência, e o que é assombroso também o é. Meu interesse e posteriormente minha incursão no estudo das religiões e for fim, minhas leituras bíblicas, minha preocupação com tentar praticar o que compreendo dos Evangelhos começou com meu envolvimento no rock e no metal. Acredito na flexibilidade da Igreja Católica e posso ler isso em sermões do padre Antonio Vieira, no caso sito uma passagem dele aqui:
Mandou Deus ao profeta Jonas que fosse pregar à corte de Nínive. Não
se acomodou o profeta com a missão. Estava no mesmo porto um navio de
vergas de alto para Jope, pagou o frete, diz o texto, e embarcou-se
nele. Que Jonas não quisesse pregar na corte de Nínive não me admira,
que isto de pregar nas cortes é navegar entre Cila e Caribdes: ou não
haveis de cortar direito, ou haveis de dar a través com o navio. Mas
que Deus, mandando a Jonas pregar a Nínive, o deixe embarcar para
Jope! Isto não entendo. – Senhor, vossa divina Providência não tem
destinado a voz deste homem para o remédio de Nínive? Dos desenganos e
das verdades que há de dizer este pregador não depende a conversão e a
conservação daquele rei, daquela cidade, daquele reino? Pois, se
quereis que va a Nínive, por que consentiu que se embarque para Jope?
– Deixai-o ir, que essas são as maravilhas da minha Providência – diz
Deus: – há-se de embarcar para Jope, e no cabo há-se de achar em
Nínive. E assim foi. Levar um homem a Nínive pela carreira de Nínive,
isso faz um piloto que não sabe ler nem escrever; mas levá-lo a Nínive
pela derrota de Jope é arte só daquela sabedoria suprema que tem o
leme do mundo na mão. É verdade que navegar para Jope quem tem
obrigação de ir para Nínive é um modo de caminhar custoso e muito
arriscado: é custoso, porque Jonas gastou debalde o seu dinheiro,
pagou o frete, e não fez a viagem; é muito arriscado, porque ele
embarcou-se em um navio, e desembarcou na boca de uma baleia. Mas que
seguro tem o porto quem navega nos braços da Providência divina, ainda
quando a resiste e se opõe a ela! Haverá mais ou menos tempestade,
haverá maior ou menor baleia, mas nem a fúria da tempestade, nem as
gargantas e ventre da baleia poderão estorvar os intentos de Deus.
Ameaçar-vos-á a tempestade, mas não vos há de afogar; tragar-vos-á a
baleia, mas não vos há de digerir. Assim levou Deus a Jonas a Nínive
pelos caminhos de Jope; assim levou: Cristo aos discípulos a Jerusalém
pelos caminhos de Emaús: Et ipse ibat cum illis.
Extrato do: SERMÃO DA PRIMEIRA OITAVA DA PÁSCOA,
NA CAPELA REAL, ANO DE 1647
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