21 junho 2012

A ceia acridoce (2): os fatos


Recebi no Facebook críticas de participantes da Consulta da Fraternidade Teológica Latino-Americana (dias 7 a 9 de junho em BH). São críticas superficiais e tolas como essas: eu não estava lá, eu não vi o ritual todo, eu não ouvi as palavras que foram proferidas, eu não conheço a Fraternidade etc. São alegações que desqualificariam qualquer pessoa a dizer qualquer coisa sobre eventos nos quais não esteve presente, pois ignoram a função descritiva e narrativa da testemunha. Sim, eu me baseei no relato de uma só testemunha, conforme afirmei na postagem anterior. No entanto, à medida que recolho mais informação de mais testemunhas ou de quem conversou diretamente com testemunhas, não encontro nenhum motivo para modificar meu texto original, pelo contrário. Querem ver?

O primeiro relato: Na consulta da FTL, em um culto, o pastor distribuiu limões e doces atribuindo outro significado a eles logo antes da ceia do Senhor. Consta que o pastor teria dito: “Não vou consagrar esses elementos (os limões e os doces) porque alguns podem não entender.”

O relato mais completo: Durante a consulta da FTL, percebendo que as pessoas estavam muito tristes pela morte recente de Robinson Cavalcanti, o Pr. Carlos Queiroz pensou em fazer uma “dinâmica” durante o culto. Na mesa da comunhão, colocou bandejas com fatias de limão e doces de leite (ou, segundo uma testemunha, doces de amendoim). Nessa “dinâmica”, ele fez alusão às ervas amargas e ao mel do Pessach judeu, explicando que o limão representava o amargo da vida, e o docinho, o doce da vida. Mencionou que não iria “consagrá-los” porque muitos poderiam não entender. E, por fim, distribuiu-os, todos comeram e a “dinâmica” acabou. Em seguida, da mesma mesa, foi ministrada a ceia normalmente.

Todos os aspectos de minha postagem anterior estão presentes no relato expandido. Na verdade, o relato expandido confirma alguns aspectos percebidos no relato menor. Vejamos. Como ministrante, logo antes da ceia, o pastor apresentou à igreja reunida elementos novos e significados inventados por ele mesmo, utilizando como referência para tal um evento do Antigo Testamento que prefigura a ceia (e que, como a ceia, também foi uma ordenança de Deus, não de homens). Com isso, o pastor “mimetizou” a cena da ceia antes da ceia original para comunicar um ensinamento que não coincide com o ensinamento da ceia. Além disso, ao afirmar que só não consagraria os elementos porque "alguns poderiam não entender", deixou clara a analogia com a ceia (somente pão e vinho são "consagrados"), já que o impedimento era apenas por evitação do escândalo.

Esse mimetismo é idólatra por modificar o significado original da comunhão. Na ceia de Cristo, somos irmãos em torno do partilhar do corpo e do sangue de Cristo, que apontam para seu sacrifício redentor. Na “ceia” do Pr. Carlos Queiroz, houve o partilhar dos “acontecimentos doces e amargos da vida”. Simbolicamente, o resultado é desastroso: os presentes foram levados a comer e beber juntos os “acontecimentos da vida” do mesmo modo com que comem e bebem o sangue de Cristo. O consolo pretendido pelo pastor consistiu em aproveitar o formato da ceia para comunicar algo como “nós estamos juntos para o que der e vier e nos alimentamos desse sentimento” e não “nós estamos unidos por Cristo e nos alimentamos de Cristo”. A equiparação, produzida durante o culto e logo antes da ceia, gerou o equivalente a um outro evangelho.

Diante disso, pouco importa se “a dinâmica foi uma parte separada da ceia”, como também me disseram alguns. As semelhanças dessa “dinâmica” com a ceia são muito mais numerosas que as diferenças: as palavras e os elementos foram inseridos em contexto de culto; os elementos foram colocados juntos na mesma mesa; os elementos seriam consagrados caso não houvesse possibilidade de escândalo; o procedimento consistiu em comer e beber ritualmente como expressão de comunhão e amor fraterno. Além disso, muitas pessoas de fato interpretaram a “dinâmica” como algo que fez parte da ceia, o que aponta, no mínimo, para uma confusão teológica “dos diabos”. Tudo isso se configura um atentado ao sentido da ceia, que tirou Cristo do centro no espírito dos presentes.

Se o pastor estava consciente de tudo isso? Não tenho a menor ideia, e até acredito que não estava. O diabo certamente estava e se divertiu muito com o episódio.

Meu marido André Venâncio analisou com muita pertinência as críticas recebidas por mim no Facebook aqui.  

Adendo: Como já percebeu certamente o leitor atento, o problema que descrevi vai muito além de uma mera troca de elementos, razoável e necessária no contexto missionário, em regiões onde simplesmente não há nem uva, nem trigo.

5 comentários:

Alceu Lourenço disse...

Oi, Norma.
Quero acrescentar algo que parece-me que tem passado despercebido nos argumentos: a simples necessidade de acrescentar uma "dinâmica" no culto para satisfazer o anseio de expressar sacramentalmente (ou seja, por meio de elementos significantes) o quanto compartilhamos a vida como irmãos já indica muito bem o quanto a Palavra perdeu impacto e autoridade na mente.
Paulo não ligou diretamente a participação na ceia com a participação no corpo místico de Cristo - e à consciência de cada cristão de ser membro do corpo de Cristo e uns dos outros?
Não ligou-a igualmente com a expectação da volta de Cristo - que trará consigo os que dormem nele e a vitória contra a morte?
Quem precisaria de limões e docinhos diante destas verdades?

Norma disse...

Muito boa percepção, Alceu! É isso mesmo: a própria necessidade de acrescentar a dinâmica já aponta para um prévio esvaziamento de sentido da ceia. É sintomático que a notícia da dinâmica tenha sido acrescentada do seguinte comentário: "Vida e comunhão é muito mais que 'elementos e rituais'." Só isso já daria uma tese, hehe! Abraços!

Casal 20 disse...

Querida Norma, aproveitando seu adendo, repito e me explico:

"É preciso que o cristão seja mais crítico com as disciplinas oferecidas a ele e, também, menos pragmático na área de evangelismo, do contrário, daqui há pouco, estaremos celebrando a ceia do Senhor com suco de guaraná e pão de queijo para celebrar a independência da teologia brasileira do imperialismo teológico americano e europeu. Trágico!"

No contexto missionário, sei que em lugares onde não há nem a uva e nem o trigo, transposições serão feitas tranquilamente. E sei que você também me entendeu, mas acho por bem fazer este meu adendo ao seu adendo.

Até porque o que estamos ambos criticando é a ideologia que está maniqueando toda essa ação por trás do evento da "Ceia acridoce". Agora, o que me surpreende são duas questões: 1º) a tristeza pela morte do Bispo Robison e 2º) que a maioria dos presentes eram da IPB.

Morte é sempre triste (ainda mais trágica), mas é de se ressaltar a purpurina lançada sobre alguém que desvirtuou o evangelho e semeou contenda e confusão. O fato de que a maioria dos presentes eram pastores da IPB só confirma o que há anos venho repetindo: a IPB precisa ter uma Palavra oficial sobre o namoro de seus ministros com ideias e projetos que desvirtuam a sã doutrina. A revista Ultimato dedicou uma edição só em louvor e honra ao Bispo falecido e lá também estão muitos pastores da IPB. A Fraternidade é uma reedição do antigo MEP e suas bases são a Teologia da Libertação, logo, não podemos esperar outra coisa. Mas da IPB, eu espero uma posição. Embora ministros sejam livres, a instituição à qual eles pertencem tem o direito de manifestar sua posição quanto aos rumos que a própria Igreja no Brasil deseja tomar na sua luta em defesa do Evangelho puro e simples.

Abraços sempre afetuosos.

Fábio.

Sandro Wagner disse...

Não é uma acusação, mas uma pergunta...

Já fui em algumas igrejas em que não participei da Ceia, pois seu sentido havia se perdido. Como? Os pastores sempre começavam a Ceia avisando em alta voz: Esta mesa não pertence a 'igreja tal'[diziam o nome da igreja local ou denominação], mas pertence a Cristo. Portanto, TODOS estão convidados a ceiar. Sim, TODOS."

Já vi isso em comunidades independentes{sempre as ditas de 'vanguarda'...} e em uma igreja pertencente a IPB. E já vi em duas igrejas pertencentes a IPB pastores ministrarem a Ceia assim, dizendo que naquele dia eles estavam 'abrindo' uma oportunidade de TODOS ceiarem, não importando o credo.

A pergunta é: será que alguns dos participantes desta Ceia acridoce, já não fazem isto, ou já desejaram ser desta tal vanguarda, em suas igrejas locais?

Fica a pergunta para pensarmos!

C S Sampaio disse...

Olá Norma, outra vez deixo meu comentário. Em nosso grupo de debates, seu texto foi taxado de Fundamentalista, entretanto houve quem defendesse seu ponto de vista, incluso eu.

Mas gostaria de eixar uma cópia do comentário de um pastor amigo meu:

"O que gostaria de destacar - e por isso a preocupação com a forma - é a seguinte: sei que temos amigos pedobatistas e aspersionistas aqui, mas a forma da celebração dos sacramentos da comunhão e do batismo, e td discussão relacionada com eles, deriva justamente desta criatividade (mais do que contextualizacao) da praxis cristã. Ex.: a historia e a iconografia crista demonstram claramente que o sacramento do batismo era ministrado majoritariamente a adultos (a tradição apostólica de Hipolito de Roma é bem clara nisso, e majoritária pq temos noticias de batismo infantil em S. Irineu e Origenes) e por imersão, e assim continuou até a idade media. Com a visao da sociedade cristã como a cidade de Deus, e a falta de adultos a se converter em sociedades em que o outro era minoria e visto como diabólico, começou a pratica da aspersão aliada com a idéia da aliança familiar com Deus, num sistema de circunsisão espiritual, e voilá, vc tem anabatistas sendo afogados por católicos e protestantes e td mais, batistas x aspersionistas.

Bom, td pq? Alguém quis contextualizar algo claro e explicito no NT. A forma do sacramento eucarístico é o único sinal de união na praxis protestante, pois tds, com exceção das seitas, utilizam ambas espécies, pão e vinho, e com exceção dos católicos romanos, algo comum entre protestantes, ortodoxos e não Caledônios. Confesso que é uma união precária, pois vai desde o pão sem fermento até o puma, e do suco de uva até vinho alcoolizado.

Sou a favor da adaptação em um país onde não existe uva ou trigo, mas, na moral, contextualizar pra adolescentes numa sociedade pseudo-cristã? Estamos mascarando um problema crônico: a falta de catequese, ebd e sermões com teologia bíblica em nossas igrejas e nos lares, e uma tendência mt perigosa no evangelicalismo brasileiro de buscar uma identidade tupiniquim, jogando no lixo 2000 anos de tradição e fé cristã.

Aí depois não adianta lamentar-se de Macedo, Santiago, Terranova, Hernandes, pois eles estão levando a contextualizacao as ultimas. E dá-lhe rosa ungida e dente de ouro por aí."