25 julho 2007

Os cheiros da França

Cheguei à França no dia 11 de julho de 2007 para um estágio de quinze dias que incluía turismo puro, em Paris, e formação pedagógica, em Vichy. Éramos um grupo de quase cem professores de francês, vindos de três países: Brasil, África do Sul e México. Apesar de ensinar o idioma há mais de quinze anos, eu ainda não conhecia a pátria do idioma. O programa Profs en France, patrocinado pela Embaixada, foi inaugurado especialmente para esse fim: levar professores de francês à França, para que, por sua vez, eles pudessem mais eficazmente levar a França a seus alunos.

Sendo uma aficcionada por perfumes franceses, minha idéia fixa perfumística era experimentar o L'Heure Bleue e o Après L'Ondée, da Guerlain, perfumes do início do século com uma bela história para contar, pré e pós-guerra. Ainda queria dar uma boa olhada nos chamados perfumes de nicho, mais intimistas, de Serge Lutens. Era uma grande oportunidade, já que nenhum deles é vendido no Brasil. Em uma das inúmeras lojas Sephora de Paris, vibrei com um pequeno letreiro do lado de fora que dizia "800 m2 de diâmetro": um verdadeiro paraíso perfumístico de quase um quilômetro quadrado!

Percorrendo a loja, foi com um frêmito de alegria que me deparei com uma prateleira inteira só de Lutens, os papeizinhos embaixo e nenhuma vendedora pressurosa por perto, sentindo-me livre para experimentar à vontade. Preferi, no entanto, procurar primeiro pelo L'Heure Bleue. Afastei-me dele com horror na primeira borrifada, sem conseguir ultrapassar as fronteiras do tempo para apreciar suas qualidades - o oposto do que sinto com relação ao Chanel n.5, um de meus preferidos. Voltei aos Lutens, e o primeiro que espirrei no papel, Douce Amère, teve um efeito instantâneo de maravilhamento sobre mim. Bem colorido e vivo, uma flor delicada sobre uma base amarga mas nem tanto, o suficiente para equilibrar a doçura silvestre da flor. O segundo, Un Bois Vanille, pareceu-me baunilha pura, assim como Miel de Bois, mel puro. Saí de lá com Douce Amère em um braço e Un Bois Vanille no outro, cheirando-os de tempos em tempos, deixando-os misturarem-se com as ruas de Paris. Mesmo assim, não consegui decidir. E foi apenas alguns dias depois, já em Vichy, que consegui provar o Après L'Ondée e confirmar sua semelhança com o novíssimo Insolence, da mesma maison: o cheiro rosado de frutas vermelhas e violeta está presente em ambos, mas o Après L'Ondée é infinitamente melhor, mais natural e pluricromático. Não consegui me ver usando-o hoje, talvez em outra época mais adiante. Porém, em compensação, trouxe um saco de balas sabor violeta, que são como o Après L'Ondée em versão feita para o paladar. Gosto muito da idéia de doces de flores, e eles são muitos em Auvergne, região de Vichy.

Acabei trazendo na mala apenas um perfume, um antigo amor de adolescência, Tocade de Rochas, também só vendido na França. É um atalcado bem confortável, bom de usar até mesmo em casa, mas perigoso no calor do Rio de Janeiro. E foi na França que percebi algo de que tinha apenas ouvido em teoria: perfumes mudam segundo o local e o clima. Tinha levado para lá o Chance de Chanel, que no ar seco de Paris e de Vichy se tornou um aroma fresco de flores contido por uma madeira suave. No Rio, chegou a me enjoar por causa de um fundo que lembrava pipoca doce, mas na França usei-o quase todos os dias, com prazer.

Depois de muitos anos sem sair do Brasil, entendi que uma das experiências mais fortes a partir do contato com um país estrangeiro são os odores que sentimos nas ruas. O cheiro do metrô, do Sena, dos museus, das boulangeries e pâtisseries, das cercas vivas e dos canteiros de lavanda cuja visão me emocionou... Cada esquina era uma surpresa olfativa. Indissociáveis aos cheiros, os gostos não-cultivados no Brasil: o vinho rosé que acompanhava cada jantar leve servido pela nossa calorosa famille d'accueil, o pão mais consistente junto à variedade de queijos e geléias, o mil folhas de morangos e framboesa cuja doçura o creme discreto deixava generosamente sobressair... Agucei muito o olfato e o paladar na França, incorporando, além de idéias e impressões novas, também cheiros e sabores diferentes ao meu "dicionário de mortal", imagem que Charles Baudelaire aplica não só a viagens, mas principalmente à literatura, que compõe as viagens que fazemos sem sair de casa – para muitos, as melhores.

Em Vichy, bela cidade-calmaria de águas termais fundada por Napoleão III, o grupo se recuperou com alívio do estresse de Paris. Tivemos uma semana de formação intensiva no Cavilam, centro de formação lingüística que nos impressionou muito pela qualidade tanto dos cursos quanto dos contatos pessoais travados entre os professores (ou "formadores") e os alunos-professores que éramos. Para quem quer aprender francês na França, recomendo entusiasticamente o Cavilam. Além disso, Paris é boa para passear por alguns dias, enquanto Vichy é um encanto para se conhecer aos poucos e devagar, com suas construções antigas, suas praças e confeitarias chiques mas acessíveis. E, se você passear pela região de Auvergne, alegrará os olhos com aquelas visões magníficas que o brasileiro só conhece através de reproduções de quadros famosos: campos de trigo e plantações enormes de girassóis, como nos quadros de Van Gogh, além dos montes cheios de casinhas antigas rodeadas de pinheiros e, às vezes, pequenos caminhos que se ondeiam até se perder no horizonte. Impossível não se impressionar com a vivificação de tantas imagens do museu imaginário, expressão cunhada por André Malraux para a coleção de obras que trazemos dentro de nós.

Nossa formação pedagógica foi inaugurada com uma conferência do diretor do Cavilam, Michel Boiron, que começou distribuindo a todos os professores presentes as famosas pastilhas de Vichy. Com gosto de menta, e em versões de limão e anis, são feitas com as águas termais, conhecidas por suas propriedades digestivas. Pensamos todos: "Que simpático." Mas era muito mais que pura cortesia. Durante a conferência, além de nos fazer rir quase o tempo todo, Boiron pôs para tocar algumas músicas francesas e falou das flores de Vichy, mostrando-as na tela, explicando com isso tudo que a língua era muito mais que estruturas gramaticais e listas de vocabulário – era também sons, gostos, perfumes, paisagens. Foi de fato emocionante: ele nos falou do ensino do francês através do estímulo a nossos sentidos diante de fatos cheios de significado, ampliando as percepções sobre nosso trabalho, bem como suas possibilidades, para muito além dos limites das salas de aula. Ele não apenas falou sobre, mas mostrou, que língua é vida. E todo o resto da formação apenas confirmou isso. É algo que só poderia acontecer na França, onde tínhamos pela primeira vez todo o entorno mergulhado naquela língua e naquela cultura que até então conhecíamos apenas de longe. Como profissional do idioma, jamais esquecerei a vívida impressão dessa convergência.

16 comentários:

Ewerton B. Tokashiki disse...

oi Norma

Fico feliz com a tua prazeirosa experiência! A minha pretensão de estudar o francês era meramente acadêmico, mas a sua paixão por este idioma realmente é contagiante. É uma pena que eu more tão longe do RJ, senão você teria mais um aluno!

Que o nosso amado Deus continue sendo tão bondoso contigo
Pr Ewerton

Anônimo disse...

Você começou citando Baudelaire, e eu sigo:

L'Invitation au Voiage

Mon enfant, ma soeur,
Songe a la douceur
D'aller là-bas vivre ensemble!
Aimer à loisir,
Aimer et mourir
Au pays qui te ressemble!


Les soleils mouillés
De ces ciels brouillés
Pour mon esprit ont les charmes
Si mysterieux
De tes traîtres yeux,
Brillant à travers leurs larmes.

Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté.


Des meubles luisants,
Polis par les ans,
Decoreraient notre chambre;
Les plus rares fleurs
Mêlant leurs odeurs
Aux vagues senteurs de 1'ambre,
Les riches plafonds,
Les miroirs profonds,
La splendeur orientale,
Tout y parlerait
A l'âme en secret
Sa douce langue natale.

Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté.



Vois sur ces canaux
Dormir ces vaisseaux
Dont l'humeur est vagabonde;
C'est pour assouvir
Ton moindre désir
Qu'ils viennent du bout du monde.
Les soleils couchants
Revêtent les champs,
Les canaux, la ville entière,
D'hyacinthe et d'or;
Le monde s'endort
Dans une chaude lumière.



Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté.

Anônimo disse...

Querida!!

Q surpresa agradável saber d sua viagem. E, sem dúvida, um grande presente de Deus foi te conceder esta ida numa fase madura do conhecimento e amor pela cultura francesa, te permitindo as alegrias, os prazeres da vida adulta, da maturidade.

Bjs saudosos,

Ana.
PS.: Estou enviando no modo anônimo pq ñ tenho conta no gmail e nem página na web.

Anônimo disse...

Ma chère amie.
Bela descrição que me põe à espera de outros relatos sobre a viagem à amada França.
Amitiés,
Beto.

Anônimo disse...

Hereticus mete sua colher torta:

1) parabens, Norma, por sua viagem, tao proveitosa e deleitosa!

2) Os perfumes sentidos na propria natureza sao retidos na memoria muito tenazmente. Sessenta anos atras, quando eu ia, a pe', de casa ate' a escola primaria, havia na avenida que eu percorria um arbusto que eu nao dava importancia. Sessenta anos depois, repentinamente senti o mesmo perfume, e a memoria me transpos do lugar onde agora estava para aquela avenida e meus 10 anos.

3)Outro perfume que minha memoria nao esquece mais, foi sentido em Florenca. Indo eu a caminho da Universidade, onde estava a lecionar, e tendo saido do suburbio onde alugara um quarto, passei por um caminho ladeado por uma cerca viva de louro. O perfume intenso desse louro esta' agora para sempre associado, na minha memoria, a uma paisagem da toscana.

4)Agora minha colher torta: diametro e' uma linha imaginaria. Portanto a frase "800 m2 de diametro" e' uma impossibilidade logica. Deveria ser "800 m2 de area", ou entao "800 m de diametro"...

Abracos hereticos.

Gabriela Costa disse...

Querida Amiga,

Muito obrigada por sua generosidade em compartilhar conosco os cheiros, sabores e as lembranças da França. Foi maravilhoso o nosso encontro!

Beijos de Violeta!
Gabi

Anônimo disse...

Obrigada por sua delicadeza em compartilhar comigo, Gabi e Ju os cheiros e sabores deste lindo país...foi uma tarde inesquecícel em todos os aspectos!! Me sinto quase como se tivesse ido à França! Um dia vamos juntas!!!!!!!

Norma disse...

Lindinhas! Postaram quase juntas! :-)

Amo vocês!

Norma disse...

Hereticus, obrigada pelas correções. Seu relato é proustiano o início ao fim! ;-)

Queridos amigos, obrigada pelas palavras doces! É verdade que Deus tem sido muito bondoso comigo.

Beijos a todos!

Leo Lama disse...

Que alma sofisticada é a sua:perfuma.

Anônimo disse...

Querida Norma,
Adorei ler sobre sua viagem para Paris... Nesta época do ano (verão no Hemisfério Norte), as luzes dos céus devem ser fascinantes. Tudo deve ser tão diferente.
Sua descrição de aromas é impecável, e me fez lembrar de uma pequena coleção de perfumes franceses que minha mãe manteve durante anos. Se me lembro bem, um dos favoritos dela era o "Ma Griffe". ;)
Você escreve muito bem, e gosto muito de visitar seu espaço.
Beijos e obrigada por nos levar até a França através do Atlântico, na imaginação e em suas palavras. :)
Flávia Alves

Lelec disse...

Cara Norma,
Gostaria de parabenizá-la efusivamente pela qualidade do seu blog, adornado pela inteligência e elegância dos seus textos.
É sempre muito bom comprovar que existe vida inteligente na internet.
Parabéns!
Abraço de Paris,
Leonardo.

Helica disse...

Salut! Meu nome é Hélica, sou estudante de francês aqui em Campinas-SP. Também estive em Paris recentemente, gostei muito do seu texto pois me fez recordar os cheiros daquele lugar... inesquecíveis! Você soube expressá-los muito bem!

Norma disse...

Queridos amigos,

Muito obrigada por todas as palavras carinhosas e de incentivo. Vocês me dão a certeza de que vale a pena continuar valorizando a minha expressão pessoal através da escrita!

Grande abraço perfumado a todos! :-)

Isadora disse...

Olá, Norma!

Que engraçado!!! Eu tb estive na França no mesmo período que vc... Eu estava exatamente em Vichy, fazendo o mesmo curso que vc, mas fui através de um programa diferente do seu, ficando um mês em Vichy. Adorei seu relato e me identifiquei muito com muitas coisas que vc disse. Uma pena não ter te conhecido na França..rs! Quem sabe não teremos uma nova oportunidade, afinal somos colegas de profissão, e temos a mesma paixão: a França.

Um grande abraço!

Cristiano Silva disse...

Olá Norma,

Continuando a leitura de seus posts anteriores, não há como não me identificar com você na frase abaixo:

"Agradeço imensamente a Deus por ter me presenteado com essa viagem, e ainda estou procurando perceber as sutilezas das lições aprendidas e as transformações interiores provocadas pelo impacto de muitos momentos."Aconteceu a mesmíssima coisa comigo, só que Deus me presenteou com duas viagens à Alemanha, à trabalho, cujo idioma estudo prazerosamente. Também cheguei a compartilhar algumas das minhas experiências lá no meu blog. Não há como fazer uma viagem deste tipo e não sofrer nenhum tipo de transformação interior; foi um grande amadurecimento para mim.

(Só não disse sobre o excesso de bagagem identificado ao voltar para o Brasil no aeroporto - culpa dos livros que comprei!)

Eu e a minha esposa vamos, se Deus quiser, começar a estudar francês juntos, em casa mesmo. Tenho certeza que será uma ótima experiência. Só quero fixar melhor meu conhecimento em língua alemã antes disso, mas já estou comprando material.

Gott segne dich,

Cris.