22 maio 2005

Conhecer a Deus

Muitas das mais inspiradoras lembranças da minha vida constituem os momentos pontuais em que Deus interveio nitidamente para fechar um ciclo ou estabelecer um sentido que eu não via. Sem esses momentos em que Deus se revela diretamente (fora as leituras, as palavras de outras pessoas que eu percebo serem inspiradas por Deus), eu já seria uma morta-viva espiritual. E digo mais: isto tem a ver infinitamente mais com Sua graça imensa do que com qualquer pretensa qualidade, savoir-faire ou "bom comportamento" meus. Saber disso (e confirmar isto a cada passo) me deixa muito mais receptiva a Ele, na medida em que me sinto segura por Ele me amar por quem eu sou, não pelo que faço - e na medida em que sei que, sem Ele, sem sua orientação, minha vida é só um triste arremedo do que deveria ser.

Acho que Ele se revela àqueles que se sentem tão perdidos, tão maus, tão errados, tão pequenos, tão fracos que a simples idéia de que nada faz sentido lhes parece desesperadora como a própria morte - e esses sabem que não podem construir seu próprio sentido, porque se entendem pequenos e fracos. Eles intuem que há algo maior e o buscam como o faminto busca por alimento. A busca vem a partir de uma pequenina certeza de que há algo bem acima de nós, bem maior que nós. Vem de nos sabermos pequenos - o famoso "humilhar" da Bíblia. O resto do conhecimento sobre Ele - que Ele é bom, é pessoal, é pai - vem depois, mas o primeiro ponto é esse.

Muitos crentes começam certo, mas depois não conseguem se ver continuamente pequenos na presença Dele e começam a querer controlar os processos espirituais - seja intelectualmente, pela teologia, seja "magicamente", por regrinhas neopentecostais. E aí Deus se cala. Descobre-se então que essas pessoas estavam buscando a Deus não porque reconheciam a necessidade absoluta de se renderem a algo maior que elas, mas porque queriam que algo dentro delas, que crêem como qualidade intrínseca e não (também) dom de Deus, fosse confirmado. Passada essa necessidade de confirmação daquilo que no fundo é a vontade delas, perdem a proporção e voltam a se sentir tão grandes ou até maiores que Deus. Tenho certeza de que isso acontece com muitos cristãos e líderes religiosos que, no início, estavam humildes, mas depois Deus pareceu confirmar tanto o que eles tinham em si que eles perdem a proporção e Deus passa a ser um justificador de seus atos e vontades. Toda alegria então se converte em peso.

Por isso a ênfase na criança é tão linda na Bíblia: diante Dele, não passamos mesmo de crianças, e a abertura a Ele é pela consciência contínua de que somos pequenos. Então Ele cresce no nosso campo de visão - e isso é "conhecer a Deus".

18 maio 2005

Aborto de anencéfalos e o direito à vida

Aborto é aborto em qualquer circunstância, condenado por Deus em qualquer situação. Certo? Bem... Alguns parlamentares evangélicos não concordam com isto. De acordo com a notícia abaixo (um pouco antiguinha), pelo menos um deles aprova a decisão quanto ao aborto de fetos anencéfalos. Confira:

[Um deputado evangélico] parabenizou o ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), por conceder liminar autorizando a interrupção da gestação quando existir laudo médico que ateste a anencefalia do feto, independentemente de a gestante dispor de ordem judicial. A autorização, na opinião do parlamentar, além de suprimir a angústia e a frustração da gestante, mantém sua integridade física. “Sou pastor evangélico, no entanto, não posso misturar as coisas aqui. A vida humana e o bem-estar da população são muito mais importantes do que o apego a crenças sem que se olhe o contexto.” (Jornal da Câmara. Brasília, 11 de agosto de 2004, pág. 5)

Como vemos, o pastor justifica sua decisão com o argumento de que "não pode misturar as coisas" e de que a medida "suprime a angústia e a frustração da gestante, mantendo sua integridade física".

Em primeiro lugar, a postura "sou pastor, mas..." já revela uma nítida divisão no interior desse homem, que parece supor o chamado de Deus insuficiente para arbitrar questões humanas fundamentais. Ele crê, portanto, que até nessas questões precisa deixar o pastorado (e o que parece chamar pejorativamente de "crenças"!) lá fora. Só que não lhe passa pela cabeça que foi Deus quem lhe deu este dom. A mínima controvérsia sobre esse ponto deveria fazê-lo renunciar ao pastorado.

Na Bíblia não encontro semelhante cisão interior. Imagine se lêssemos Paulo dizendo: “Sou apóstolo, no entanto, fico a favor da decisão de César com relação a isto ou aquilo...” Não há como ignorar que, ao isentar o “lado pastor” da posição que toma, o homem em questão descarta, ainda que temporariamente, um chamado feito pelo próprio Deus apenas para flexibilizar a postura com relação ao aborto – como se fosse mais sábio e mais tolerante que Ele no assunto. Porém, cabe-nos perguntar: ao se colocar lado a lado com os autores da medida, se não é como pastor, é como o que então? Que outra função seria obviamente mais importante que essa para julgar a vida ou a morte de outro ser humano? Impossível não pensar que, se não foi capaz de se posicionar como pastor para se pronunciar sobre tal questão fundamental, esse homem terá perdido há muito a centralidade de sua fé.


Uma vez, li em um site a história da mãe de uma bebezinha com anencefalia. Mesmo ciente do diagnóstico, sob os protestos estupefatos dos médicos, essa mãe a deixa nascer, passa poucas horas com ela e a vê morrer. Ela mesma conta essa emocionante história, com fotos mostrando a carinha da criança. Além de recusar-se a optar pela morte provocada de sua filhinha, permitiu-se gozar da companhia dela, ainda que por pouco tempo, debaixo de muita oração. Ah, sim, porque ela era cristã. Foi bonito ver que, em vez de descartá-la como a um corpo defeituoso incapaz de um bom funcionamento, a família lhe deu direito a uma certidão de nascimento, um nome, a certeza de ser amada, antes que finalmente esta incapacidade lhe tirasse a vida.

Como, então, alguém pode associar as belas expressões “integridade física”, “bem-estar” e até “vida humana” (!) a algo tão nitidamente destrutivo como o aborto? E como esse alguém pode se considerar, nem digo pastor, mas cristão, depois de um posicionamento como esse?

A família que deixou a criança vir ao mundo nos deixa uma incrível lição de coragem, respeito à vida humana e amor filial. Não digo que isto tenha sido fácil; mas, se como cristãos não fizermos diferença radical neste mundo, ainda com grande custo emocional, de que nos servirá estar nele, a não ser para sermos pisados e ridicularizados, como nos diz Jesus?

Quanto a mim, como mulher e cristã, talvez eu escandalize pessoas que não crêem como eu, mas aí vai: eu JAMAIS abortaria NEM MESMO em caso de estupro, simplesmente porque não suporto a idéia de um assassinato, dentro do meu corpo, de um ser que me é destinado para cuidar e amar. A gravidez nessas situações é uma dura prova que Deus nos envia para nos dar a oportunidade de amar acima do que nos é ordinariamente pedido. Por que recusaríamos essa dádiva?

E last but not least: longe de questões sobre quando o bebê pode ser considerado realmente um “bebê”, afirmo que, se há controvérsias sobre o número de semanas, é melhor não interrompermos o processo, pois o custo de assassinar um ser humano será sempre maior que qualquer outro. Pôr isto em dúvida significa abrir precedentes para emendas a nada mais, nada menos que o direito incondicional à vida, algo que ninguém deveria arriscar a perder. Sob que pretexto for.

16 maio 2005

O novo mandamento

Jesus estava perto de ser preso para julgamento, perto de ser condenado à morte, quando, ciente do fato, prepara o coração de seus discípulos, ao mesmo tempo em que ainda aproveita o tempo que resta para lhes ensinar: ele fixa algumas lições, desenvolvendo-as, e exerce o ministério de profeta, embora em grande parte os discípulos não entendam o que quer dizer. É neste contexto que Jesus apresenta o que seria considerado a pedra de toque do cristianismo, chamado por ele de “novo mandamento”:

Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros. (João 13:34)

Através da história das religiões, todo mestre espiritual se propõe a ser modelo de comportamento. Jesus também fez isto: ensinou a orar, a expulsar demônios, a servir. No entanto, ao propor o novo mandamento, Jesus vai além: coloca-se não apenas como modelo de comportamento, mas como modelo de amor, o que é muito mais profundo e impalpável. “Assim como eu vos amei, que também ameis uns aos outros”: imagine o choque que os discípulos tiveram ao ouvirem essas palavras. Devem ter se perguntado: “Como assim, amar como ele amou? O que é que eu preciso fazer? Como aplicar esse ensinamento?” Jesus diz que, assim como os discípulos são amados por ele, assim eles devem amar, propondo-se então a ser o grande modelo de amor que os discípulos jamais tiveram. Em outras palavras, se o amor de Jesus é o grande modelo de amor, com isto quis dizer que seu amor era maior que o próprio amor das esposas, dos filhos, dos amigos, de qualquer outra pessoa na vida de cada um dos discípulos. Que outro mestre espiritual se colocaria como aquele que mais amou seus próprios discípulos? Vê-se então que Jesus não se coloca como um simples mestre espiritual, mas como aquele que mais amou aqueles a quem ensinou. E se nós hoje somos seus discípulos, pois cremos na sua palavra séculos depois e queremos aplicá-la, entendemos que este professor que temos é muito mais que um professor: é simplesmente aquele que mais nos amou, cujo amor não encontra e nunca encontrará comparação possível na nossa vida.

Pouco depois, Jesus mostra que a extensão desse amor vai bastante além de uma relação entre mestre e discípulo, e bastante além do que qualquer um poderia imaginar. Mais adiante no evangelho de João, encontramos:

Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos. (João 15:12-13)

A palavra “discípulos” foi então substituída por “amigos”, termo mais pessoal, mais íntimo. É então que Jesus revela a natureza do relacionamento que ele propõe aos discípulos: tendo caminhado com eles e partilhado coisas preciosas – “tudo quando ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer” (v.15) – , Jesus já não os chama servos, pois “o servo não sabe o que faz o seu senhor” (v. 15), mas amigos. É nesta palavra que ele demonstra a qualidade de seu amor por nós, aproximando-nos de si mesmo; mas é principalmente no “dar a vida” que ele expõe o tamanho deste amor.

Todos nós sabemos a continuação desta história, de como, por escolha própria, Jesus se oferece em sacrifício expiatório por cada um de nós que guardamos sua palavra. Pouco antes, portanto, de ir à cruz, ele estava preparando os discípulos (amigos!) não só para a morte dele, mas para o que significaria esta morte: o maior ato de amor da história. O maior ato, por aquele que teve e tem o maior amor que nenhum ser humano teria: morrer pelo pecador, morrer por aqueles que estão longe de amar tão perfeitamente como ele amou. Mas é para isto que ele nos chama, para amar como ele amou. Se é em dar a vida pelo pecador que reside seu amor maior, é nisto que ele quer que o imitemos: que nosso amor uns pelos outros seja semelhante ao dele, amor que não se poupa, que sacrifica a própria vida por aqueles que ama.


Não posso deixar de acrescentar aqui uma das maiores e mais belas ênfases da trilogia O Senhor dos Anéis. Depois de ter visto os três filmes - de fiel inspiração na obra do católico e professor universitário Tolkien - , com todos aqueles maravilhosos personagens que não hesitam em lançar-se aos mais terríveis riscos em nome da amizade uns pelos outros, não pude deixar de confirmar para mim mesma que, contrariando o senso comum, a pior coisa que pode acontecer a alguém não é a morte, mas a anulação dos valores da amizade e da lealdade. Quem nisso se deixou corromper já está morto em vida e mal sabe disso.

Quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á. Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? (Mateus 16:25)

Mensagem de Natal não enviada

Queridos amigos,

Neste Natal, desejo que, contra todas as expectativas deste mundo consumista, o mito de Papai Noel e seu saco de presentes seja suplantado pela história daquele que deu a si próprio pela humanidade: aquele que, sendo Deus, veio ao mundo como homem para provar a verdadeira natureza de seu amor.

Grande beijo a todos,
Norma

15 maio 2005

Pink Floyd sinfônico e minhas percepções

Eu não sabia que, ao me apresentar o cd com a música sinfônica de Pink Floyd, Deus estava me mostrando o que em breve faria comigo: aumentar radicalmente os limites das minhas percepções, alargando-as quanto a altura, largura e profundidade, em proporções abismais.

Obrigada, Senhor.

Uma imagem da modernidade

Inspirado em Marcel Proust, Em busca do tempo perdido,
trecho em que o narrador vê de perto o chafariz de Hubert Robert

Um homem vê ao longe um objeto, e o chama quase que imediatamente pelo nome, pois distingue com facilidade sua forma, seus contornos, sua beleza estática. No entanto, ao chegar mais perto, diante da miríade de detalhes que lhe haviam escapado, o que antes se oferecia aos olhos como uma presença coesa se lhe afigura subitamente como um aglomerado de informações difusas. O homem se detém por infinitos momentos em meio ao que agora lhe parece o objeto real, mais próximo ao toque, embora sem forma definida.

As arestas vislumbradas de bem perto não mais se integram à nítida imagem anterior. De posse das novas percepções sobre o objeto, o homem não se afasta novamente para as sobrepor ao que via. Atarantado – e mesmo deslumbrado –, ele se perde no desvanecimento das formas, nas sensações provocadas por esse desvanecimento, e se esquece do que o nomeava. A lembrança do objeto, ou do que o tornava objeto, é perdida. Em meio ao turbilhão que lhe excita os sentidos, o homem se fixa somente na transformação do objeto em coisa nenhuma, e promete a si mesmo que não mais se deixará enganar por formas percebidas ao longe – e a tudo pulveriza com seus olhos de lupa. O mundo lhe parece então todo feito de caóticas partículas que a nada ordenam, obedecendo apenas a uma lei constante: a mobilidade.


E, apaziguado por essa única lei, o homem se recolhe no sono satisfeito das abstrações para sempre adiadas.