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1 Fiz a besteira de tomar açaí lendo Ortodoxia em uma lanchonete. Descobri que são duas coisas a serem evitadas em público: açaí deixa a boca e os dentes pretos, enquanto Ortodoxia provoca gargalhadas. As duas, juntas, são um verdadeiro fiasco.
2 Mas nada, no livro, é humor puro. Ler essa obra de Chesterton é como estar na companhia de um divertidíssimo amigo que alterna brincadeira com coisa séria, sem muitas firulas na passagem de uma à outra. Logo nas primeiras páginas, depois de rir bastante, posso sentir como libertadora a crítica chestertoniana ao materialista, bem como ao subjetivista, como dois lados da mesma prisão do pensamento moderno: um fechamento digno de hospício. Além de deliciosamente ilustrada, tal crítica tem o poder de prevenir muitos nós mentais fatalmente adquiridos durante a graduação de qualquer curso de ciências humanas. E isso, só para começar.
3 A condição humana, Hannah Arendt, também ajuda no mesmo sentido preventivo, embora, filosófico e doído em vez de divertido, seja muito mais teórico e pontual, concentrando-se na origem do trambolhão reducionista que desembocou tanto no materialismo quanto no subjetivismo: René Descartes. Ainda pretendo estudá-lo direito, lendo as Meditações e tudo o mais.
4 Percebo-me um tanto penalizada com relação aos católicos que leram Calvino via Chesterton. Não me entendam mal, Chesterton é um gênio; embora eu esteja apenas no início de Ortodoxia, já o considero um dos livros da minha vida. Mas é indiscutível que Chesterton leu mal Calvino, confundindo predestinação com determinismo. Tsc-tsc.
Já busquei contribuir para com o desembaraço dos mal-entendidos tentando mais de uma vez explicar calvinismo a católicos sinceros, sem sucesso. Verdade é que uma força bem maior que a ideologia - a fidelidade à Igreja-Mãe - os impede de sequer considerar-me com a atenção devida. No entanto, bastaria apenas que compreendessem o esforço doutrinário de Calvino dentro do que o próprio Chesterton chamou "mistério sagrado do livre-arbítrio" e um dos paradoxos no centro do cristianismo (assim como os dois braços da cruz se encontram). Algo que me permito agora desenvolver em pouquíssimas palavras dessa maneira: o Deus criador do tempo e pai de todo o futuro é, também, o inventor da liberdade humana. Durmam com esse lindo paradoxo; eu o adoro e vivo muito bem com ele. E, se quiserem um resumo menor ainda, lá vai: nele reside todo o calvinismo. Pelo menos, para esta leitora que vos fala. Calvino apenas reforçou em sua teoria o lado menos compreensível para nós, qual seja, o de Deus - a gestação do futuro em Suas mãos.
5 Não deixa de ser curioso que, assim como Calvino hoje, Chesterton continua sendo mal compreendido. Ora é acusado de um superficial frasismo, ora de um dogmatismo mal argumentado, ora de um subjetivismo leviano. Não se trata de nada disso. Leiam, leiam.
6 As observações injustas de Chesterton sobre Calvino não me impedem de gargalhar, até mesmo em público e tomando açaí, ao ler o grande e gordo galhofeiro católico sobre um poeta inglês: "He was damned by John Calvin." Sim, porque o reformado que não sabe rir de si mesmo é um reformado, no mínimo, sem imaginação.
P.S.1 Ao leitor que lamenta uma atualização mais freqüente do blog, um pedido: quando vier aqui e encontrar o mesmo texto lido anteriormente, faça por favor uma pequena e singela oração, assim - "Senhor, permita que a Norma consiga um emprego em que ganhe mais trabalhando menos". Serei muito grata a você se fizer isso! :-)
P.S.2 Este blog ainda não aderiu à reforma ortográfica. Ainda é apegado aos acentos que foram suprimidos e espera fazer o devido luto para, um dia, incorporar tais mudanças a seu idioleto.