22 março 2010

Coisinhas sobre mim (2)

- Os únicos críticos do capitalismo dignos de minha atenção respeitosa são aqueles que não se renderam a nenhum tipo de opressão estatal socialista. Ou seja, aqueles que são honestos o suficiente para não usar o capitalismo como bode expiatório do socialismo.

- Não sou gorda, mas tem pelo menos dez anos que eu queria perder uns quilos para sempre. Poderia adaptar aquela frase famosa de Mark Twain: “Emagrecer é fácil, eu já emagreci várias vezes!”

- Gosto muito do seriado americano Without a Trace (Desaparecidos). Quando cheguei à terceira temporada, percebi isto: via de regra, os desaparecidos são pessoas reservadas ou cheias de segredos. Isso atrapalha a investigação, já que familiares e amigos não podem ajudar muito quando entrevistados. Pois bem: eu me comporto como se um dia fosse desaparecer, contando tudo sobre mim para as pessoas que mais amo. Se isso não for saudável por alguma razão (ainda não descobri qual), pelo menos pode ser útil para me acharem um dia.

- Estou sedenta de mais música boa que louve a Deus. Se você sabe de algum músico ou grupo que seja de fato diferente do que se ouve hoje nas rádios ou “por aí”, por favor, poste nos comentários. Por exemplo: Elomar (embora não o tempo todo) e aquele casal fofo que pastoreia a igreja do Surfjan Stevens. Folk é uma ótima (tipo Nick Drake, Neil Young, Kings of Convenience), mas pode ser também rock ou pop, desde que seja de fato bom (tipo Paul McCartney, David Bowie, Billy Joel). Agora, se for tão original quanto Rumo, Air ou Beirut, irei às nuvens. E, se as letras forem citações diretas da Bíblia, melhor ainda! (Ok, sei que estou pedindo demais, hehe!)

15 março 2010

Abaixo-assinado pela liberdade em Cuba


O caso de Orlando Zapata Tamayo (ver meu post aqui) tem despertado pessoas em todo o mundo para protestar contra as condições desumanas da ditadura cubana. Quero juntar minha voz a esse coro pela libertação dos presos políticos em Cuba e pelo fim do cruel regime dos irmãos Castro. Se você também gostaria de participar desse clamor, assine aqui. O texto do abaixo-assinado em português:

Pela libertação imediata e sem condições de todos os presos políticos das prisões cubanas; pelo respeito ao exercício, promoção e defesa dos direitos humanos em qualquer parte do mundo; pelo decoro e o valor de Orlando Zapata Tamayo, injustamente preso e brutalmente torturado nas prisões cubanas, morto após greve de fome por denunciar estes crimes e a falta de liberdade e democracia no seu país; pelo respeito à vida dos que correm o risco de morrer como ele para impedir que o governo de Fidel e Raul Castro continue eliminando fisicamente aos seus opositores pacíficos, levando-os a cumprir condenações injustas de até 28 anos por "delitos" de opinião; pelo respeito à integridade física e moral de cada pessoa, assinamos esta carta, e encorajamos a assiná-la também, a todos os que elegeram defender a sua liberdade e a liberdade dos outros.
E não deixe de dar uma olhada:

No blog cubano que está veiculando o abaixo-assinado;
No vídeo da manifestação dos cubanos de Miami na embaixada brasileira nos EUA;
No desabafo de Marcelo Madureira (do Casseta & Planeta) sobre os "recados" do governo.

10 março 2010

Interpretações (3)

Sei que, apenas por meu antiesquerdismo, muitos colam ou colarão em mim uma atitude elitista. (No entanto, que injustiça, se estudassem saberiam que o Estado socialista é a forma mais cruel de elitismo!) Pelo contrário, meu sempre presente horror ao elitismo foi o que me salvou de muitos erros teológicos. Explico.

Quando eu era esotérica, tinha literalmente raiva da Bíblia porque, segundo os “mestres” do esoterismo, o que se lia nunca era o que se lia. Lembro-me de assistir a palestras sobre a Bíblia em um centro esotérico. A palestrante, “incorporada”, explanava o trecho em que Jesus vê Natanael embaixo da figueira (Jo 1.48). Dizia ela: “Filipe significa isso, Natanael significa aquilo, a figueira significa aquilo outro...” Ou seja: sem uma ridícula, nada democrática e provavelmente impossível tabela de simbolismos, os escritos bíblicos seriam sempre um conjunto inalcançável. Isso me manteve por anos longe desse Livro, pois, apesar de esotérica, desagradava-me profundamente que fosse uma leitura somente para “entendidos”.

Hoje, quando leio sobre os críticos heterodoxos que adoram — a-do-ram — inventar simbologias escalafobéticas para a Bíblia, no mesmo estilo que a mestra “incorporada” (“tal personagem significa isso...”), sempre formulo mentalmente a seguinte regra: se a leitura desses “eruditos” é diferente demais da leitura de qualquer mortal, jogue fora. O mesmo vale para estudiosos que até acatam o sentido primário dos textos bíblicos, mas os desprezam em favor de outros “mais profundos”, aos quais se apegam mais, afirmando até mesmo que esses sentidos (o “básico” e o “profundo”) se opõem! (É, tem louco pra tudo…)

A questão é: Jesus nunca deixaria longe de seu Reino os pequeninos; muito pelo contrário, eles são privilegiados na revelação (Mt 11.25)! Portanto, desconfie da chamada teologia liberal e neo-ortodoxa, além de todo tipo de “esoterismo cristão”: a maioria desses autores eruditiza demais a Bíblia e nega a leitura básica, mandando os pequeninos amados por Jesus para o fim da fila da compreensão de sua fé.

27 fevereiro 2010

Esquerdismo assassino e seus cúmplices

Em artigo para o Boston Globe, o jornalista Matthew Price conta que perguntaram para o propalado historiador Eric Hobsbawn, leitura obrigatória nas universidades brasileiras, se a perda de vinte milhões de pessoas no regime comunista da antiga União Soviética havia sido justificável. Sem hesitar diante das câmeras de TV, Hobsbawn respondeu: “Sim.”

Há quem diga que o comunismo acabou, mas (que curioso!), mesmo morto, continua matando. Dias depois da publicação do artigo de Price, em março de 2003, houve a chamada Primavera Negra em Cuba, uma onda de prisões de dissidentes do regime castrista. Entre 75 outros cubanos, Orlando Zapata Tamayo foi preso. Seus crimes: “desrespeito, desordem pública e resistência”. Sua pena: 36 anos de detenção. No cárcere, vinha sofrendo graves espancamentos, maus-tratos e tortura psicológica. Quase sete anos depois, no dia 3 de dezembro de 2009, Tamayo decidiu que seu martírio não seria em vão: começou uma greve de fome pelo fim da ditadura em Cuba. O chefe da prisão resolveu “dar uma forcinha” para a greve e mandou que negassem água ao preso. Hospitalizado com falência renal, foi posto nu em um quarto com um forte ar-condicionado e contraiu pneumonia. Em seguida, sem tratamento, foi levado de volta para a prisão, largado para morrer. No dia 23 de fevereiro deste ano, depois de 85 dias sem se alimentar, Tamayo falece.

Diante do ocorrido, qual o veredito de Raúl Castro, irmão do ditador? “A culpa é dos Estados Unidos.”

Graças ao Senhor de toda a justiça, a morte de Tamayo está provocando protestos no mundo inteiro. Os Estados Unidos, a União Europeia e o Canadá exigem a libertação de todos os presos políticos em Cuba (duzentos, segundo os dissidentes). Na República Checa, o parlamento guardou um minuto de silêncio em homenagem a ele. Lech Walesa, líder que trabalhou pelo fim do comunismo na Polônia, está pressionando o governo cubano a favor dos encarcerados, e a Anistia Internacional se pronunciou sobre a repressão violenta do regime. A movimentação chega tarde demais, porém: desde 1957, a Cuba socialista já matou 17 mil diretamente e 83 mil no mar, tentando deixar a ilha.

E o Brasil, o que fez? Lula estava lá e, representando-nos, calou-se diante de tudo isso.

Conta o jornalista que Hobsbawn, cúmplice ideológico do assassinato de milhões de pessoas, alegrou-se muitíssimo com a eleição de Lula para presidente do Brasil. Compreende-se. Diante das mortes simbólicas e reais do mundo socialista, ambos se irmanam em suas justificações. Price também escreve que hoje poucas figuras da envergadura do historiador mantêm a mesma devoção ao comunismo. Isso certamente não é verdade no Brasil. Se fosse, o barulho em torno da morte de Tamayo seria maior. Bem maior. Haveria uma indignação gigantesca contra o silêncio conivente de Lula. ONGs fariam passeatas, ativistas de direitos humanos bradariam de horror. Entre os cristãos, haveria ainda mais protestos. Na igreja protestante brasileiras, pastores iriam a público pedir perdão a seus fiéis por terem apoiado Fidel e seus seguidores — Chávez, Morales, Lula. É isso que espero dos pastores brasileiros. Há muito tempo, na verdade.

E você, cristão esquerdista que apóia Fidel, que gosta de Lula, que anda com a camisa do Che, que louva as maravilhas do socialismo, já se informou? Já pediu suas desculpas em público? Até quando será cúmplice da tirania e do assassinato?

24 fevereiro 2010

Vamos testar a tolerância secular com uma música pop

Um dos maiores sucessos dos Titãs nos anos oitenta foi aquela música Igreja (tem no You Tube), que dizia:

Eu não gosto de padre
Eu não gosto de madre
Eu não gosto de frei

Eu não gosto de bispo
Eu não gosto de Cristo
Eu não digo amém!

Todo mundo adorava! Todo mundo ainda adora os Titãs e o compositor de Igreja, o hoje tão bonzinho, comportadinho e falandinho-de-amor Nando Reis. Mas, pensando bem, o que eles fizeram não é nada de mais. Pelo menos há uns cinquenta anos (pois é, cinquenta anos!), xingar a igreja, falar mal de padre e pastor e enxovalhar o cristianismo é moleza, lugar-comum e não choca ninguém. Assim, lanço aqui uma ideia que todos os cristãos conservadores, protestantes e católicos, poderão aproveitar: testar a tão propalada tolerância do secularismo politicamente correto com uma letra contracultural de verdade, desafiando a religião moderna. Vamos todos então cantar assim:

Eu não gosto de Lênin
Eu não gosto de Stálin
Eu não gosto do Che!

Eu não gosto do Chávez
Não gosto do Morales
Eu não sigo Fidel!

Eu não rezo pra Lula
Eu não voto na Dilma
Eu não sou do PT!
Não! Não!

Eu não gosto de Darwin
Eu não gosto de Dawkins
Nem do tal do big bang

Eu não sou feminista
Não aprovo o aborto
Eu gosto do neném!

Eu não faço parada
Eu não creio nas cotas
Nem festejo Zumbi!

Eu não gosto da esquerda
Eu não entro pra esquerda
Não sou comunistão!
Não!
Não! Não gosto! Eu não gosto!
Não! Não gosto! Eu não gosto!

15 fevereiro 2010

Um belo texto americano para o Valentine's Day

Traduzido por mim daqui
O autor, Ray Ortlund, foi uma indicação do blog do John Piper.

Cada um de per si também ame a própria esposa como a si mesmo, e a esposa respeite ao marido.
Efésios 5.33

Primeiro, Deus criou Adão e o colocou no Jardim com uma tarefa, uma missão a guardar. Sobre o coração de cada homem caído paira essa dúvida: “Sou homem o suficiente para escalar essa montanha para a qual Deus me chamou? Poderei cumprir meu destino?” A esposa sábia compreenderá essa dúvida nas profundezas do coração de seu esposo. E passará toda uma vida comunicando-se com ele em resposta, de várias maneiras: “Querido, eu acredito em seu chamado. Sei que você pode cumprir sua missão, no poder de Deus. Não desista.” Dessa forma, ela estará insuflando vida em seu amado.

Deus criou Eva a partir de Adão, para Adão, com a finalidade de ajudá-lo a cumprir a tarefa. Sobre o coração de cada mulher caída paira essa dúvida: “Você se agrada de mim? Eu sou o que você queria?” O esposo sábio compreenderá essa dúvida nas profundezas do coração de sua esposa. E passará toda uma vida comunicando-se com ela em resposta, de várias maneiras: “Querida, você é perfeita para mim. Eu amo você. Venha cá me dar um abraço.” Dessa forma, ele estará insuflando vida em sua amada.

03 fevereiro 2010

Coisinhas sobre mim

- Sou tão lenta para aprender as coisas que Deus resolveu compensar amorosamente essa característica, fazendo-me parecer dez anos mais nova. Assim, a passagem do tempo se torna um pouco menos evidente enquanto levo anos amargando as mesmas lições.

- Acho muito feio o uso do verbo “colocar” no sentido de “afirmar”.

- O reconhecimento público é algo que me emociona mais do que eu gostaria (por minha causa: medo do orgulho). Mas não me envergonho nem um pouco de me emocionar com aqueles programas de tv em que famílias unidas ganham casas, gente desconhecida canta bem e casais se reencontram (por causa deles mesmos: não preciso me preocupar com meu próprio orgulho).

- Se eu não me dedicasse às letras, seria musicista, talvez cantora lírica ou vocalista de banda folk-rock-celta-progressivo. (Cantando para louvar a Deus, claro! Se não, tudo seria muito sem graça para mim.) A única arte que eu amo mais que a música é a literatura.

- Odeio o vitimismo moderno. O aplicado vitimista (geralmente, de esquerda) é sempre sem noção. Por exemplo: um editor organiza e publica a única enciclopédia existente na atualidade sobre determinado assunto, convidando a si mesmo para escrever os verbetes mais importantes. No entanto, em cada um dos textos dele (e só nos dele), continua a se queixar de uma “univocidade” no meio, como se fosse o último dos excluídos da roda de experts.

19 janeiro 2010

Sobre o Haiti: leituras

Um olhar teológico acurado acerca da tragédia;

Mais considerações teológicas;

Uma análise que eu endosso inteiramente;

Um comovente pedido de ajuda de um pastor;

Amar o vizinho: longe ou perto (em inglês).

Há links para doação nesses sites. Se puder, ajude. E não pense " posso orar": orar, nesses momentos, é tudo.

16 janeiro 2010

Nova postagem no Tamos lendo!

Inspirada pela introdução de um livro, decidi lançar uma campanha no meu outro blog...

Cristãos esquerdistas, leiam os autores conservadores!

...na esperança de que este blog encontre adversários mais preparados!

Dê uma olhada!

09 janeiro 2010

Interpretações (2)

E junto à cruz estavam a mãe de Jesus, e a irmã dela, e Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena. Vendo Jesus sua mãe e junto a ela o discípulo amado, disse: Mulher, eis aí teu filho. Depois, disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. Dessa hora em diante, o discípulo a tomou para casa. (João 19.25-27)

No imprescindível “comentário das bolinhas” (da série Cultura Bíblica, Vida Nova) do Evangelho de João, F. F. Bruce cita uma curiosa interpretação desse trecho por Bultmann (em The Gospel of John, p. 673):

“A mãe de Jesus, que se demora junto à cruz, representa o cristianismo judaico que suporta a ofensa da cruz. O discípulo amado representa o cristianismo gentílico, que é encarregado de honrar o outro como mãe de onde veio, assim como o cristianismo judaico é encarregado de ‘sentir-se em casa’ dentro do cristianismo gentílico, sendo todos membros de uma só grande comunidade da Igreja.”

Essa é uma leitura alegórica que pode levar a vários enganos. Não podemos examinar isoladamente João e Maria sem estender tal olhar a todos os personagens da Bíblia. E, se consideramos que todo personagem bíblico remete necessariamente a um arquétipo, corremos o risco certo de perder de vista o sentido básico do texto, não só deixando de considerá-los pessoas como nós, mas fatalmente caindo em subjetivismo. Se há algo que aprendi na Faculdade de Letras, é isso: toda interpretação textual das partes de um texto deve ser sustentada por seu todo. Se o texto inteiro – no caso, a Bíblia – não justifica essa abordagem, melhor deixá-la de lado, por mais bela que possa parecer (e Bultmann me leva a concluir que, mesmo falsa, uma interpretação pode ser extraordinariamente bela!).

É Calvino (Comentários, p. 232, tradução minha do inglês) quem expressa melhor algo que eu sempre intuí da leitura desse trecho:

“É como se Jesus dissesse a João: ‘De agora em diante, não serei mais um habitante desta terra, e tenho o poder de passar para você os deveres de filho; assim, coloco esse homem em meu lugar, para que desempenhe o papel que desempenhei.’ [...] Cristo pretendeu mostrar que, após ter completado o curso da vida humana, abandona a condição em que viveu e entra no Reino celestial, onde exercerá domínio sobre anjos e homens; pois sabemos que Cristo estava habituado a evitar que seus seguidores olhassem para a carne, e isto era especialmente necessário em sua morte.”

Enough said
.

01 janeiro 2010

Interpretações

Quando eu era novinha, cursando a formação de professores da Aliança Francesa, uma das professoras de literatura abordou e distribuiu em sala alguns poemas de Baudelaire (de As flores do mal) para que preparássemos apresentações individuais. A mim coube La chevelure (“A cabeleira”), um poema bastante longo e que, na época, julguei um tanto cansativo e sem propósito. Começa assim:

Ó tosão que até a nuca encrespa-se em cachoeira!
Ó cachos! Ó perfume que o ócio faz intenso!
Êxtase! Para encher à noite a alcova inteira
Das lembranças que dormem nessa cabeleira,
Quero agitá-la no ar como se agita um lenço!

(tradução de Guilherme de Almeida)

Em seguida, o poeta descreve todas as sensações e associações que a cabeleira lhe desperta. Na cabeleira vivem “uma Ásia voluptuosa e uma África escaldante”, acham-se os cheiros de “óleo de coco, almíscar e alcatrão”, podem-se cultivar “a pérola, a safira e o jade”. Um mundo de exotismo e sensualidade é despertado pelos cabelos da amada. Porém, achando que isso era pouco, e cega para o resto, quis ver mais no poema. E vi: falei em sala, para minha vergonha, da relação entre impérios e colônias, entre opressor e oprimido, aprofundando-me toda à esquerda (nem sonhava então em ser conservadora!).

A professora, de queixo caído, apenas sussurrou um talvez involuntário “Quelle horreur!”, enquanto eu e uma amiga entusiasmada enxergávamos fantasmas progressistas desfilando sem parar pela exaltação baudelairiana da cabeleira. Que horror, de fato!

Mais tarde, eu me "redimi", apresentando o mesmo poema a um examinador do Nancy e, anos depois, a alunos. No entanto, lembro-me desse episódio e penso no quanto as más interpretações textuais, sobretudo as culturalmente orientadas, estão na origem de todo tipo de falácia. Pior, no nosso caso: de todo tipo de heresia. Gostaria de explorar melhor esse fenômeno aqui no blog. Enquanto isso, creio poder afirmar: mesmo sem ser mestres em exegese ou hermenêutica, podemos, com a ajuda do Espírito Santo, chegar a uma compreensão acurada da Palavra de Deus, se soubermos submeter nossas escolhas culturais ao senhorio divino ao mesmo tempo em que chegamos humildes ao texto, não dispensando nem os sentidos mais evidentes, nem orientações e comentários abalizados.

Este é meu desejo para você em 2010: que, despojada de interpretações equivocadas, a verdade bíblica resplandeça mais vívida em sua mente e em seu coração!

13 dezembro 2009

Calvino e a responsabilidade humana

Um dos erros mais comuns de autores católicos sobre o calvinismo — mesmo os mais inteligentes e até brilhantes em outros assuntos — poderia ser resumido na seguinte frase: “Calvino nega a responsabilidade humana.” O que a mente católica não consegue entender é que todo o monumental esforço de Calvino repousa sobre a necessidade de tentar vislumbrar a realidade do ponto de vista divino. E, antes que o leitor anticalvinista acuse essa empreitada de uma tremenda empáfia intelectual (“Colocar-se no lugar de Deus!”, quase o ouço exclamar), digo que (como geralmente acontece) falta-lhe leitura: Calvino jamais vai além do que o próprio Deus nos permite ir em Sua Palavra. É escorado nesses reconfortantes limites que o reformador detecta chaves de compreensão do sistema de Deus para a criação e a salvação. Habitando a própria eternidade, criador do tempo e de tudo que nele está contido, Deus é Senhor da história: para Ele, não há surpresa alguma no desenrolar dos acontecimentos, nem em nosso proceder. No entanto, longe de endossarmos qualquer visão semelhante a um determinismo, afirmamos antes isto: que a soberania de Deus não briga com a responsabilidade humana, mas, para que Deus seja Deus, onisciente e todo-poderoso, é preciso compreender esse aspecto dual (não dualista) apenas aparentemente contraditório; não para diminuir nossa responsabilidade, mas para ter a correta perspectiva da graça e do senhorio divino. Calvino, portanto, terá elaborado uma teologia que alguns chamam de “teo-referente” para tratar daquilo que qualquer cristão pode ler em sua Bíblia: para Deus, tudo é ao mesmo tempo e tudo está debaixo de Suas mãos, sem que deixemos com isso de ser uma vírgula menos responsáveis por nossos atos. Como? Não sei explicar como, mas sim para: para que, sem negar nossa triste condição sem Deus, pudéssemos nos arrepender devidamente de nossos pecados, oferecendo-nos a Ele para a salvação e a santificação, ao mesmo tempo convictos de que é Dele que vem todo impulso bondoso e toda graça restauradora.

07 dezembro 2009

My Way e Comme d'habitude

And now, the end is near, and so I face the final curtain...

Quem não conhece esse que foi um dos maiores sucessos do Frank Sinatra tardio e uma das canções mais regravadas de todos os tempos? No leito de morte, o eu lírico da composição proclama orgulhosamente: I did it my way (em uma tradução desajeitada, "fiz do meu jeito", ou seja, "vivi a vida como me pareceu melhor"). Se a música fosse poesia, como crítica literária eu diria que se trata de um sujeito forte: seus arrependimentos foram muito poucos que valessem a pena mencionar; cada um de seus passos, tais como os do Chapolim, foram friamente calculados; se havia dúvidas, ele "engoliu e cuspiu", encarando tudo e permanecendo de pé; ri das derrotas e falhas; e termina seu relato dizendo que um homem que não tem a si mesmo é um homem que não tem nada. Ele morre sozinho, confiante e satisfeito. Uau!

Mas poucos conhecem essa que foi a matriz francesa para My Way, chamada Comme d'habitude, de 1967. Curiosamente, a letra original nada na contramão de sua irmã americana, ao descrever a vida de um casal cujos gestos cotidianos são desprovidos de significado. O eu lírico, dessa vez, é um marido deprimido e até conformado com o fim iminente de seu casamento. Diz a canção: "Como de costume, todo o dia/ Eu vou fingir/ Nesta cama fria/ Minhas lágrimas, eu as esconderei/ Como de costume." É o exato oposto do sujeito que toma as rédeas de suas decisões: em Comme d'habitude, o relacionamento sem vida é um subtema para demonstrar a impotência do homem.

Poderíamos dizer que ambas as canções ilustram os atuais modos americano e europeu de considerar o ser humano. Um é otimista demais, quase heroico; o outro, pessimista e até niilista. Porém, é mais interessante pensar que são duas cosmovisões contraditórias oferecidas por um mundo que só consegue enxergar o homem sem Deus. Separado do Criador, o homem pode aventurar-se pela vida crendo que é dele que depende seu destino; ou então, pode afundar em um surdo desespero ao perceber sua incapacidade fundamental para gerir seus próprios caminhos. Enquanto o segundo desistiu de tentar, o primeiro se satisfaz com muito pouco, refestelando-se nas próprias imperfeições e no orgulho de sua solidão. São dois extremos e nenhum deles é verdadeiro. Só o cristianismo é exato em sua radical afirmação: sem Deus, nada podemos fazer; com Deus, submetidos a Ele, podemos viver sem ganas de um falso heroísmo, descansados em Sua vontade e desejosos de Sua perfeição, em um amor que é real e plenamente vivido no Paraíso. Não há nada no mundo que possa comparar-se a isso.

21 novembro 2009

Dê uma olhada: Kaspar Hauser

Terminei de ler o romance Kaspar Hauser, de Jacob Wassermann. Minhas impressões sobre o livro acabam de ser publicadas no Tamos Lendo. Boa leitura!

20 novembro 2009

Adendo ao post anterior

Muita gente (que não entende o conservadorismo, diga-se) pode ter estranhado meu último post. “Ela defende o capitalismo e está dizendo que a segurança financeira não tem tanta importância?” Pois é, meus amados leitores. Para mim, não tem mesmo. Defendo, sim, o capitalismo como o melhor sistema inventado pelo homem até hoje, o único que garante a liberdade individual. É o melhor possível em um mundo caído, acredito. Porém, jamais endossarei o espírito materialista que se apropriou do presente século. A diferença fundamental é a seguinte: o pecado, no capitalismo, está circunscrito à escolha individual; no socialismo, todo mundo é forçado a pecar os mesmos pecados. Assim, no capitalismo, o materialismo é opcional; no socialismo, é obrigatório, religião do Estado (logo, de todos). Podemos nos abster da cobiça no capitalismo; no socialismo, ela é o motor de quem faz a revolução. E daí por diante.

16 novembro 2009

Segurança

Alguns anos atrás, sempre que eu lia Mateus 6.25-34, não podia esconder de mim mesma uma certa indignação. Sem ousar confessá-la diretamente, sentia que, contrariada, questionava a Deus: Como deixar de me preocupar com os bens mais básicos, comida e roupa? Como simplesmente dar de ombros em relação à sobrevivência no dia-a-dia?

Quando me mudei do Rio para Niterói (sim, faz tempo que queria sair de lá, e fui saindo aos poucos), lembro-me de ter pedido a Deus por um emprego. Há anos como autônoma, queria sentir o gostinho do salário fixo. Deus me atendeu, certamente com o fim de transmutar meu pedido em um período de grandes lições para mim. Pois, fiada na certeza da soma mensal, os cinco anos que passei no último emprego foram a época em que mais estraguei minha vida financeira, consumindo além do que devia e depois roendo os dedos de terror a cada virada de mês. Finalmente tive de reconhecer que O desobedecia, desrespeitando os limites do que ganhava e revoltando-me com uma situação que eu mesma havia criado ao tomar decisões ruins: morar longe da família, dos amigos e do trabalho, gastar demais no cotidiano e submeter-me, por tudo isso, a constantes preocupações com dinheiro.

Ainda fico espantada ao constatar como Deus me trouxe devagarinho para a segurança Nele.

Hoje, por minha escolha, sou só autônoma. Faço meu tempo, atenta ao fluxo de meus trabalhos. Ainda não consigo guardar uma parte significativa do que ganho, mas – graças a Deus – sobra um pouquinho a cada mês. E, mais importante de tudo, sempre que me ocorrem considerações sobre se poderei ou não ficar tranquila antes na virada do prazo para as contas, é como se Deus logo me mostrasse em letras vermelhas o significado dos versículos que antes me incomodavam tanto, assinalando com força o quanto Ele não quer que eu me preocupe com isso. Obedeço então, abandonando esse sentimento, e Ele tem sido sempre fiel.

Não estou dizendo que todo cristão deveria se abster de um emprego fixo. Longe de mim! Apenas isto: saiba que a real segurança está no Senhor. Saiba de verdade, e não abra mão dessa certeza. Assim, se em nome da segurança que o mundo oferece você está infeliz no trabalho, passa pouco tempo com a família e sente que não está utilizando todo o potencial e os dons recebidos de Deus, coloque todo medo de mudanças nas mãos Daquele que quer um cotidiano bom para seus filhos, feito de liberdade. Às vezes serão necessários alguns sacrifícios – uma vida mais simples, sem grandes luxos, ou uma fase mais “apertada”. Porém, nenhum desse sacrifícios será tão custoso para a alma quanto os que fazemos, muitas vezes sem pensar, no altar de Mamom.

05 novembro 2009

Indicações quentinhas e vale a pena ler de novo

Enquanto estou às voltas com minha tradução e algumas outras tarefas que tomam tempo (mas preparando um post quentinho para ir à mesa semana que vem, não se preocupe), não deixe de conferir o último post do blog do meu namorado, André Venâncio, e o nosso blog Tamos Lendo. Tem muita coisa boa lá!

E aproveite para dar um não bem redondo ao Projeto de Lei 122/2006 da Homofobia (que deveria se chamar Heterofobia), clicando na página do Senado Federal aqui e respondendo à enquete na barra lateral direita. A dica é do precioso Tempora. Se tiver dúvidas sobre esse não, dê uma olhada no que escrevi sobre isso aqui, aqui e aqui. Pois é, o blog já está velho, né? :-)

Ah, imprescindível dizer que nem todo gay aprova esse projeto maluco. Dê uma olhadinha também aqui, onde há informações importantes sobre os países onde realmente os homossexuais são perseguidos, como Irã e, sim, Cuba, o querido paraíso dos esquerdistas brasileiros... Cuidado ao rolar o blog, há fotos um pouco fortes - que aliás dizem o que interessa: aquilo, sim, é perseguição, não essa bobagem light que temos no Brasil.

Prometo que semana que vem volto com a corda toda. Abraços!

22 outubro 2009

Orem pela Venezuela

Se eu não fosse cristã, e se ainda por cima cultivasse o hábito das superstições, certamente veria algum laço nefasto entre a aparição simbólica de Fidel Castro no post anterior e a aterrorizante notícia dada por Graça Salgueiro no blog Notalatina hoje, e que pode ser resumida na seguinte frase: Chávez desfere poderoso golpe na propriedade privada venezuelana.

O jornal El Caraboleño deu a "versão oficial" (leia-se: em novilíngua) da resolução. O resumo da coisa é o seguinte: sob o pretexto de "preservação", Chávez declarou patrimônio cultural um número gigantesco de construções em Caracas. Casas particulares também! Veja a lista:

Autopistas, avenidas, ríos, árboles, sitios arqueológicos, parques, haciendas, edificios públicos y privados, casas, colegios, plazas, museos, iglesias, teatros, estaciones de metro, cementerios, entre otros.
 
E o que significa isto? Significa que o pobre coitado do venezuelano proprietário de qualquer uma dessas construções NÃO PODERÁ vender, doar, herdar ou fazer QUALQUER COISA com seus bens sem uma AUTORIZAÇÃO do Instituto do Patrimônio Cultural.

Que golpe de mestre na propriedade privada! Resta saber o que o povo venezuelano fará para deter essa marcha inexorável para o comunismo.

Leiam toda a matéria no Notalatina, orem pelos venezuelanos e não deixem de lamentar publicamente a postura de alguns líderes evangélicos do Brasil que deram seu apoio ao tirano. Minha indignação se exprimirá aqui por meio de uma sofrida interrogação:  

Até quando grande parte dos cristãos protestantes brasileiros estará do lado da monstruosa e sangrenta utopia comunista, em vez de tomar o partido da liberdade?

18 outubro 2009

O que é bom para Fidel...

Apesar de carioca — ou justamente por isso, hehe — , não fiquei muito comovida com a escolha do Rio de Janeiro para as Olimpíadas de 2016. Li pela web as opiniões de alguns eternos esperançosos, que vislumbram na decisão uma oportunidade incrível de progressos para a cidade, mas eu vejo o que sempre vi nos meus trinta anos de moradora do Rio: maquiagens sem fim no panorama das favelas maiores, ocupação militar nas ruas para coibir os marginais e quase que só isso. Depois, volta tudo ao “normal”. Claro, uma parcela da população vai investir ou trabalhar no evento, e com isso um certo up no seu rico dinheirinho será inevitável. Mas isso se verificará significativamente bom para a cidade como um todo e por um tempo razoável? Sem que se mexa no principal, a criminalidade envolvida no tráfico de drogas? No creo, no creo... Comemorar o fato me soa, mais ou menos, como alegrar-se pelo novo show de fogos de artifício em um navio que já começou a afundar (do qual me evadi antes que fosse tarde demais).

A notícia de ontem — bandidos derrubam helicóptero da polícia militar, caramba! — parece apenas reforçar que é preciso passar da miopia otimista para um plano de ação efetivo e duradouro.

E, como se não bastasse, li no ótimo blog Traduzindo para o juridiquês mais uma razão para torcer o nariz para o otimismo olímpico (nos dois sentidos) dos cariocas:

Fidel Castro escreveu no Granma - aquele jornal oficial apropriadamente utilizado pelos cubanos como substituto do papel higiênico - que a escolha do Rio para os jogos olímpicos de 2016 significou o "triunfo do Terceiro Mundo".

Definitivamente, o que é bom para Fidel é ruim para o Brasil, não é? Só isso já me tira a vontade de participar da euforia geral por esse duvidoso triunfo do Terceiro Mundo! Porém, não custa sonhar um pouquinho. Quem sabe os frutos dessas Olimpíadas não se limitarão às conhecidas macaquices plásticas em alguns cartões postais do Rio. Se o dinheiro aplicado na cidade puder ajudar para reabilitá-la do crime, maravilha! Mas eu penso mesmo é em outra coisa: apesar do que aconteceu àqueles pobres pugilistas deportados em 2007, desejo do fundo da alma que alguns atletas cubanos consigam escapar para sempre da ilha-cárcere durante os jogos — sem deportação!

15 outubro 2009

Não quero apagar da memória...

Não quero apagar da memória o lugar de onde eu vim. Apesar de saber que Deus já se esqueceu de todos os meus pecados antigos e recentes, quero de vez em quando recordar aquela outra criatura, que não sou mais, apenas para afirmar ainda uma vez que meu novo eu não foi uma escalada, um construto, um desprendimento, um aprendizado, uma sensatez súbita e definitiva – mas sim o débil objeto da misericórdia do Senhor.

12 outubro 2009

Tamos lendo!

Eu e André Venâncio criamos um blog chamado Tamos lendo! - assim mesmo, bem informal - para escrever especialmente sobre nossas leituras. Vai ter de tudo: teologia, conservadorismo, física, romance policial, poesia... enfim, tudo o que tamos lendo! Fique de olho! ;-)

10 outubro 2009

Resposta a um comentário não publicado II

Diante do que foi dito no post anterior, vejamos o que a Bíblia afirma sobre os pecados que você, Deborah, deixou de mencionar em sua mensagem: “Ora, as obras da carne são conhecidas e são: prostituição, impureza, lascívia” (Gl 5.19). Outra versão (Almeida Corrigida e Revisada Fiel) divide o primeiro termo grego, porneia, em adultério e prostituição. Consultando mais alguns comentários e o Catecismo Maior de Westminster, descubro que a linguagem da Bíblia (logo, a mentalidade da época de Jesus) não faz diferença entre adultério e prostituição, ou fornicação, segundo demais versões. Enquanto você condena o adultério apenas quando não consentido pelos cônjuges, a Bíblia é muito mais abrangente.

Consultei pelo menos nove bíblias em linguagens diversas, incluindo mais dois idiomas que domino (inglês e francês), e as traduções diferem muito pouco entre si. Os termos são intercambiáveis: o primeiro, porneia, pode ser prostituição, fornicação, adultério, perversão, libertinagem; o segundo, akatharsia, foi traduzido por impureza (definido por John Stott como comportamento sexual anormal); e o terceiro é aselgeia, lascívia, dissolução, desregramento. Em suma, é justo o “sexo solto” que é condenado como obra da carne, portanto, um dos maus frutos do pecado que habita em nós. Seja em atos, em palavras ou em pensamentos.

Quanto à masturbação, torna-se evidente que é um dos aspectos da lascívia. Dificilmente há masturbação sem a ajuda de imagens mentais lascivas; ainda que houvesse, a dissociação entre o prazer e o amor é própria à impureza. Você se refere à manipulação inconsciente do feto ou do bebê, mas entenda que nenhum adulto se masturba assim, não é? Quando recorremos a imagens mentais para nos satisfazer sexualmente, estamos dizendo a nós mesmos que não podemos alcançar essa satisfação sozinhos, mas preferimos companhias imaginárias que simbolizam relações superficiais, apenas para um prazer físico imediato. E esse procedimento cava dentro de nós um abismo sem fim, pois não podemos distanciar nossa alma do hábito de nossos pensamentos. Posso dizer portanto sem medo de errar que a masturbação é uma espécie de preparação da alma para as relações sexuais sem amor.

Compreendo que afirmar isto é loucura em nossa época fragmentada, em que não só perdemos toda noção do quanto pensamentos, palavras e ações são um todo em cada um de nós, mas sobretudo deixamos de enxergar os pecados sexuais como fragmentadores (nisso, o termo “dissolução” fala por si) – algo que alguns séculos atrás, em sociedades profundamente influenciadas pelo cristianismo, era tão óbvio que não demandava explicações copiosas. Calvino, por exemplo, sempre tão prolixo em tudo o que escreve, não dedica mais de poucas linhas descritivas a esses pecados em seu comentário sobre Gálatas, adicionando-lhes porém uma valiosa observação: “São pecados proibidos pelo sétimo mandamento.”

Qual o sétimo mandamento? “Não adulterarás”, justamente! Ao compreender a Bíblia dessa forma, Calvino imita o procedimento do próprio Cristo, que em seu Sermão do Monte mostrou aos discípulos que a Lei de Deus está muito além de preceitos exteriores.

Diante da enumeração desses quatro pecados como “obras da carne” (“carne”, aqui, não em sentido literal, mas em oposição aos “frutos do Espírito”), é impossível deixar de notar que o sexo sem amor é condenado na Bíblia. Mas esse “amor” não é o laço frouxo do “namoro” (algo que sequer existia nos tempos bíblicos), e sim o amor verdadeiro, profundo e indissolúvel, apenas presente no compromisso matrimonial. Deus criou o sexo para, além da procriação, aprofundar o amor conjugal – amor que não abandona (Jesus o proíbe), mas cuida do outro por inteiro, corpo e espírito, até a morte.

Adão reconheceu em Eva “carne de sua carne”, um só corpo. Nessa monstruosidade que o pecado inventou, o “sexo casual”, não há como reconhecer o outro como si mesmo. Não há como reconhecer nada além do próprio prazer físico. Os corpos no sexo casual são desconectados e fragmentados. Longe de serem apenas pura busca de prazer sem maiores consequências, cada um dos pecados sexuais mencionados nas Escrituras aponta para a mesma atitude interior: o afrouxamento dos laços do amor. É por isso que eles são elencados junto com os demais na lista do apóstolo Paulo: “...idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, Invejas, homicídios, bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus” (Gl 5.20-21).

Como você, Deborah, disse em sua mensagem, “o sexo é uma energia muito poderosa”. Concordo: por isso, é destrutivo sem as amarras do amor profundo e responsável. Aprendi tanto na Bíblia quanto na vida (porque me converti aos 24 anos) que sexo entre solteiros é desgosto (ainda que oculto ou inconsciente) pelo amor verdadeiro. Ter sexo com alguém a quem não se ama (e quem ama casa!) é algo que machuca a alma. Entendo hoje que essa “energia poderosa” funciona como um cimento: não dá para “colar e descolar” à vontade, a não ser que consintamos em uma boa dose de desmanche do que somos. Nem a criatura mais romântica do mundo escapa disso, se não passar pela mudança de mente operada pela conversão cristã. No início da vida sexual, os rompimentos de namoros que incluem sexo machucam muito (seja sincera com você mesma e você vai se lembrar), literalmente arrancando partes de nós; mas depois de muito tempo, em nome do prazer sem compromisso fomentado pela cultura, começamos a nos forçar a nos acostumar com o processo. O resultado é que nos tornamos cada vez menos propícios a permanecer em um relacionamento. Casamos já pensando em descasar... porque aprendemos a “colar e descolar” em uma roda sem fim. Hoje é Fulano, amanhã é Sicrano... Todos sabemos que o resultado desse “sexo solto” equivale a divórcios em série (e mágoas, crianças feridas, descrença quanto ao amor...). Culpa da “revolução sexual” dos anos 60? Certamente, mas sobretudo culpa do pecado que jaz em nós.

Que Deus a ajude a compreender e vivenciar o verdadeiro amor conjugal Nele.

Abraços.

04 outubro 2009

Resposta a um comentário não publicado


Cara Deborah,

Precisei deixar de fora a totalidade de seus comentários, pois alguns termos que você usa podem ferir a sensibilidade de meus irmãos leitores. Aliás, eu duvido de que você se dirigisse a mim pessoalmente usando esses termos: o conforto que as barreiras tecnológicas oferecem costuma deixar as pessoas menos pudicas. No entanto, algo nos seus comentários me fez pensar que, sem esse conforto, você é uma mulher bem educada com estranhos. Então vamos lá.

Na sua mensagem, você declara: “Sou a favor do homossexualismo, da masturbação, do sexo antes, durante e fora do casamento, contanto que haja respeito mútuo aos cônjuges, pois abomino traição.” Compreendo o conteúdo da sua integridade quanto ao sexo consentido. Eu mesma, embora nunca tenha partilhado dessa opinião, já tive amigos que pensavam assim. Quando eu não era cristã, concordava com o princípio geral que subjaz a essa ideia, tendendo a crer que tudo era permitido, desde que não ferisse a vontade alheia. Porém, essa é a justiça dos seres humanos: falha e limitada. Jesus apontou para esse fato no conhecido Sermão do Monte:

“Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mt 5.20).

Ao longo das Escrituras, entendemos que a justiça dos fariseus (e a justiça humana em geral) é superficial e submetida a subjetividades muitas vezes mesquinhas. Somos pecadores e, mesmo quando queremos acertar, erramos miseravelmente. Acreditar que podemos divorciar ato e pensamento, ato e vontade, ato e emoção etc. é uma das formas desse erro. Assim, é fácil dizer “não pratico o adultério”; mas e quanto ao que ocorre dentro de nós? Jesus sabia que nós pecamos sobretudo interiormente, e que tendemos a nos aprovar se não praticamos aquilo que nos comprazemos em alimentar em secreto. É por isso que, no mesmo Sermão do Monte, Jesus nos lega essa palavra terrível: “Qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela” (Mt 5.28). Ampliando o princípio, não deixamos de ser culpados diante de Deus apenas por nos abstermos da prática de determinado pecado. Conforme nos mostra Jesus em todo o sermão, também sobre “não matar” e “não jurar falso”, somos pecadores por inteiro: não só em atos ou palavras, mas em motivações, desejos e impulsos ocultos. E não há pecado que não cometamos em oculto...


A justiça dos fariseus – e de todos nós – é exterior; nossas boas ações são lixo diante de Deus, pois contaminadas por toda sorte de maldades que ninguém vê. Só Deus pode nos tornar de fato justos em Cristo, para que dependamos Dele e de sua graça contínua, sendo aos poucos transformados profundamente. Deus gera vida a partir do interior; leis e restrições exteriores são úteis, mas apenas servem para nos indicar o que está errado e nos condenar quando transgredimos. É isso que distingue o cristianismo bíblico de todas as demais religiões: nelas, há um antropocentrismo que torna possível a progressão da bondade humana através do cumprimento de certos preceitos morais; em Cristo, que morreu em nosso lugar para que tivéssemos vida, encontramos a morte do nosso ser pecador e o renascimento Nele. Portanto, toda justiça parte de Deus, e não de nós.

Assim, seja sincera consigo: os erros que você condena exteriormente não são os mesmos que você comete interiormente?

(Continua no próximo post)




02 setembro 2009

Enxaqueca*

Na minha pré-adolescência, sempre às voltas com doces e chocolates, descobri algo importante: bastava abusar – comendo uma caixa de bombons inteira ou tomando sorvete demais – que me sobrevinha uma forte crise de dor de cabeça. Nesses episódios, eu tinha de ficar deitada, imóvel, em um quarto escuro, enquanto alguém cuidava de mim (na época, minha mãe ou minha melhor amiga) preparando algo bem inofensivo na cozinha, como canja ou sopa. Meu pai dizia a mesma frase, “isso é fígado”, e nunca ninguém cogitou a hipótese da enxaqueca.

Já adulta, quando meu médico descobriu em meus exames uma deficiência de estrógeno, sugeriu-me reposição hormonal por meio de pílula ou injeção. Topei a primeira, claro. Não lembro se ele me perguntou sobre dores de cabeça, mas o certo é que na bula do remédio estava escrito algo como: “Não é recomendável a portadores de enxaqueca.” Como eu não sabia que tinha enxaqueca, não teria feito diferença alguma.

Cinco anos depois, a constatação da tragédia: crises como aquela, ou até mais fortes, mesmo sem abusar de doce algum, em média três vezes por semana. Algumas duravam cinco dias ininterruptos. Caixas e caixas de analgésico. Medo de andar ao sol, de dormir tarde, de acordar cedo, de fazer muito esforço. Virtualmente tudo era capaz de provocar dores de cabeça.

Tive de sofrer esses anos todos de crises incapacitantes cada vez mais frequentes para enfim ser levada a concluir, através da preciosa ajuda do dr. Alexandre Feldman e de sua esposa Pat Feldman (nos sites indicados e em seus dois livros Enxaqueca: só tem quem quer e A dor de cabeça morre pela boca), que um conjunto de variáveis era responsável pelas dores: em primeiro lugar, a bomba hormonal que eu estava tomando; em seguida, a má alimentação, a falta de exercícios e o sono irregular. Estou aos poucos acertando esses pontos, com o fim da reposição e uma dieta rigorosa (mas libertadora!) o mais isenta possível de produtos industrializados e porcarias químicas. Quando os resultados se tornarem mais consistentes (completei anteontem o primeiro mês do tratamento) eu os posto aqui.

Coragem: se você tem enxaqueca, o fim das dores pode ser uma decisão sua!

* Porque o Blog da Norma Braga também é de utilidade pública. :-)

29 agosto 2009

Mulheres que Não Têm Tempo

Eu já fui uma Mulher que Não Tem Tempo. Quantos fins-de-semana perdi completando revisões em casa! Recebia telefonemas de amigos para sair e respondia sempre com a invariável e desalentadora frase: “Não dá, tenho trabalho.” Aos poucos foram parando de me ligar.

E tudo isso, para quê? Eu morava com meus pais, não precisava de tanto. Mas queria gastar em roupas e sapatos. Livros, também, embora os mais caros nunca fossem eles. Curioso é que, apesar de tanto trabalho, não conseguia guardar o que ganhava. Excedia-me nas atividades, excedia-me ainda mais nos gastos. Mesmo depois de convertida, a mania por cheques pré-datados me perseguiu. Chegava a passar tantos que ficava sem dinheiro para as coisas mais simples do mês: pegar um ônibus, fazer um lanche na rua. Não me programava e nem queria – cálculos significavam limites.

Ao longo dos anos, e com muito choro diante de Deus, fui me endireitando. Compreendi a equação que bastante gente se recusa a efetuar: não a clássica, pragmática e perversa “tempo é dinheiro”, mas sim sua inversão, “dinheiro é tempo”. O que eu estava perdendo – camaradagens, passeios, leituras preferidas – equivalia às roupas que muitas vezes sequer chegava a usar, sapatos que no fim me machucavam, excessos que não apenas me entupiam o armário, mas me roubavam vida? Certamente que não.

Hoje, com a graça de Deus, tenho ajustado cuidadosamente meu orçamento para não ser forçada a trabalhar demais. Não se trata somente de ganhar tempo para prazeres: aos poucos, quero me recolher da frenética sucessão de atividades profissionais para abrir em minha vida o lugar de esposa e mãe no futuro. Esse lugar não é feito somente de lavagens de roupa e trocas de fralda, de acordo com distorções modernas; inclui, sobretudo, sondagens emocionais infinitas, de si e dos amados, acompanhadas da orientação, da compreensão e do acolhimento de que somente a mulher é capaz. Quando o frenesi lá fora parece esmagar a subjetividade, é a mulher que percebe o olhar perdido dos seus e os traz para casa, para o ambiente íntimo em que o valor intrínseco do ser é reafirmado.

Mas, se não tem tempo, a mulher está tão perdida quanto todos à sua volta. Sua função se esvai. E quem a substituirá? Essa é uma das tragédias mais pungentes do nosso tempo: a preferência pelo viver exteriorizado, sob o pretexto de uma igualdade de funções sociais entre homem e mulher, está matando a todos nós. Sem que a igreja se manifeste substancialmente sobre a questão ou aja de modo a ser melhor modelo, só vejo deriva com relação a esse assunto. Quanto a mim, estou em um dos níveis mais baixos de aprendizado, se é que de fato estou aprendendo alguma coisa (a prática o dirá). Que Deus me ajude a ser diferente e a abordar de forma apropriada o tema nos próximos posts.

P.S. Gostaria de agradecer a todos os leitores que oraram por mim sobre trabalhar menos. Depois de um período difícil em que praticamente todas as minhas horas de vigília estavam tomadas por aulas e revisões, Deus nos ouviu: neste mês, passei a atuar somente como autônoma. Precisei de coragem para sair de onde estava e Deus deu graça: não apenas estou conseguindo gerenciar melhor meu tempo e minhas finanças, mas nunca estive tão feliz!

11 agosto 2009

Uma relativista emocional em remissão

No blog, falo aqui e ali do amorrrrr, neologismo que criei para designar essa tão popular forma de pseudo-amor que nos torna coniventes com os pecados alheios. Mas nunca contei como tive de reconhecer em mim mesma uma imensa dificuldade de posicionar-me com firmeza em situações delicadas. Bom, na verdade é mais que isso. Sempre fui uma espécie de Zelig de saias, personagem de Woody Allen que adquiria a forma e os trejeitos de todos aqueles com quem travava contato. Quando pessoas queridas se abriam comigo, eu tendia a adotar a atitude de uma compaixão derramada e informe, amalgamando-me a suas dores e vendo a vida com seus olhos. Parece bonito? Não é não: como ajudar, se não conseguia confrontar? Resultado: tempos depois, sempre me dava conta de que poderia ter ajudado aquela pessoa se tivesse norteado minhas palavras pela visão correta, biblicamente orientada. Isso acontecia tanto – e ainda acontece, infelizmente – que até já perdi a conta. Sempre me faz sofrer; porque, na maioria das vezes, um ouvido amigo é bom, mas as pessoas precisam de muito mais que isso. (Por essa razão, também, nunca fui uma boa evangelista!)


Então, confesso aqui: sou uma relativista emocional em remissão. Minha identificação sem limites com o outro me proporcionou uma capacidade de esponja: absorvo o que recebo quase sem triagem alguma, caso haja algum elo afetivo na comunicação. Isso não acontece de modo invariável, mas foi verdade em um número suficiente de vezes para que eu finalmente tivesse que reconhecer um padrão. Também acontece em leituras, motivo pelo qual sofri tanto com certos livros.

O relativismo emocional me custou muito. Foi a porta de entrada para pecados, manipulações alheias, confusões mentais. Foi o motivo de meu silêncio bovino quando falavam mal ou de modo enviesado da fé cristã em boa parte das aulas da pós-graduação. Foi a parte mais importante do pretexto para que eu quase me desviasse para sempre, enquanto cursava o mestrado na universidade e enxergava cristianismo nas obras de certos autores da modernidade francesa. Quando "voltei" pela mão misericordiosa de Deus e vislumbrei o abismo para o qual me dirigia, declarei uma definitiva guerra ao relativismo pós-moderno. Declarei guerra ao esquerdismo também, quando percebi que era o terreno comum de onde o relativismo brotava. No início, era uma guerra silenciosa, travada em meu interior na companhia de autores conservadores. E foi na amistosa companhia de amigos também conservadores que, em uma lista de discussão, aprendi a falar pública e livremente da minha fé e das reflexões bíblicas que sempre me ocuparam. Devo muito a eles, a essa lista, ao encorajamento que recebi, para que pudesse começar a me expor com mais segurança.

Poucos meses depois, fundei o blog e, mais fortalecida, transferi minha guerra para cá. As duas pontas se confirmavam mutuamente: no blog eu falava de minhas experiências sem contá-las, ou seja, apresentava ao leitor apenas o resultado do que tinha vivido tão dolorosamente; ao mesmo tempo, essa apresentação esclarecia melhor esses conteúdos para mim mesma, deixando mais "assentado" o que eu havia aprendido. Como afirmava Sócrates: "Uma vida não-examinada não vale a pena ser vivida." O blog passou a ser o espaço do meu reexame, em que cada preciosidade cunhada por Deus a mim, e entregue ao leitor, tinha uma longa história de busca, tristeza e quedas por trás. Um reexame que eu fazia e faço publicamente para ajudar outros, mas, em primeiro lugar, para combater todos os dias a terrível relativista que sou. É meu jugo e meu fardo, parte de minha luta cristã, que resulta nessa bênção miraculosa: ao expor minha transformação, transformo-me mais profundamente e ainda dou ensejo a que outros se transformem também, de acordo com o que tenho recebido e julgo ser da parte de Deus. Um dia eu me deterei mais longamente sobre cada uma dessas histórias. De fato, vislumbro esse encaminhamento, na medida em que tomo por voz narrativa um eu mais confessional, mais próximo ao que sou. Por enquanto, contento-me em deixar, aqui, o acabamento lisinho do que vivi. Os bastidores terão que esperar por enquanto, mas virão, porque sei que podem ser a coisa mais edificante a fazer para a igreja brasileira hoje. Não por meus próprios méritos, mas porque, como cristã convicta, eu sei o que Deus tem feito em mim, e é isso que quero contar. Para Seu louvor somente.

01 julho 2009

À Cristianismo Hoje

Publicado no site da revista.

Caros editores,

Como a maioria dos comentadores desta página, venho manifestar meu repúdio pelo tratamento dispensado a Julio Severo nessa reportagem. Está bastante claro que Cristianismo Hoje quis entrevistar Severo ao mesmo tempo em que se mostrava abertamente antipática às posturas do entrevistado. No entanto, o título, a apresentação e o tom das perguntas mostram que isso foi feito de modo desrespeitoso - o que fala não só da inabilidade do jornalista (é possível evidenciar discordância sem desrespeito), mas sobretudo do descaso de um veículo midiático que traz Cristianismo no nome para com a luta e as perseguições de alguém que deveria ter sido tratado como irmão. O resultado final é não apenas ridículo (nunca vi um entrevistado ser tratado dessa forma no próprio veículo que o entrevista), mas contraria fortemente os ideais de fraternidade cristã, sendo indigno do nome da revista. Porém, ainda há tempo para um saudável arrependimento bíblico, expresso na forma de uma retratação, útil também para corrigir os excessos do jornalista responsável pela matéria. Fica aqui minha sugestão.

Cordialmente,

Norma Braga

04 junho 2009

Enquanto isso...

Há artistas que não se preocupam com grandes multidões: estão igualmente felizes se mostram sua arte a grupos pequenos ou a platéias a perder de vista. Ou, ainda, sentem-se mais felizes en petit comité, talvez por um temperamento de tendências introspectivas, intimistas.

Identifico-me com eles. Vi ao vivo John Pizzarelli em uma livraria no Leblon, tocando sua guitarra para as quarenta pessoas que se espremiam no chão do lugar. Era evidente sua alegria ao olhar para cada um dos rostos ali presentes, tão pertinho, cantando junto com ele. E vi no You Tube os dois rapazes do Kings of Convenience na praia de Ipanema (digite "Ipanema Beach"), tranquilos e satisfeitos sentados à sombra de um quiosque, dedilhando seus violões sem nenhuma pose de "artista importante", enquanto à volta as pessoas conversavam, cantavam ou estalavam os dedos no ritmo da música.

Há algo disso em mim. Não me preocupo com imagem, com pose alguma, quando dou aula ou quando me exponho escrevendo. Meus alunos se sentem muito à vontade comigo, tanto que eu não poderia jamais dar aulas para crianças: não saberia estabelecer os limites de que elas precisam.

Drummond parou de escrever durante alguns anos porque não tinha o que dizer. Schaeffer deixou o ministério por certo tempo para mergulhar em um profundo questionamento com Deus. Admiro-os por isso. Nenhuma das duas situações é meu caso - tenho o que dizer e não estou em crise de fé - , mas tenho reformulado comigo mesma algumas ênfases e buscado respostas de um modo quieto. Enquanto isso, o maior espaço entre as postagens tem se imposto naturalmente. Se o leitor ficar impaciente, é o momento de fazer como Cristiano Silva, ler os textos antigos. E, por que não, de ouvir John Pizzarelli e Kings of Convenience no You Tube.

Aos poucos retomo a regularidade. Não vos deixarei órfãos, prometo. :-)

24 maio 2009

Mudança(s)


Tenho uma excelente desculpa para a grande distância entre este post e o último: mudei-me de cidade. Atravessei dez horas de estrada com todos os meus móveis e mandei meus dois gatos por avião. Foi uma boa mudança, mas trabalhosa, deixando-me praticamente sem tempo de postar.

Não que tudo tenha sido rápido demais. Tive tempo de sobra até a decisão final. Porém, sei que há mudanças que a gente não planeja. Mesmo reconhecendo Deus como o Senhor do tempo e do universo, muitos cristãos costumam se deixar abater por mudanças inesperadas.

Pensei nisso quando enviei meus gatos de avião para a nova cidade. É sabido que os gatos odeiam mudanças; são seres de rotina. (Não confundir com a falsa ideia de que os gatos se apegam mais à casa que aos donos: gatos se apegam tanto quanto cachorros, apenas têm um jeitinho mais discreto de expressar amor. Não abanam o rabo, por exemplo. Mas o geralmente guloso Mel fica quase sem comer quando eu viajo, e o espevitado Chantilly pula de alegria quando chego em casa depois de um dia de trabalho.) Por respeito a essa característica e sobretudo aos preceitos da Posse Responsável, não permito que meus gatos saiam para nada, nem para ir ao veterinário, que os examinava e aplicava as vacinas em casa.

Assim, quando eu os coloquei em suas caixas de transporte para levá-los de táxi até o aeroporto, ambos choraram como eu nunca tinha visto. Os olhares arregalados e os miados lamentosos me partiram o coração; não havia nada que eu pudesse fazer para tranquilizá-los de que eu jamais os abandonaria. Não adiantava falar manso ou fazer carinho através das grades das caixas. Na visão limitada deles, seu destino era incerto e o mundo lá fora parecia perigoso demais. Estavam deixando uma rotina que amavam e não sabiam o que os aguardava. A agitação em torno os fez esquecer por completo minha presença. Foi triste vê-los assim, mas tudo o que me restava a fazer era esperar até que o processo fosse concluído, quando eles saberiam enfim que a mudança era para melhor.

Hoje eles estão felizes na nova casa, que é maior. Brincam com mais liberdade pela sala e ainda recebem o carinho supervisionado dos vizinhos de condomínio através das telas de proteção. Rememorando suas reações e compreendendo o terror por que haviam passado, julguei irresistível comparar isso tudo a nossa relação com Deus. As revoluções que Ele efetua nas vidas de Seus amados são muitas vezes incompreensíveis e apavorantes; mas, se somos filhos, sabemos que são para melhor, sempre, ainda que não pareçam melhores em um primeiro momento. É quando precisamos desviar os olhos do desmoronamento do nosso mundo conhecido para ouvi-Lo sussurrar mais uma vez: “Nunca te deixarei, nem te abandonarei.”

13 janeiro 2009

Elomar

Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos. Isaías 55:9

Ainda na graduação, fui a um congresso em outra cidade. Conferência após conferência, a palavra de ordem era “A verdade não existe”, repetida ad nauseam, não importava o tema proposto. No auditório lotado, as cabeças se inclinavam docilmente em assentimento.

Aquele mantra foi gerando tal angústia dentro de mim que não pude mais: corri para o banheiro e desatei a chorar. Por que um congresso em Letras precisava ser tão dogmático quanto a uma questão filosófica? Teria a linguagem se tornado uma espécie de instância última da realidade? O que eu estava fazendo ali, tomando parte, sem querer, de um mal disfarçado culto ao relativismo? Por que, raios, os cursos modernos de humanas tinham de se parecer mais com a repetitiva pregação de uma teologia negativa? Eu não poderia tomar outro caminho e permanecer na academia? Eram perguntas não formuladas com clareza (só seriam visíveis de fato depois), mas que me causavam uma dolorida perplexidade.

Enquanto durou o congresso, perambulei por aqueles professores como se fosse a última das criaturas. Era óbvio demais que eu não pertencia à “nata” – sentia-o quase como quem detecta em si não apenas uma diferença incontornável e definitiva, mas um defeito grave. Uma inferioridade fatal me atravessava e me entristecia, mantendo-me calada ali. Eles eram a luz, eu era o obscurantismo. Eles encarnavam a própria Inteligência Acadêmica, enquanto eu não passava de um esforço tímido e provavelmente ineficaz de reconciliação entre conhecimento científico e fé cristã.

À noite, na casa de meus parentes daquela cidade, fiquei quietinha na cama, luzes apagadas, ouvindo Elomar no walkman antes de dormir. Quando tocou Cantiga do Estradar eu vi, como em um travelling de cinema, todos aqueles professores do congresso sentados um ao lado do outro em uma grande tribuna. A letra dizia: “Legião de condenados/ nos grilhões acorrentados/ nas trevas da ignorância/ sem a luz do grande Rei.”

Bastou para que Deus restabelecesse em minhas emoções cansadas a ordem correta das coisas. Desde então, aquele velho sentimento de inferioridade diante da sapiência acadêmica nunca mais me atingiu.

30 novembro 2008

Solidariedade para Santa Catarina

As enchentes em Santa Catarina têm deixado a muitos desabrigados. Este blog dá sua contribuição divulgando os sites da Defesa Civil e de ONGs de ajuda aos animais (que na maioria das vezes não são priorizados no resgate). Qualquer gesto para ajudar a mitigar o sofrimento de seres humanos e bichos com fome e frio será recebido com alegria. Confira os links com as informações: Defesa Civil de Santa Catarina e Prefeitura de Florianópolis. Vamos fazer nossa parte como cristãos.

12 novembro 2008

O testemunho do mundo

Desde adolescente, de vez em quando eu ouvia na rádio uma música muito triste de Carly Simon, chamada That's the Way I Always Heard it Should Be. Nunca conseguia prestar atenção na letra, mas apenas pescava o refrão: “You want to marry me; we'll marry.” Não entendia como uma música que falava de casamento podia ser tão triste; no entanto, mesmo de modo inconsciente, percebia o recado: a infelicidade no casamento é algo inevitável. De fato, a letra fala dos vários modos que essa infelicidade pode assumir, com a concordância conformada da mulher que, depois de enumerá-los, parece dar de ombros: “Mas, se você quer casar mesmo assim, a gente casa.” Deprimente!

Um dia, ouvindo essa música mais uma vez na minha rádio da internet, resolvi pesquisar a vida de Carly Simon. A única coisa que eu sabia é que ela havia sido muito infeliz com James Taylor. Pois sua vida foi uma sucessão de relacionamentos malsucedidos. Casou-se duas vezes. No fim, ela já estava compondo canções com letras do tipo “que o amor seja eterno enquanto dure”. Li que é conhecida por um gênio difícil e que topa relações com mulheres. Está sozinha. A música é de 1975, mas Carly Simon continua fiel a seu triste testemunho.

Esse é o testemunho que o mundo tem a proclamar, hoje, sobre o casamento: é ruim, não dá certo, ambos serão infelizes e terminarão se separando. A culpa? Do destino; ninguém sabe muito bem onde está a culpa; ninguém a assume. É engraçado como, proclamando-se muito “científico”, o homem moderno consegue pensar e se comportar como um pagão de tempos idos. Ninguém pensa nas motivações que levaram à escolha do outro. Ninguém pensa que deixou de dedicar tempo e cuidados ao outro. Ninguém pensa na intimidade que se negou a permitir ao outro, por medo de destruir uma imagem positiva demais de si mesmo... e que casamento sem intimidade é como a nudez através de um vidro fosco: como amar profundamente a quem não se conhece? Enfim, pressupõe-se que um casamento infeliz é algo que simplesmente “acontece”, tão inexplicável e imprevisível como seriam os acidentes naturais para os antigos.

Se você é cristão e está solteiro, não creia nessa mentira diabólica. Espere em Deus. O casamento entre dois cristãos sinceros, que amam a Deus e procuram viver em santidade, cuidando para não reproduzir dentro da relação os modos mundanos de ser e agir, tem um destino certo: revelar ao mundo sedento o profundo amor de Deus através de um homem e uma mulher que se amam incondicionalmente. E esse talvez seja o testemunho mais belo que um cristão pode deixar nesta terra. Não desista. Guarde-se com esperança; se você não tiver o dom do celibato (algo muito mais raro que se pensa), ele (ou ela) virá. E, se permanecerem em Cristo, vocês serão felizes!

25 outubro 2008

Seis primeiras notas sobre Ortodoxia, Chesterton


1 Fiz a besteira de tomar açaí lendo Ortodoxia em uma lanchonete. Descobri que são duas coisas a serem evitadas em público: açaí deixa a boca e os dentes pretos, enquanto Ortodoxia provoca gargalhadas. As duas, juntas, são um verdadeiro fiasco.

2 Mas nada, no livro, é humor puro. Ler essa obra de Chesterton é como estar na companhia de um divertidíssimo amigo que alterna brincadeira com coisa séria, sem muitas firulas na passagem de uma à outra. Logo nas primeiras páginas, depois de rir bastante, posso sentir como libertadora a crítica chestertoniana ao materialista, bem como ao subjetivista, como dois lados da mesma prisão do pensamento moderno: um fechamento digno de hospício. Além de deliciosamente ilustrada, tal crítica tem o poder de prevenir muitos nós mentais fatalmente adquiridos durante a graduação de qualquer curso de ciências humanas. E isso, só para começar.

3 A condição humana, Hannah Arendt, também ajuda no mesmo sentido preventivo, embora, filosófico e doído em vez de divertido, seja muito mais teórico e pontual, concentrando-se na origem do trambolhão reducionista que desembocou tanto no materialismo quanto no subjetivismo: René Descartes. Ainda pretendo estudá-lo direito, lendo as Meditações e tudo o mais.

4 Percebo-me um tanto penalizada com relação aos católicos que leram Calvino via Chesterton. Não me entendam mal, Chesterton é um gênio; embora eu esteja apenas no início de Ortodoxia, já o considero um dos livros da minha vida. Mas é indiscutível que Chesterton leu mal Calvino, confundindo predestinação com determinismo. Tsc-tsc.

Já busquei contribuir para com o desembaraço dos mal-entendidos tentando mais de uma vez explicar calvinismo a católicos sinceros, sem sucesso. Verdade é que uma força bem maior que a ideologia - a fidelidade à Igreja-Mãe - os impede de sequer considerar-me com a atenção devida. No entanto, bastaria apenas que compreendessem o esforço doutrinário de Calvino dentro do que o próprio Chesterton chamou "mistério sagrado do livre-arbítrio" e um dos paradoxos no centro do cristianismo (assim como os dois braços da cruz se encontram). Algo que me permito agora desenvolver em pouquíssimas palavras dessa maneira: o Deus criador do tempo e pai de todo o futuro é, também, o inventor da liberdade humana. Durmam com esse lindo paradoxo; eu o adoro e vivo muito bem com ele. E, se quiserem um resumo menor ainda, lá vai: nele reside todo o calvinismo. Pelo menos, para esta leitora que vos fala. Calvino apenas reforçou em sua teoria o lado menos compreensível para nós, qual seja, o de Deus - a gestação do futuro em Suas mãos.

5 Não deixa de ser curioso que, assim como Calvino hoje, Chesterton continua sendo mal compreendido. Ora é acusado de um superficial frasismo, ora de um dogmatismo mal argumentado, ora de um subjetivismo leviano. Não se trata de nada disso. Leiam, leiam.

6 As observações injustas de Chesterton sobre Calvino não me impedem de gargalhar, até mesmo em público e tomando açaí, ao ler o grande e gordo galhofeiro católico sobre um poeta inglês: "He was damned by John Calvin." Sim, porque o reformado que não sabe rir de si mesmo é um reformado, no mínimo, sem imaginação.
P.S.1 Ao leitor que lamenta uma atualização mais freqüente do blog, um pedido: quando vier aqui e encontrar o mesmo texto lido anteriormente, faça por favor uma pequena e singela oração, assim - "Senhor, permita que a Norma consiga um emprego em que ganhe mais trabalhando menos". Serei muito grata a você se fizer isso! :-)

P.S.2 Este blog ainda não aderiu à reforma ortográfica. Ainda é apegado aos acentos que foram suprimidos e espera fazer o devido luto para, um dia, incorporar tais mudanças a seu idioleto.

05 outubro 2008

Os Beatles e a Perestroika


Comprei um dvd de um show recente do Paul McCartney na Rússia. Comprei e deixei guardadinho para ver quando me desse muita vontade. Gosto de comprar e guardar livros, cds, filmes, para depois redescobri-los com alegria.

Bom, eu não esperava nem de longe o que vi. Para mim, seria um show de Paul McCartney na Rússia, como em qualquer lugar; podia ser na China, na Índia, na Argentina. Mas não. Essa era simplesmente a primeira vez em que um dos Beatles pisava lá, em maio de 2003, com mais de cem mil espectadores na Praça Vermelha. E eu não sabia.

O show é todo entrecortado por testemunhos emocionantes de antigos fãs e impressões de Paul sobre o país. Na época em que os Beatles estouraram em todo o mundo, a Rússia, então União Soviética, vivia no auge do comunismo, de portas trancadas para o Ocidente, considerado portador dos “valores decadentes do capitalismo”. Os discos eram proibidos, ouvidos na clandestinidade. As letras da canções, o comportamento irreverente dos quatro, as opiniões que emitiam diante das câmeras, tudo isso era um “mau modelo para a juventude” segundo o regime. Tudo isso falava de liberdade. Gostar de Beatles tornava-se então um tabu acalentado peles jovens russos com fome de uma vida livre. No vídeo, quem era jovem na época conta que sua geração gastava até o que não tinha para comprar os discos no mercado paralelo, reunia-se em festas, aprendia inglês com as canções, perguntava-se sobre quem era quem nas capas (pois não havia como descobrir), sonhava com aquele universo. E lamentava: o que o mundo todo podia abraçar como um bem comum era algo exterior, inatingível e alienígena, naquele país fechado à força de poderes abusivos que não visavam apenas a ordem exterior, mas sobretudo a subjetividade.

Quando Paul McCartney vai à Rússia livre, com um presidente eleito pelo povo na platéia, torna-se patente o fato como um símbolo. O governo não é mais o censor do prazer, da liberdade, da espontaneidade. Na platéia, jovens de todas as gerações cantam e choram ao ouvir The Fool On The Hill, Maybe I'm Amazed, Let it Be, Hey Jude. O ex-presidente Gorbachev recebe Paul McCartney e reconhece: as canções dos Beatles contribuíram para a Perestroika, preparando o povo russo para a abertura de suas fronteiras. E McCartney se emociona ao cantar “the fool on the hill sees the sun going down” enquanto o sol se põe entre as belíssimas construções em torno da Praça Vermelha.

Enquanto isso, no Brasil, o comunismo ainda é sinônimo de juventude e liberdade. Onde, meu Deus, onde? Se a cada post eu pudesse realizar um desejo, o meu neste aqui seria: que pelo menos os fãs brasileiros dos Beatles pudessem abandonar qualquer pretensão comunista. Que fosse, apenas, por causa da história da Rússia. Já seria um motivo mais que suficiente.
Nesse trecho do dvd, um dos membros daquela geração conta: “Sintonizar Beatles no rádio podia prejudicar você no emprego, na escola, na faculdade; tentar conseguir discos no mercado negro podia dar em prisão; ir a shows onde tocassem músicas dos Beatles, então, gerava conseqüências que nem dava pra imaginar. Vivendo numa situação dessas, você acaba desenvolvendo uma relação muito mais intensa com a música.” Paul McCartney completa: “Era impossível tocar lá. Nossos discos não estavam à venda. Bom, um jeito garantido de tornar algo popular é simplesmente proibir.” Um antigo fã, hoje Ministro da Defesa, comenta: “Não havia discos dos Beatles à venda na Rússia. Só algumas canções em compactos (uma música em cada lado).” E outro mostra o primeiro disco de Paul McCartney liberado para comercialização no país. Era para ser Band On The Run, mas, em vez disso, numa significativa sobreposição, o selo do meio vinha com o logo do Ministério da Cultura. O motivo: Band On The Run havia sido retirada do álbum porque não era "bom" que o ouvinte soviético ouvisse falar de bando, prisão e fuga. Todo contente, o Ministro da Defesa conta que satisfez um de seus grandes desejos – comprar a discografia completa dos Beatles – somente em 1984. Um ano antes da Perestroika.

28 setembro 2008

Como eu era: pequeno dossiê Conversão

Alguns anos antes de me converter, em 1992, um rapaz no ônibus pregou para mim a caminho da faculdade, provocando-me a uma ira intensa. (Posso compreender hoje a ira que algumas pessoas sentem quando prego para elas.) No mesmo dia fiz um relato raivoso das palavras trocadas com ele, que começava assim:

Há muito tempo eu já havia deixado para trás essa história da existência de Deus – se ele existe, ótimo, mas isso não muda em nada a minha vida. Pois eu estava desenvolvendo uma crença forte em mim, em meu deus interno, cansada de querer acreditar em algo ou alguém mais poderoso que eu capaz de me salvar e de fazer tudo por mim.

Esse parágrafo é revelador de como eu era, de como eu estava: sufocando uma sempre presente ânsia por Deus debaixo de uma penca de conteúdos espíritas e esotéricos, todos destinados a camuflar com um disfarçado humanismo uma insegurança infinita. Eu me queria forte a todo custo, um inadmitido falseamento de mim mesma, e a incoerência dos textos esotéricos que me chegavam às mãos se encarregava do falseamento de tudo o mais. Ao mesmo tempo em que tentavam solapar o desejo pelo transcendente ao persuadir o leitor de que o homem era sua própria divindade e deveria se satisfazer com isso, essas estranhas e ilógicas construções textuais eram imbuídas de conteúdos que atribuíam a tudo no mundo uma pessoalidade roubada do ser de Deus. Enquanto o mundo se afigurava mais que humano, doador de múltiplos sentidos, Deus não passava de uma força perfeitamente moldável pelo homem. Uma árvore era mais pessoal que Deus e podia ser fonte de vida e transformação, como qualquer outro ser. O mundo esotérico é cheio de uma adoração difusa a todo e qualquer objeto, concomitante à negação da pessoalidade e do poder de Deus. Poderoso fator de inversão, o esoterismo faz transbordar nossa subjetividade, sobrepondo-a ao real – um perigosíssimo alheamento que eu não podia perceber na época, mas que me custara experiências muito penosas.

Quando me converti, lia a Bíblia com bastante dificuldade, pois ainda estava me desintoxicando da indistinção mental esotérica, responsável por atribuir sentidos até contraditórios ao mesmo texto. Quase decorei o trecho de Hebreus que desfaz a crença na reencarnação, porque precisava ter certeza de seu significado. Lia os evangelhos e as passagens jogavam minha mente para várias direções, deixando-me louca, fazendo com que eu orasse de modo bem dolorido para que Deus firmasse minha mente na interpretação correta.

E tudo retornou aos poucos a seu lugar. Minha visão tomava foco: nada mais pedia para ser adorado, mas tudo no mundo apontava para o criador. E eu "ganhei" um Pai amoroso, que me presenteava com o fardo leve da fé: não precisava mais ser forte, bastava ser fraca Nele. Compreendendo a cegueira anterior, eu era como uma criança novamente, agradecida por receber partes de um verdadeiro conhecimento – do mundo, de mim, de Deus. Lembro que ouvia uma música de John Lennon, Oh my love, e partilhava dos mesmos sentimentos expressos ali. Bastava trocar my love por "My Lord", e a letra descrevia com exatidão o maravilhamento que eu experimentava ao enxergar pela primeira vez.

Oh my Lord for the first time in my life,
My eyes are wide open

Oh my Lord for the first time in my life,

My eyes can see

I see the wind, I see the trees,

Everything is clear in my heart,

I see the clouds, I see the sky,
Everything is clear in our world,
Oh my Lord for the first time in my life,
My mind is wide open,
Oh my Lord for the first time in my life,
My mind can feel
I feel the sorrow, I feel dreams,
Everything is clear in my heart
I feel life, I feel love
Everything is clear in our world

11 setembro 2008

Diálogos (medicamente) irrelevantes VI

- E aí, já foi participar da campanha do Temporão? Foi tomar a vacina da rubéola?

- Não. Eu não vou me vacinar.

- Como assim, “eu não vou me vacinar”? Tá maluco?

- Ué, eu tive rubéola quando era criança.

- Mas você não viu o aviso do governo? Homens e mulheres de 20 a 39 anos devem tomar a vacina mesmo já tendo contraído a doença.

- E qual o sentido lógico de tomar uma vacina se todos os médicos dizem que, tendo tido a doença, estou imunizado para sempre?

- O site da campanha explica que os sintomas da rubéola podem ser confundidos com os da gripe...

- Aquele site da campanha é horrível, os textos são superficiais e cheio de erros de português. Você confiaria num profissional que nem sabe falar direito?

- Mas...

- Além disso, eu tive rubéola, e não gripe. Lembro muito bem. Eu tinha uns sete anos. Não conseguia dormir porque meu corpo estava quente demais. De repente começou uma coceira horrível nas mãos e nos pés. Quando olhei, estavam vermelhos. No hospital falaram que era rubéola.

- Mas, e se erraram no diagnóstico?

-Se erraram, qual a garantia de que uma vacina do governo vai consertar o erro? Você confia tanto assim no governo? Prefiro confiar nos médicos que me atenderam quando eu era criança.

- Cara, não custa nada...

- Ah, custa sim. Você já se vacinou?

- Ainda não.

- Na internet tem gente reclamando de efeitos colaterais, alergias. Tem gente de cama por causa da vacina.

- Não vi.

- Também tem gente que não teve nada. Mesmo assim, para que tomar uma vacina se os efeitos da vacina podem ser piores que os da própria rubéola?

- Ah, você acredita nessas histórias de internet?

- E você acredita no governo?

[Pausa]

- Se você acredita em tudo que sai na internet, você também deve ter visto aquela história ridícula de que a vacina pode causar infertilidade...

- Não há nada provado. Mas não desconsidero.

- Caramba. Você está mesmo sendo irracional.

- Irracional? Vamos lá. Número um: eu já tive rubéola. O governo diz que eu tenho que me vacinar e não me explica por quê. Bom, se eu estivesse sendo irracional é que eu iria me vacinar. Justamente por ser racional é que não vou. Ninguém me convenceu de que eu preciso dessa vacina. E olha que pesquisei.

- Certo. Número dois?

- Número dois: a vacina está causando efeitos colaterais. A vacina é do governo. Se os serviços do governo fossem bons, ninguém reclamava tanto.

- Tá bom. Tem um número três?

- Tem.

- [Suspirando] Qual é?

- O ministro Temporão.

- Que é que tem?

- Ele defende o aborto declarando que é uma questão de saúde pública. Pois bem: quem confunde feto com doença não sabe o que é doença. Não acha?

- ...

- Foi o que pensei.

03 setembro 2008

Discussões lingüísticas

Gustavo Nagel veio hoje todo faceiro me indicar um post do novo blog de... Caetano Veloso! Pois é, o post trata justamente do assunto da recente discussão que tive com Raquel Nery sobre algumas implicações da lingüística moderna (ou nem tão moderna, já que essas idéias têm pelo menos quarenta anos). O fato é que o post é bom demais e eu não resisti: comentei. Minha felicidade é que, com esse comentário, consegui algo que não tinha conseguido até então com Raquel: resumi praticamente tudo o que penso sobre o assunto. Sintam-se à vontade para continuar debatendo aqui! Abaixo, o comentário, com o link para o post do blog de Caetano.
Olá, Caetano,

Que coincidência receber agora a notícia deste post: estava justamente conversando sobre isso em público, via blogs, com uma professora de lingüística (sou professora de francês e literatura). Em resposta a meus lamentos sobre algumas mudanças no português brasileiro que atentam contra a ossatura do idioma (ou seja, a sintaxe - como "é o carro que você precisa"), ela me acusava de elitismo. Ora, cito você -

"as pessoas que dizem “grobo” são as mesmas que têm vocabulário menor, menos acesso aos conhecimentos, menos poder"

- para afirmar que, se há no estudo do idioma a função descritiva e a normativa, não entendo por que os profissionais de Letras envolvidos na primeira função (os lingüistas) insistem em menosprezar a segunda, negando a necessidade de padrões para os idiomas e transformando a norma culta numa espécie de instrumento de opressão próprio das "classes dominantes" - um marxismo barato transposto para estudos lingüísticos. Além do mais, embora sejam duas funções igualmente importantes, há uma diferença significativa entre elas: a primeira é eminentemente acadêmica (descreve-se para compreender melhor o idioma e produzir teoria), enquanto a segunda gera resultados fora das portas da universidade, na medida em que, através do ensino para um maior domínio da modalidade culta, há um real aumento não só de possibilidades de ascensão social, mas de desenvolvimento pessoal. Quem domina o padrão culto não só angaria mais oportunidades profissionais, mas lê melhor, escreve melhor e, acredito, até pensa melhor. Assim, o resumo de meu argumento é: enquanto os lingüistas pretendem criar para essas pessoas de "menos poder" uma ilha de falso consolo, são os professores de português (os Pasquale da vida) que de fato lhes estendem a mão e as puxam para cima.

Que os lingüistas continuem portanto naquilo que é de sua especialidade - descrever o uso do idioma - enquanto os professores de português fazem o que é de sua competência: ensinar a variante culta da língua. Descrever e normatizar são duas funções diversas, mas ambas possuem relevância. Não é preciso que uma diminua para que a outra cresça.

Seu blog e esse post foram uma agradável surpresa. Parabéns!

Abraços,

Norma

P.S. Manuel Bandeira confessou achar bonitinho quando os cariocas dizem "para mim fazer". Particularmente não gosto, mas tenho especial simpatia pelo fenômeno que você citou na linguagem oral de Minas Gerais: a ausência dos pronomes em determinados verbos ("Ele assustou!"). Ora, podemos de fato apreciar alguns desvios da norma culta (orais ou escritos) sem, com isso, adotar esse discurso populista de nivelamento. Aliás, saber apreciar desvios é uma das condições para a fruição da literatura. Senão, professores de português jamais leriam ou recomendariam Guimarães Rosa! ;-)

02 setembro 2008

Por que eu ainda gosto de Girard

Essa entrevista (em inglês) está sensacional. Trechos:

We are losing every contact between language and the regions of being. Today we believe only in language. We love fairy tales more than in any other era. But Christianity is a linguistic truth, the logos.

I filled my head with the farcical, with the stupid, simple mediocrity of the avant-garde. I know well how the postmodern denial of reality can lead to the discrediting of the moral questions about man. The avant-garde, at one time relegated to the artistic field, today extends to the scientific, which thinks about the origin of man. In a certain sense, science has become the new mythology: man has created life.

The Christian religion, the greatest revolution in human history, is the only one to remind us of the correct use of reason. It is a challenge that carries with it the concept of guilt. For a long time, Europe had decided that the Germans had to be the scapegoats for World War II; it was impossible to attack communism or nazism. Once the death of God was declared, along with the end of the possibility for the word ‘enlightenment’ to have any religious meaning, there had to arise an ‘anti-God,’ a counter-divinity: communism. I agree with Ernst Nolte’s thesis on the affinity between Nazism and communism. Every totalitarian regime begins with the suppression of religious liberty. Today, this anti-life counter-divinity is revived in scientism.

From here, there is born a culture shipwrecked in the present. From here, there originates even a hatred for a vibrant culture that affirms universal truth. Today, it is widely believed that sexuality is the solution to everything; instead, it is the origin of the problem. We are continually being seduced by a suggestive ideology of allurement. Yet deconstruction does not contemplate the sexuality at the core of human folly. Our insanity thus lies in our willing efforts to make sexuality a banal, frivolous matter. I hope Christians don’t follow this direction of deconstruction. For violence and sexuality are inseparable. This is why sexuality contains both the most beautiful and the darkest elements that we carry within.

The twentieth century was the century of classical nihilism. The twenty-first century will be the century of alluring nihilism. C. S. Lewis was right when he talked about the abolition of man. Michel Foucault added that the abolition of man was becoming a philosophical concept. Today, one can no longer speak of ‘man.’ When Friedrich Nietzsche announced the death of God, in fact he was announcing the death of man. Eugenics is the negation of human rationality. If one considers man as the outcome of mere chance and as crude material for the laboratory, a malleable object to be manipulated, one reaches the point of being able to do anything to man. That ends with the destruction of the fundamental rationality that belongs to the human being. But man cannot be reorganized thus and still remain man.