23 junho 2008

O erro de Girard, ou: a profundidade do mal

A Bíblia diz que "não há um justo, um sequer" e que "o salário do pecado é a morte". Diz, também, que a convicção de que somos pecadores só pode vir da parte do Espírito Santo. Isso significa que o homem não-convertido sempre irá se achar melhor do que realmente é. Enquanto o cristão verdadeiro é sempre lembrado de seus pecados pelo Espírito, o não-convertido morrerá sem saber o quanto foi mau.

Embora seja um gênio no que se refere a encontrar e analisar pontes antropológicas entre o mal humano e a cultura evangélica, René Girard erra redondamente na teologia. É impressionante como a verdade bíblica se revela mais uma vez: sem a convicção de pecado impressa pelo Espírito, ainda que mergulhe no fenômeno do mal e revele seus mecanismos - o desejo mimético e o bode expiatório são fatos reais e perceptíveis universalmente - , nenhum autor entenderá o que Cristo veio fazer se não perceber o quanto foi necessário morrer para nos dar vida. Ou seja: nosso mal é tão profundo que apenas a morte do próprio Deus nos faria reviver.

Mas Girard não vê assim, e é por isso que posso indicar sua leitura, mas não como a de um autor cristão: ainda que reconheça a superioridade do cristianismo sobre as demais religiões, Girard pensa que o sentido dos Evangelhos e o próprio mérito de Cristo repousam sobre o desvelamento do mecanismo do bode expiatório - e que a conversão consiste no abandono desse mecanismo. Para Girard, Deus se opõe a todo mecanismo sacrificial (uma compreensão errônea de Isaías 1:11), inclusive o de Cristo. O acontecimento apenas serviu para evidenciar em plenitude a maldade humana, isto é, o mal que mata um inocente.

Por isso Girard costuma ser um autor preferido entre os teólogos liberais. Se o sacrifício de Cristo não foi algo necessário e deliberado, da parte de Deus, para nos livrar de nossos pecados, mas apenas a exposição máxima do mal humano para que nós mesmos pudéssemos nos despojar dele, isso significa que nosso mal não é tão grande: o processo de conversão se limitaria à transformação advinda da contemplação de nosso próprio mal, uma experiência interior, tal como o maravilhamento diante de uma obra de arte. Isso torna a conversão algo puramente humano: se compreendo meu mal, posso abandoná-lo. E, ao situar a questão do mal tão na superfície, tornando o "novo nascimento" algo mais mental e simbólico que espiritual, Girard erra o alvo (uma das definições da palavra grega para pecado, hamartia): nascer de novo passa a ser um fenômeno gnóstico, abstrato, ligado sobretudo à mente e às impressões, e não um verdadeiro novo nascimento, completo, definitivo. Esse é um entendimento que deixa de lado o aspecto fundamentalmente relacional e transcendente da conversão, que não ocorre em um sistema humano fechado, entre as paredes de uma subjetividade soberana, mas sim na entrega sem restrições de um corpo morto para que renasça em Cristo. Assim, reconheço o tamanho e a profundidade do meu mal na medida em que aceito que, para que eu reviva, um justo precisa morrer em meu lugar, e que, sim, esse justo é o próprio Deus em um sacrifício voluntário. Essa é a gigantesca dimensão do meu mal - e os cristãos verdadeiros não adoçam sua situação; não a negociam jamais.

09 junho 2008

Um sonho de conversão


Sonhei uma vez, há pouco mais de dez anos, que estava com minha família em uma autêntica “farofa” na praia, ou seja, um almoço em frente ao que me pareceu o mar plácido e convidativo de Araruama. Mesas postas, comida pronta, o único elemento destoante sob o sol era uma assustadora carcaça de ônibus levada de lá para cá pelas ondas, ameaçando invadir o local onde estávamos. O que de fato acabou acontecendo: tomado por uma onda mais forte, o ônibus ganhou impulso e esmagou um homem, que corremos para resgatar e levar ao hospital. Lembro-me de ter sido poupada por um triz do esmagamento, porque corri em direção a meu pai que estava em um lugar mais alto na areia. A cena seguinte e última do sonho era a do hospital, onde o homem era internado e nós íamos para casa.

Quando me converti, alguns meses depois, impressionei-me muito com o significado cristalino dos elementos do sonho: a carcaça de ônibus simbolizava os caminhos humanos errantes, que terminavam por nos esmagar, dos quais eu só havia escapado por ter corrido para Deus – “meu pai em um lugar mais alto”.

Impressionou-me mais ainda, porém, descobrir justamente na igreja em que me batizei um canto com semelhanças muito evidentes com o que, no meu sonho, havia sido o hospital. O conjunto não poderia ser mais auto-explicativo. Assim, embora não dê importância demais à grande maioria de meus sonhos, recebi esse em particular como um presente de Deus.