27 julho 2007

Delicadeza masculina

Harpo Marx tocando seu instrumento


Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...

Poema de Miguel Torga

25 julho 2007

Os cheiros da França

Cheguei à França no dia 11 de julho de 2007 para um estágio de quinze dias que incluía turismo puro, em Paris, e formação pedagógica, em Vichy. Éramos um grupo de quase cem professores de francês, vindos de três países: Brasil, África do Sul e México. Apesar de ensinar o idioma há mais de quinze anos, eu ainda não conhecia a pátria do idioma. O programa Profs en France, patrocinado pela Embaixada, foi inaugurado especialmente para esse fim: levar professores de francês à França, para que, por sua vez, eles pudessem mais eficazmente levar a França a seus alunos.

Sendo uma aficcionada por perfumes franceses, minha idéia fixa perfumística era experimentar o L'Heure Bleue e o Après L'Ondée, da Guerlain, perfumes do início do século com uma bela história para contar, pré e pós-guerra. Ainda queria dar uma boa olhada nos chamados perfumes de nicho, mais intimistas, de Serge Lutens. Era uma grande oportunidade, já que nenhum deles é vendido no Brasil. Em uma das inúmeras lojas Sephora de Paris, vibrei com um pequeno letreiro do lado de fora que dizia "800 m2 de diâmetro": um verdadeiro paraíso perfumístico de quase um quilômetro quadrado!

Percorrendo a loja, foi com um frêmito de alegria que me deparei com uma prateleira inteira só de Lutens, os papeizinhos embaixo e nenhuma vendedora pressurosa por perto, sentindo-me livre para experimentar à vontade. Preferi, no entanto, procurar primeiro pelo L'Heure Bleue. Afastei-me dele com horror na primeira borrifada, sem conseguir ultrapassar as fronteiras do tempo para apreciar suas qualidades - o oposto do que sinto com relação ao Chanel n.5, um de meus preferidos. Voltei aos Lutens, e o primeiro que espirrei no papel, Douce Amère, teve um efeito instantâneo de maravilhamento sobre mim. Bem colorido e vivo, uma flor delicada sobre uma base amarga mas nem tanto, o suficiente para equilibrar a doçura silvestre da flor. O segundo, Un Bois Vanille, pareceu-me baunilha pura, assim como Miel de Bois, mel puro. Saí de lá com Douce Amère em um braço e Un Bois Vanille no outro, cheirando-os de tempos em tempos, deixando-os misturarem-se com as ruas de Paris. Mesmo assim, não consegui decidir. E foi apenas alguns dias depois, já em Vichy, que consegui provar o Après L'Ondée e confirmar sua semelhança com o novíssimo Insolence, da mesma maison: o cheiro rosado de frutas vermelhas e violeta está presente em ambos, mas o Après L'Ondée é infinitamente melhor, mais natural e pluricromático. Não consegui me ver usando-o hoje, talvez em outra época mais adiante. Porém, em compensação, trouxe um saco de balas sabor violeta, que são como o Après L'Ondée em versão feita para o paladar. Gosto muito da idéia de doces de flores, e eles são muitos em Auvergne, região de Vichy.

Acabei trazendo na mala apenas um perfume, um antigo amor de adolescência, Tocade de Rochas, também só vendido na França. É um atalcado bem confortável, bom de usar até mesmo em casa, mas perigoso no calor do Rio de Janeiro. E foi na França que percebi algo de que tinha apenas ouvido em teoria: perfumes mudam segundo o local e o clima. Tinha levado para lá o Chance de Chanel, que no ar seco de Paris e de Vichy se tornou um aroma fresco de flores contido por uma madeira suave. No Rio, chegou a me enjoar por causa de um fundo que lembrava pipoca doce, mas na França usei-o quase todos os dias, com prazer.

Depois de muitos anos sem sair do Brasil, entendi que uma das experiências mais fortes a partir do contato com um país estrangeiro são os odores que sentimos nas ruas. O cheiro do metrô, do Sena, dos museus, das boulangeries e pâtisseries, das cercas vivas e dos canteiros de lavanda cuja visão me emocionou... Cada esquina era uma surpresa olfativa. Indissociáveis aos cheiros, os gostos não-cultivados no Brasil: o vinho rosé que acompanhava cada jantar leve servido pela nossa calorosa famille d'accueil, o pão mais consistente junto à variedade de queijos e geléias, o mil folhas de morangos e framboesa cuja doçura o creme discreto deixava generosamente sobressair... Agucei muito o olfato e o paladar na França, incorporando, além de idéias e impressões novas, também cheiros e sabores diferentes ao meu "dicionário de mortal", imagem que Charles Baudelaire aplica não só a viagens, mas principalmente à literatura, que compõe as viagens que fazemos sem sair de casa – para muitos, as melhores.

Em Vichy, bela cidade-calmaria de águas termais fundada por Napoleão III, o grupo se recuperou com alívio do estresse de Paris. Tivemos uma semana de formação intensiva no Cavilam, centro de formação lingüística que nos impressionou muito pela qualidade tanto dos cursos quanto dos contatos pessoais travados entre os professores (ou "formadores") e os alunos-professores que éramos. Para quem quer aprender francês na França, recomendo entusiasticamente o Cavilam. Além disso, Paris é boa para passear por alguns dias, enquanto Vichy é um encanto para se conhecer aos poucos e devagar, com suas construções antigas, suas praças e confeitarias chiques mas acessíveis. E, se você passear pela região de Auvergne, alegrará os olhos com aquelas visões magníficas que o brasileiro só conhece através de reproduções de quadros famosos: campos de trigo e plantações enormes de girassóis, como nos quadros de Van Gogh, além dos montes cheios de casinhas antigas rodeadas de pinheiros e, às vezes, pequenos caminhos que se ondeiam até se perder no horizonte. Impossível não se impressionar com a vivificação de tantas imagens do museu imaginário, expressão cunhada por André Malraux para a coleção de obras que trazemos dentro de nós.

Nossa formação pedagógica foi inaugurada com uma conferência do diretor do Cavilam, Michel Boiron, que começou distribuindo a todos os professores presentes as famosas pastilhas de Vichy. Com gosto de menta, e em versões de limão e anis, são feitas com as águas termais, conhecidas por suas propriedades digestivas. Pensamos todos: "Que simpático." Mas era muito mais que pura cortesia. Durante a conferência, além de nos fazer rir quase o tempo todo, Boiron pôs para tocar algumas músicas francesas e falou das flores de Vichy, mostrando-as na tela, explicando com isso tudo que a língua era muito mais que estruturas gramaticais e listas de vocabulário – era também sons, gostos, perfumes, paisagens. Foi de fato emocionante: ele nos falou do ensino do francês através do estímulo a nossos sentidos diante de fatos cheios de significado, ampliando as percepções sobre nosso trabalho, bem como suas possibilidades, para muito além dos limites das salas de aula. Ele não apenas falou sobre, mas mostrou, que língua é vida. E todo o resto da formação apenas confirmou isso. É algo que só poderia acontecer na França, onde tínhamos pela primeira vez todo o entorno mergulhado naquela língua e naquela cultura que até então conhecíamos apenas de longe. Como profissional do idioma, jamais esquecerei a vívida impressão dessa convergência.

04 julho 2007

Maternidade

Essa é uma análise do Segundo movimento da Sinfonia número 3, Lamentações, do compositor polonês Górecki. Não deixe de ouvir antes de ler: aqui. Basta rolar o cursor até a soprano Dawn Upshaw e clicar em "escuchar".


A peça se inicia com uma introdução instrumental leve e de curta duração, para logo dar ensejo a acordes bastante graves em ritmo lento, cuja cadência sugere o badalar de sinos fúnebres. Logo o canto da soprano se inicia bem grave também, acompanhando os acordes com poucas variações, como em uma linha horizontal. Em seguida, os acordes começam a realizar uma subida rápida (se comparada ao andamento), com a voz da soprano se destacando cada vez mais, descendo apenas em poucos e breves momentos – como quem pára para descansar em uma escada muito extensa, ou como quem recua em uma dança apenas para ganhar um impuso maior. Finalmente, a voz atinge o ápice – ou vários momentos de ápice, sempre recuando brevemente – , e é nesses momentos mais agudos que o acorde dominante passa a maior, em vez de menor. Para quem se entrega a uma escuta atenta, ainda que não compreenda o que se canta, é notável o ambiente de profunda tristeza e dor que a peça evoca. Pois são justamente esses momentos agudos, de acordes maiores, que configuram uma espécie de alívio em meio à lamentação: quando a dor parece chegar a um ponto insuportável, evocado pelos acordes ainda menores, a subida da voz e a mudança para acordes maiores parecem insuflar uma grande lufada de consolo em meio à dor. Em todo o movimento, a dor é grande, mas não é o fim. Há esperança.


Quando li o que inspirou as Lamentações, fiquei impressionada com as associações entre a música e o que se canta. Embora cada uma das três lamentações tenha uma letra já pronta vinda de lugares e épocas diferentes – a primeira é de um monastério do século XV, de uma coleção chamada “Canções de Lysagóra”; a segunda, uma inscrição encontrada em um dos porões da Gestapo em Zadopane, de uma jovem de 18 anos presa em setembro de 1944; e a terceira, uma canção folclórica em dialeto Opole – , há um tema comum entre as três: uma mãe perde o filho assassinado. Isso ocorre em uma situação de injustiça, como foi o caso de Jesus Cristo (primeiro movimento), da jovem aprisionada que escreve a sua mãe (segundo movimento) e de um filho morto por inimigos (terceiro movimento). No segundo movimento, analisado aqui, a letra é o texto da jovem encarcerada pela Gestapo à sua mãe, pedindo-lhe que não chore, seguido de uma oração a Maria (Gorécki era católico).

Encontramos assim na letra do canto dessa lamentação a mesma atmosfera de dor evocada pela música, mas uma dor que tem escapatória na certeza de um amparo celestial: consolo que, em meio à dor expressa pelas “linhas horizontais” das notas graves e dos acordes menores quase sem variação, surge nos pontos fortes da peça – os agudos e os acordes maiores que os acompanham.

C
reio que, ainda que se trate de uma peça com marcada conotação católica, o cristão protestante poderá apreciá-la pela profunda dor filial que ela evoca (a perda de um filho é talvez uma das dores mais lancinantes que existem), bem como pela conotação geral que infunde no ouvinte: a certeza de socorro do Alto como única solução possível para a dor irreparável da morte, intuitivamente percebida para quem não sabe polonês. Apenas isto já basta para que a peça seja uma obra de arte singular em meio à reiterada negação de qualquer instância transcendente, vício constitutivo de nossos tempos, fundo comum a quase toda produção artística atual.

Desde que a descobri, não posso ouvi-la sem cair em prantos convulsivos. Já bem pequena era muito sensível a questões da maternidade perdida: passava um sofrimento semelhante à audição de uma música cantada por Zizi Possi, “Pedaço de mim”, imaginando logicamente um filho pranteado. Para a análise da peça de Gorécki – que seria parte de minha tese de doutorado, mas acabou sendo descartada – , ouvi a composição três vezes, mas não houve “distanciamento crítico” algum: chorei da mesma maneira nas três. (Por isso, também, meu horror absoluto, e igualmente bem antigo, ao aborto.) Que Deus tenha recompensado a Gorécki por isto.


Em tempo: talvez eu nunca tenha filhos biológicos. Mas sei que Deus olha para esse impulso de amor maternal em mim e prepara filhos adotados – sejam bebês rejeitados, sejam discípulos, saberei apenas quando vierem. Não importa o que aconteça, Deus seja louvado!