22 agosto 2017

A maledicência não vale a pena (II)

A primeira vítima de character assassination da história foi o próprio Deus. Em Gênesis 2, Deus proibiu Adão e Eva de comerem da árvore do conhecimento do bem e do mal, dizendo-lhes que, se comessem, morreriam. A Serpente, ou o velho Diabo, “homicida desde o princípio” segundo Jesus (Jo 8.44), sabia que precisava cortar os laços entre Deus e o homem para provocar sua morte. Ele se aproxima de Eva e diz:

- É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal. (Gn 3.4-5)

Nas minhas palestras, sempre digo que, com muita sutileza, essas duas frases curtas conseguiram destruir totalmente a imagem do Criador no espírito do casal. Na fala do Diabo estavam implícitas as seguintes ideias:

  1. “É certo que não morrereis” - Deus não falou a verdade. Isso significa que Ele pode mentir. Ele não é todo verdade e perfeição. Quando Ele fala sobre o que vai acontecer, não devemos confiar.
  2. “Porque Deus sabe…” - O que motivou a proibição não foi explicitado por Deus. Ele agiu ocultando sua própria agenda. Logo, Ele é dissimulado. Não há integridade Nele. Quando Ele fala de si mesmo, não devemos confiar.
  3.  “…que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” - Deus quer permanecer o único que conhece o bem e o mal. Não quer competição, mas teme que o homem fique igual a Ele e, quem sabe, tome o lugar Dele. Assim, seus desejos para o homem não são todos bons nem confiáveis.
Em resumo, o Diabo imprimiu nos corações de Adão e Eva as seguintes distorções: Deus é mentiroso; Deus tem motivações ocultas; Deus teme a competição do homem, portanto, embora seja o Criador do homem, não é tão diferente nem tão distante assim de sua criação. Toda a pretensa autonomia do homem está fundada nessas mentiras.



Sabemos que Deus nos redime para sermos semelhantes a Cristo. Quando o primeiro casal trocou a Palavra de Deus pela palavra do Diabo, estabeleceu para si um outro modelo. Em vez de refletir primariamente o caráter de Deus - que não mente, mas é todo bondade e amor, todo onipotência e onisciência -, o homem passou a refletir todas as mentiras que o Diabo contou sobre Deus. Nós é que passamos a ser, a partir do pecado, mentirosos, dúbios, hipócritas, pouco confiáveis e temerosos da competição. Um retrato muito fiel do ser humano após o pecado está em Tiago 4, que também fala da maledicência (v. 11-12):
Irmãos, não faleis mal uns dos outros. Aquele que fala mal do irmão ou julga a seu irmão fala mal da lei e julga a lei; ora, se julgas a lei, não és observador da lei, mas juiz. Um só é Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer perecer; tu, porém, quem és, que julga o próximo?
Essas palavras são profundas. Quando as correlacionamos com Gênesis 3 e João 8.44, observamos o seguinte: sempre que alguém fala mal de outra pessoa - espalhando mentiras, denegrindo, zombando, ainda que com sutileza - , está invocando o exemplo não de Cristo, mas do Diabo. Quando lembrou os fariseus de que o Diabo era homicida desde o princípio, Jesus estava explicitando a intenção deles: seu objetivo, ao "fazer a vontade do Diabo", era destruir o amado de Deus. O objetivo de todo maledicente é o assassinato da reputação, que mata a imagem da pessoa no coração dos ouvintes. Exatamente como o Diabo fez no Éden em relação a Deus.

E quem é o Diabo? Aquele que ousou competir com Deus, desafiando diretamente sua autoridade e soberania. Por isso, Tiago oferece outro ângulo para examinarmos a maledicência: colocou-se no lugar de Deus quem se apresenta diante do outro como alguém que, além de saber tudo o que está acontecendo, desfere o golpe fatal: Fulano é assim, portanto, não é alguém digno. O maledicente se senta na cadeira do juiz e condena à morte simbólica.

Se a Bíblia fala tão repetida e veementemente sobre a maledicência, é porque se trata de um pecado muito grave. Espero ter mostrado um pouco disso aqui. Se Jesus é seu modelo, e não o Diabo, não condene pessoas à morte com a sua língua. Afinal, Deus não lhe deu palavras de morte, mas de vida.

O fim do Diabo é a destruição. Sua maledicência valeu a pena? Assim será também o fim dos que o imitam (1 Coríntios 6.9-10). Deus conhece nosso coração e sabe que a maledicência "agrada" nosso ego (Pv 18.8). Por isso, recomenda deixar o maledicente falando sozinho (1Co 5.11) para não começar a viver a atmosfera da maledicência como se fosse algo normal e aceitável diante de Deus.

06 agosto 2017

Sobre as diferenças periféricas

Ninguém peca por pensar o que pensa sobre questões periféricas - ou seja, que não dizem respeito ao principal da doutrina cristã - , mas peca ao se ver mais crente que o outro, seja por aferrar-se a regras inócuas, seja por se achar livre de farisaísmo. Nesses casos, ambos os lados estarão automaticamente errados ao se verem superiores ao outro (Fp 2.3).

Por isso, os crentes precisam tomar muito cuidado quando abordam questões periféricas que não são consenso na igreja, porque a maior e mais perigosa tentação sempre será romper a unidade. Nisso cabe o conselho de Paulo em Fp 3.15: o ideal é que pensemos igual, mas, quando isto não ocorrer e nenhuma exegese for suficiente para resolver a diferença, tenhamos calma, pois em seu devido tempo Deus esclarecerá.

Devo a explicitação desse aprendizado precioso a Davi Charles Gomes.

01 agosto 2017

Bodas de lã

Ontem eu e André comemoramos sete anos de casamento, e eu ganhei o melhor presente do mundo: um poema!

Bodas de lã - André Venâncio
Por sete anos Jacó se sujeitou
a um sogro mau, que na lua de mel
o enganou, lhe dando a filha errada,
segundo, após Moisés, cantou Camões.
Eu mais feliz que o patriarca sou,
pois teu Pai é melhor que o de Raquel
e deu-te a mim sem Lia acrescentada,
que já nos bastam nossas confusões.
Começo a servir outros sete anos;
depois de ti, tu mesma, novamente:
mesma mulher; contudo, já mudada,
mais firme, mais serena frente aos danos,
mais bela, mais alegre e diligente,
mais forte em Cristo, mais por mim amada.

Sinatra e Jobim

Há um excelente documentário na Netflix, All or Nothing at All, com duração de quatro horas, sobre a vida de Frank Sinatra. Achei irretocável, e direi por quê. É situado historicamente: expostos a muitas fotos e filmagens de época, vemos como Sinatra passou pela depressão americana, acompanhou as duas grandes guerras, lutou contra o racismo, apoiou a candidatura Kennedy e assustou-se com a nova geração hippie. É situado culturalmente, afinal, Sinatra continuou ativo, desde o jazz antigo de Tommy Dorsey, passando pelo advento do rock (e há um dueto seu impagável com Elvis Presley) até o pop de Michael Jackson, sobrevivendo impávido com pouquíssimas (e hilariantes) concessões. Não tem narrações desnecessárias de atores novos e famosinhos, nem takes infinitos de paisagens atuais, mas somente imagens de época, junto com gravações (ou simulações de gravação) das personalidades que viveram cada momento. E há música, muita música, tocada inteira ou em grandes pedaços, para o deleite de quem amava ouvir Sinatra. Esteticamente, não há nada acessório no filme, assim como não é tendencioso o conteúdo: Sinatra é retratado em suas qualidades e defeitos, brilhando em sua generosidade, sua dedicação aos amigos, sua personalidade sedutora e seu perfeccionismo, mas também não ficam de fora o temperamento explosivo, os casos extraconjugais e a ligação com a Máfia italiana. É primoroso, enfim, sem recair na vulgaridade das fofocas. Uma verdadeira homenagem ao artista e a sua música.

Quando penso no documentário que foi feito no Brasil sobre Tom Jobim, que indubitavelmente ocupou em nossa cena artística um papel tão central como o de Sinatra nos EUA, não me contenho de indignação. Tínhamos um especial que passava na Globo, com quase todos os problemas que o de Sinatra não tem - muitas imagens supérfluas e pouco material biográfico sobre Jobim, por exemplo -, mas que era redimido (e o quanto!) pelas músicas inteiras que ele tocava e cantava com Gal Costa, Marina, Chico Buarque e Edu Lobo. Esse filme foi posteriormente editado - eu diria, esquartejado - e os encontros emocionantes foram reduzidos a trechos sem importância, cosidos pela irritante e anacrônica narração de uma jovem atriz global.

Diante disso, eu pergunto: quando produzirão um documentário à altura do gênio que foi Tom Jobim? Já passou da hora. E seria maravilhoso se tomassem All or Nothing at All como inspiração - em que, aliás, Tom aparece, em seu famoso dueto com Sinatra em Garota de Ipanema.