29 dezembro 2010

História de minha conversão (II)

Familiarizado com meu blog, o leitor saberá, a essa altura, o quanto a música teve e tem um papel importante na minha vida. No processo de conversão não foi diferente. Antes de me tornar uma cristã evangélica, eu depositava minha confiança em uma divindade que oscilava entre o Deus cristão e o “deus interior” (ou força impessoal), um híbrido mal-ajambrado dominante no meio em que circulava (espírita e esotérico) — alguém a quem eu orava vez ou outra enquanto conservava a certeza de que eu mesma era meu próprio Deus.

Isso começou a ser quebrado através de uma música de David Bowie chamada Quicksand (“areia movediça”). O refrão era anunciado pelas palavras “Não tenho mais o poder”, para arrematar: “Não acredite em si mesmo”. A cada vez em que ouvia essa música belíssima (e um tanto depressiva), sentia um tiro no coração que espatifava o tal deus interior. Mostrei-a para minha melhor amiga na época que partilhava resolutamente de meus conceitos religiosos — e observei: “Mas não é um orgulho imenso esse negócio de acreditar em si mesmo?” Era o prenúncio de que em breve eu conheceria o verdadeiro Deus.

Pouco tempo depois, ainda sem ter ouvido a Palavra, deliciava-me com um cd de Dave Brubeck quando me peguei dirigindo a Deus um pedido singelo: assistir ao vivo uma banda de jazz. Foi um ato impensado, inusitado até para mim, que não costumava proferir orações tão espontâneas. Com 24 anos, eu já trabalhava, mas não tinha dinheiro para frequentar os caríssimos Mistura Fina da época. Amava jazz e queria muito assistir a um show. Deus me atendeu de um modo muito especial: depois do expediente, andando sem objetivo fixo pela principal avenida de Copacabana, fui “fisgada” por Ele com o som inequívoco de jazz tradicional — a formação de que eu mais gostava: bateria, teclado e baixo — para dentro de um... supermercado. Pasmem: havia uma banda tocando jazz ao vivo dentro de um supermercado.

Quando entrei no local e confirmei que de fato as músicas vinham de uma jazz band, não de um cd, e que eu podia ficar ali em pé à vontade, ouvindo, e ainda de graça, exultei. Porém, havia alguma coisa ainda mais especial acontecendo ali. De alguma forma, o ar estava diferente, como se anjos me circundassem. Eu não sabia explicar, mas senti a urgência de abordar as pessoas que estavam ali, em torno do palco improvisado, prestando atenção à música. Entabulei uma conversa muito tímida com uma menina um pouco mais nova que eu. Dali a pouco, chega um rapaz, amigo dela, apaixonado por jazz também, e sou apresentada a ele. Começamos a conversar e eu fiquei empolgada quando soube que ele era cristão. “Estou frequentando um grupo de estudos de Jung e ele valoriza muito os religiosos”, expliquei.

Era a pessoa que me evangelizaria. Eis como Deus me “pescou”: com jazz!

21 dezembro 2010

Dores da maternidade I

Logo no início da gravidez, detectei um sangramento. A médica acusou uma ameaça de aborto espontâneo, recomendando duas doses diárias de hormônio e repouso absoluto — ou seja, cama, cama, cama. Obediente, por mais desconfortável que me sentisse, eu não me sentava nem para comer. Recebemos visitas, os irmãos oraram, amigos e família ligavam preocupados. Foi difícil viver cada dia sabendo que podíamos perder o bebê, mas seguimos confiantes em Deus. O sangramento passou.

Agora, em repouso moderado, com 14 semanas e meia de gravidez, recebo mais uma notícia ruim, desta vez bem ruim: um “edema generalizado” em meu bebê, ou seja, uma hidropsia fetal, doença de altíssima mortalidade e às vezes nenhuma causa detectável. Na internet, encontrei grupos de apoio em que há algumas histórias com finais felizes — os bebês que sobrevivem são considerados “milagres”.

Depois do diagnóstico, fomos à médica obstetra e, descartadas outras causas (contaminação por vírus e conflitos entre meu Rh e o do bebê), sobram defeitos congênitos ou algum tipo de cardiopatia. Por enquanto, nada podemos fazer: o feto precisa ficar mais maduro, pelo menos 16 semanas, para ser examinado novamente. Até lá, o óbito é uma possibilidade nem um pouco remota. O impressionante é a raridade do fenômeno: hidropsia fetal por tais causas acomete um em seis mil bebês!

Diante de tais notícias, o que fazer? A médica comentou conosco que a maioria dos pais, escorados em uma aterradora impotência, costumam decidir incontinenti pela interrupção da gravidez. Sabendo que somos cristãos, no entanto, ela já intuía nossa negativa ao procedimento, e se viu tranquilizada ao confirmar nossa decisão final: aguardaríamos os fatos e confiaríamos em Deus. E nisso nós O glorificamos porque, praticamente “sem querer” — sem intenção deliberada —, demos a ela um poderoso testemunho, por causa do que Ele já realizou em nós.

Saindo do consultório, André e eu conversamos sobre o absurdo raciocínio que subjaz à decisão do aborto nesses casos: se o feto está doente, a solução é matá-lo de uma vez? Por que optar por medida tão drástica, se tudo pode acontecer inclusive a remissão espontânea dos sintomas, sem qualquer explicação? Imagino que, nesses momentos, ocorre algo bastante humano, pecaminosamente humano: se nos sentimos impotentes, melhor controlar alguma coisa, ainda que seja a morte. No final, para consternação e culpa gerais, muitas vezes se descobre que o aborto não era necessário, já que o bebê, ao ser retirado à força do ventre, surge saudável, contra todos os prognósticos. Mas somente o cristão, se de fato desistiu de tentar controlar o rumo dos acontecimentos e se entregou ao Criador e Sustentador de toda vida, pode chegar a tais conclusões.

E no meio da tormenta acontece aquela coisa inusitada que apenas os cristãos podem experimentar: eu e André percebemos com alegria que a fé que Deus nos deu e aprimorou ao longo dos anos nos impede resolutamente que hoje nos torturemos com a clássica e destrutiva pergunta: “Por que nós, Senhor?” Afinal, Jesus lança luzes sobre o sofrimento não respondendo à pergunta “por quê?”, mas sim “para quê”: “para que se manifestem [em quem sofre] as obras de Deus” (João 9.3). E, ainda que nosso bebê não seja curado, sabemos que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Romanos 8.28). Há propósito no sofrimento, e seu fim é sempre duplo: glorificar a Deus e nos abençoar. Como firmar-se nessa certeza? Não pela força de vontade: tal compreensão não é humana, mas sim um fruto exclusivo de Sua graça.

Que nesse final de ano, leitor, esse seja meu desejo de Natal a você: que contra todas as expectativas negativas, todas as estatísticas e todos os maus prognósticos, você possa colocar sua confiança inteiramente em Deus, dando toda a glória “Àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós” (Efésios 3.20). Amém!

09 dezembro 2010

Você tem que entrar para sair

Se alguém me pedisse para elaborar uma lista com as dez melhores músicas pop rock de todos os tempos, The Carpet Crawlers (do Genesis) seria uma delas. Lembro que a ouvia quando adolescente, bem antes de me converter. Era a versão com Phil Collins nos vocais (hoje acho a do Peter Gabriel mais bonita). Da letra eu entendia pouca coisa, mas cantava o refrão, que enuncia repetidamente: “We’ve got to get in to get out” (Temos que entrar para sair).

Nos meus 16 anos, esse bordão combinava-se muito bem com outro, “toda experiência é válida”, na boca de amigos que acabaram me instigando a fazer coisas de que me arrependi bastante depois. A música ficou como um emblema dessa fase; no entanto, apesar dessas lembranças, nunca consegui deixar de enxergar beleza nela.

E foi bom, porque hoje, com a letra diante dos olhos, percebo que “temos que entrar para sair” não é um convite do compositor para uma desejada abertura a todo tipo de experiência, como eu pensava na minha meninice. Longe disso: é a reprodução hipnótica de uma multidão rastejante que aceita um chamado para a idolatria.

A atmosfera é sufocante e bizarra. Pessoas se arrastam por um corredor vermelho-ocre em direção a uma pesada porta de madeira, atraídas por um ímã. No entanto, “acreditam ser livres”, comenta o observador. Voltados insistentemente para cima, os rostos são ávidos como plantas em busca do sol. Segue-se uma imagem de inversão: super-homens são despojados de seu vigor (“presos em criptonita”) enquanto mulheres virgens acham graça naquilo tudo. Pela porta aberta o observador nos conta o que vê: um banquete à luz de velas e uma escada que espirala para cima, até se perder de vista. A aparição da escada é outra imagem de inversão, remetendo a um vislumbre de falsa transcendência, de falso céu, já que é o homem que sobe a Deus. Para chegar até ali e arriscar-se na escada, é preciso contemplar a inversão, participar do banquete, beber daquele líquido que congela nos cântaros (será que congela a alma?). O bando repete sempre o refrão, como em uma hipnose coletiva, arrastando-se para aquele lugar, e seu ídolo adorado é tão invisível e fugaz como parecem ser os ídolos de nossa época.

O deus pode ser não-identificável, mas a ideia por trás dele é bem antiga. Em seu livro sobre o Apocalipse, Mais que vencedores, William Hendriksen explica que, nos tempos das cartas às igrejas, o cristão era chamado a participar de banquetes tão sinistros quanto o narrado por Peter Gabriel. Na verdade, era praticamente obrigado a participar caso não quisesse ser expulso do comércio e da vida social, pois em Tiatira (Ap 2. 18-29) os negócios “ se associavam com o culto de deidades patronais; cada negócio tinha seu deus guardião” (p. 103). Essas festas continham as famosas “comidas sacrificadas a ídolos” de que trata Paulo em suas epístolas e, pior, sempre terminavam em orgias. O crente de Tiatira que fugisse delas cometia um harakiri social, mas guardava sua santidade. É nesse contexto que surge Jezabel, a “profetisa” que arrumou uma justificativa afiada para que os cristãos não se preocupassem mais com isso. Conta Hendriksen (p. 103):

Ela aparentemente argumentava assim: para vencer Satanás, você precisa conhecê-lo. Você jamais será capaz de vencer o pecado, a menos que se torne experimentalmente familiarizado com ele. Resumindo, um cristão deveria aprender “as coisas profundas de Satanás”. Atendendo, de qualquer forma, às festas das associações e cometendo fornicação... e ainda permanecendo um cristão; tornando-se, até, um melhor cristão!

Em suma, a palavra-de-ordem de Jezabel aos cristãos era: Você tem que entrar para sair!

Adolescente, criada em um lar não-cristão, não tive quase nada que funcionasse como um freio para as situações terríveis que me puxaram como ímã, prometendo libertação e um arremedo de transcendência do outro lado. Mas dentro da igreja esse lema jezabelino pode ainda seduzir a muitos, que tentarão convencer a si mesmos de que não há problema em deixar-se vencer “estratégica e temporariamente” pelo pecado. Não devemos nos deixar enganar, porém: é impossível entrar para sair sem comprometer a alma, às vezes de modo irremediável.