31 maio 2010

Construtivismo e ensino de idiomas

Recentemente a revista Veja veiculou dois artigos bastante críticos sobre o construtivismo. Não posso opinar muito profundamente sobre o tema, pois a pedagogia não é exatamente minha “praia”, mas sei que hoje a ideia de conhecimento como uma “construção inacabada” está presente por toda parte. É claro que o conhecimento é um processo sempre em aberto. Porém, a maior crítica da Veja a versões radicais do construtivismo se refere à excessiva responsabilidade que costuma ser imputada aos alunos nesse processo – algo que é posto em prática de um modo pouco inteligente e pouco produtivo. E é sobre essa ideia, quando aplicada ao ensino de idiomas, que posso falar com propriedade.

Alguns de meus leitores sabem que sou professora de francês. Na Faculdade de Letras, felizmente, tive contato com professores que desacreditavam métodos baseados em construtivismo. Mesmo assim, sempre encontrei estudantes e professores que se orgulhavam de "nunca traduzir" em sala de aula, o que eu acho uma bobagem sem tamanho. Quem adota esse procedimento acredita que o aluno precisa sempre deduzir os significados das palavras a partir do contexto. O problema é que, na maioria das vezes, o contexto não é óbvio! Além disso, muitos professores evitam a língua materna em sala como a própria peste e preferem fazer mímica do sentido da palavras: por exemplo, imitam uma galinha em vez de responder “galinha” ao aluno do primeiro ano que pergunta o que é poule. Só que, em 100% das vezes, o professor faz papel de palhaço à toa, pois os alunos compreendem a imitação e escrevem no caderno: poule = galinha. De que adiantou evitar o português?

Da mesma forma, encontrei profissionais e donos de cursos de idiomas que insistiam em que nunca se deveria explicar gramática em sala de aula, como se, de novo, o correto fosse o aluno deduzir. Mas por que deixar essa dedução (gigantesca!) para o aluno? Afinal, a grande maioria dos alunos não tem a mente analítica típica de quem se interessa por regras gramaticais. Além disso, explicar a gramática é nossa tarefa como professores; a deles é treinar e interiorizar as regras, e isso já dá um trabalhão danado. Nesse ponto, sou muito categórica: a gramática precisa sempre ser explicada o mais didática e esquematicamente possível. Às vezes você dá uma aplicação primeiro, às vezes dá depois, mas a regra precisa ser explicitada. Eles agradecem e, na minha experiência, sempre manifestam preferência por um professor que explica tudo direitinho. Ainda mais no ensino de uma língua tão organizada e cheia de regras como o francês.

Outra bobagem bastante prejudicial (em todas as áreas do aprendizado, na verdade) é o desprezo que se devota ao ato de decorar. Quando gostamos muito de uma música, de um poema, de uma peça de teatro, acabamos decorando alguns trechos por puro prazer. O prazer no aprendizado de um novo idioma também se manifesta dessa maneira, quando decoramos regras para que nosso uso de seus aspectos linguísticos se torne imediato. Aos poucos, o que decoramos passa a fazer parte de nós, tão intimamente que não precisamos mais pensar para falar ou escrever. Saber de cor é saber com o coração (a expressão francesa manteve-se mais fiel à latina: apprendre par coeur). O que estamos dizendo aos nossos alunos quando pronunciamos diante da turma a feia palavra “decoreba” em um tom de escárnio? Que existe tal monstruosidade: amor sem dedicação. Estamos fazendo pouco caso não só da memória deles, mas também do amor verdadeiro ao estudo, que pede necessariamente tempo, paciência e labor. Não há aprendizado efetivo sem esse esforço.

Há um ponto comum entre todas essas práticas, tão difundidas ainda hoje: enxergar o adulto que aprende um novo idioma como uma criança que aprende seu idioma materno. Como se o aprendizado devesse ser feito somente de espontaneidades. O problema é que essa é uma idealização do aprendizado da primeira infância, em primeiro lugar. Em segundo, uma situação difere totalmente da outra. O adulto irá referir-se a seu idioma de origem, ou ao último idioma estrangeiro que aprendeu, quando entra em contato com um novo idioma. Invariavelmente. Por isso, sempre oriento minha aula a falantes do português, comparando as dificuldades do francês com as dificuldades de nossa língua materna e dando mais ênfase naquilo que é diferente, portanto, mais difícil para os alunos brasileiros. Isso dá um resultado excelente. Para que gastar tempo com aquilo que o aluno fará de modo intuitivo? Mas para o que difere muito do português é preciso gastar mais tempo, mais explicação, mais exercício. Porém, para variar, essa linda "teoria", aplicada à linguística, foi recebida com louvores por volta dos anos 60, como “libertária”, e muitos professores ainda a consideram e a aplicam como uma grande novidade. E o mesmo ocorre em muitas outras áreas: de certa forma, todos os novidadeiros modernos ainda vivem nos anos 60... Enquanto isso, o construtivismo só vem mostrando, na prática, que não dá muito certo, e que como filosofia pode ainda ser bastante danoso para nossos filhos. Sobre o aspecto mais propriamente filosófico do tema, indico esse ótimo artigo de Solano Portela. Sobre o construtivismo e a “neopedagogia”, também indico o artigo bastante esclarecedor de José Maria e Silva. E que Deus nos ajude a contestar com mais propriedade as burras unanimidades de nosso tempo.

10 maio 2010

A ideologia é má leitora

Uma definição condensada e bastante fiel de ideologia foi dada por Corinne Marion (Quem tem medo de Soljenitsin?, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1980, p. 66, nota 59) como “um saber absoluto que fornece, em princípio, a chave da história humana e permite conhecer, a cada momento, a atitude justa a seguir”. Trata-se assim de um núcleo de ideias pré-fixadas que engendram em seu detentor uma ilusão de onisciência, certamente não reconhecida, já que inconsciente. Isso se correlaciona com as excelentes explicações fornecidas por Jonas Madureira em seu blog (recomendo vivamente a leitura completa do post) para o termo ideologia, de acordo com Paul Ricoeur e Hannah Arendt:

Segundo Ricoeur, “toda ideologia é simplificadora e esquemática”. (…) nesse caso, Arendt concordaria com Ricoeur, uma vez que, para ambos, o pensamento ideológico tende a arrumar os fatos sob a forma de um processo absolutamente simples e esquemático; processo este que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente e tudo o mais sendo deduzido dela. Outra congruência reside no fato de que ambos os pensadores veem nas ideologias um código interpretativo que incita os seres humanos a tomar a imagem pelo real, o reflexo pelo original. (…) Em suma, para Arendt, todo pensamento ideológico vai contra a realidade na medida em que a lógica de uma ideia tem o mesmo status do real. (…) Uma vez que as ideologias possuem a pretensão de explicação total, ou seja, tudo é explicado a partir de uma ideia, elas inibem automaticamente o pensamento da experiência e da realidade.

Isso significa que a ideologia é uma péssima leitora, na medida em que, ao sobrepor-se à realidade, obstaculiza o conhecimento verdadeiro. Assim, fatos e argumentos são sempre lidos através das espessas lentes dessas ideias primordiais que contaminam todos os dados apresentados ao sujeito leitor. O que chamamos de “língua de pau” no esquerdismo, por exemplo, nada mais é que a apropriação da linguagem pela ideologia, quando as palavras perdem seu significado comum e passam a pertencer exclusivamente a esse núcleo pré-fixado, geralmente oculto na comunicação, impedindo que o esquerdista compreenda seu interlocutor quando este fala do lado de fora do âmbito da ideologia. (Experimente conversar sobre democracia com um admirador de Hugo Chávez. O termo precisará ser redefinido de antemão para que haja alguma esperança de diálogo e, mesmo assim, é pouco provável que ele compreenda você, embora você o compreenda.)

É precisamente isto que ocorreu com Joanildo Burity, autor de artigo de opinião no site da revista Ultimato, ao pronunciar-se contra meu texto Por que não sou de esquerda, publicado na edição passada. Este pequeno post apenas assinala o fato e antecipa a resposta que escreverei nos próximos dias.