13 novembro 2017

Entrevista com o dr. James Houston

Essa entrevista é muito preciosa, por isso, eu decidi trazê-la para cá. Em vários momentos, identifico as lições que aprendi com esse irmão tão querido, bem como as vozes de alguns de seus mestres (como Girard, no momento em que ele menciona a imitação). Devo demais ao Jim, como ele gosta de ser chamado.

Por telefone – fixo, é claro –, tenta-se marcar uma entrevista. A esperança é conseguir espaço na agenda de um ativo senhor de 93 anos, que não atende pelos títulos de pastor ou teólogo, mas que há décadas é uma das vozes mais relevantes no meio evangélico internacional. Jim (James) Houston atende, ouve o pedido e responde, docemente: “Você pode vir amanhã às oito? Podemos tomar o café da manhã juntos”. O acesso fácil ao concorrido acadêmico e pregador James Houston, fundador da renomada Regent College, em Vancouver (Canadá), e autor de diversos livros cristãos que influenciam gerações de crentes, não é sorte e nem milagre. Na verdade, refeições com alunos, professores e amigos de todo o mundo são uma marca do ministério do ainda professor e palestrante.

No dia seguinte, a reportagem chega às oito horas e sete minutos da manhã na porta do prédio onde Houston vive sozinho e completamente independente. O senhor de hábitos britânicos desce, abre a porta, oferece vaga na garagem e lembra ao entrevistador brasileiro que ele está atrasado, ao dizer: “Como você não chegava, não sabia mais se vinha”. Deixados os sete minutos de lado, da porta do apartamento já dava para ver uma mesa semi-arrumada. Houston pede uns minutos, oferece uma visita à varanda – com direito à brisa e uma bela vista de Vancouver – e dá início uma detalhada composição da mesa. Louças impecáveis, café e croissants frescos mostram que a hospitalidade é um hábito bem treinado ao longo de décadas.

A conversa começa diante de um homem cuja virtude, confirmada por quase todos que ficam diante dele, é dar aos seus interlocutores a certeza de que está sendo atentamente ouvido. Houston atendeu CRISTIANISMO HOJE com exclusividade menos de doze horas depois de assistir uma palestra sobre neuropsicologia e espiritualidade na Regent College. A agenda do ancião continua cheia: em agosto, Houston voa mais uma vez para falar no Brasil, mas antes tem compromissos em Hong Kong e no Japão. Nesta conversa de varanda, ele fala sobre espiritualidade, oração, relacionamentos – temas com os quais conviveu ao longo da vida ministerial e que fizeram dele um dos mestres mais requisitados e queridos da Palavra de Deus nas últimas décadas. 

CRISTIANISMO HOJE – O senhor já completou muitas tarefas e tem um papel importante na academia cristã. Por que um homem de 93 anos de idade continua buscando conhecimento até hoje?

JAMES HOUSTON – Bem, na verdade é muito mais do que perseguir conhecimento; é perseguir a verdade. Nós estamos sempre perguntando o que é a verdade e, como cristãos, nós queremos ser fiéis até o fim. Eu nasci exatamente quatro anos depois da rendição alemã na Primeira Guerra Mundial e tive todos os ecos daquele conflito na minha infância. Imagine ter experimentado todas as mudanças com a Grande Depressão [de 1929], a Segunda Guerra, a riqueza de ter vivido na Espanha quando criança, depois ter crescido na Escócia e viajado o mundo como geógrafo. Acho que o que acontece quando você tem todas essas ricas experiências, assim como os sofrimentos pelos quais passa, é que você quer continuar vivendo.

Muitos idosos estão lutando consigo mesmos, se perguntando “o que é para eu fazer agora?”. O senhor não enfrenta esse problema?

Eu acho que o que você percebe é que também tem que passar pela redenção das feridas emocionais de quando era uma criança. Algumas pessoas nunca as superam; é  por isso que elas parecem derrotadas no fim da vida. Temos que perceber isso e, realmente, celebrar a redenção do nosso passado emocional. Além disso, também me foi dado o dom de ver coisas além do tempo. No entanto, eu sempre me senti, por muito anos, um prisioneiro das minhas próprias circunstâncias. As pessoas não entendiam do que eu estava falando. Agora, 60 anos depois, são ideias reivindicadas, mas elas não eram muito populares quando eu as disse. Então, é uma alegria ter algumas ideias sobre tendências e cultura, que todos criticavam, obtendo a concordância de todo mundo e ver essas coisas que eu dizia fazerem parte do senso comum hoje. Sentir-me frustrado e aprisionado outrora e, agora, ser compreendido, me faz renovado, liberto da prisão, como Pedro, pronto para sair e gritar um pouco mais na praça pública.

O que o senhor aos idosos que estão apenas descansando enquanto aguardam pelo dia final de suas vidas?

Isso é trágico! É muito triste de ver esse desperdício. Uma das coisas loucas dessa cultura global é que nós nos esquecemos das etapas da vida. Então, em vez de pensarmos em juventude e velhice, sem nada no meio, deveríamos reconhecer que crescemos. Crescemos a partir da criança, do adolescente, do jovem, para o adulto médio, depois o maduro e assim por diante. Precisamos reconhecer que, em todas essas fases da vida, nos são dados novos desafios, novas oportunidades de continuar crescendo. É claro, portanto, que pessoas que ficam paralisadas desistem da vida.

Como seus últimos anos ao lado da sua esposa, Rita [Houston, falecida em outubro de 2014 após um período de perda progressiva das suas capacidades cognitivas], moldaram o seu pensamento atual sobre a vida?

Uma coisa importante de estar ao lado de uma boa esposa é que ela contradiz você. Os últimos anos foram muito duros e, ao mesmo tempo, uma benção. Um jovem casal estava vendendo o apartamento deles para nós porque estavam se divorciando. Eu estava muito triste porque estávamos nos beneficiando da compra, mas eles adoravam o lugar. Um dia, a moça veio para retirar as últimas coisas, dar um último adeus ao ex-marido e me disse: “Deve ser muito difícil para o senhor, com sua mulher perdendo a memória.” Eu respondi: “Não, não é. Esses são os nossos anos dourados”. Ela olhou-me chocada. Ela estava lá, jovem, lutando com todas as dificuldades de manter um casamento, e eu com a minha mulher sofrendo demência e dizendo que eram nossos melhores anos. Ela perguntou-me: “O que quer dizer com isso?” Respondi, então, que isso é amor incondicional e que eu me sentia privilegiado por ser a memória de minha mulher naquela fase. E essa era uma maravilhosa nova forma de expressão de afeição entre nós. Bem, ela foi embora naquela tarde e depois me disse que estava com coração ferido e orgulhosa demais para manter o casamento. O resultado daquela conversa é que. alguns meses depois. ela voltou para casa, eles se reconciliaram e continuam vivendo no mesmo lugar. E, mais tarde, eu pude dizer-lhes o que significava crer em Jesus e o que era um casamento cristão.

Sabemos que o senhor tem uma relação afetiva com o Brasil e muitos amigos no país. Pode nos falar brevemente sobre a importância deles no seu ministério?

O que acontece é que nós podemos ter relacionamentos comuns com as pessoas, relações que pensamos que não são nada. Mas, se você é fiel e leal a uma amizade cristã, o amor de Cristo une uma pessoa à outra. É como ter um bom casamento. Se eu tenho uma boa esposa, ela vai me dar aventuras maravilhosas – e, quando você ama Cristo, ele vai lhe dar aventuras que você nunca imaginaria. É fantástico perceber que, ao longo dos anos, esses relacionamentos que construímos tornam-se significantes. Quando você fala a verdade, ama Cristo e procura o Senhor, é como Paulo disse aos crentes de Éfeso: Deus é poderoso para fazer infinitamente mais do que você pensa. Eu não tinha nenhuma ideia de que, até o fim da minha vida, estaria ligado a esses relacionamentos tão profundos e eles a mim. Eu considero que tenho amigos muito fiéis no Brasil.

Suas áreas de estudo têm sido a mentalidade cristã, a oração, a Trindade e formação espiritual. Nas suas viagens ao Brasil, quais foram as necessidades espirituais que mais chamaram sua atenção na Igreja brasileira?

Quando eu estava na universidade, em Oxford, decidi ser um tipo específico de geógrafo, estudando o que se pode chamar de história das ideias. Isso me permitiu entender como as ideias e identidades surgiam em um determinado período da história ou dentre determinado grupo étnico. Mas minha paixão era buscar entender a identidade de um discípulo de Cristo em vários ambientes. Qual o caráter de Pedro no primeiro século? Qual o caráter de Bernardo de Claraval ou de João Calvino? Diante do calvinismo ou de um movimento de Espiritismo, por exemplo, precisamos dissecá-los para entendê-los. Da mesma forma, no Brasil precisamos dissecar o que é essa nova espiritualidade, descobrir porque a teologia da prosperidade é tão atraente às classes médias, entender o Evangelho numa cultura que se emancipou da escravidão tão tarde etc. Então, vocês precisam conhecer a história e a cultura. Precisam de uma história das ideias do Brasil; e, então, vamos entender melhor o que está no DNA do Brasil.

Isso significa que o país precisa de mais estudiosos e pesquisadores?

Bem, eu não os chamaria de estudiosos e pesquisadores. Eu simplesmente os chamaria de gente que pensa claramente, que não tenha pretensões de ter uma identidade profissional de “pensador”. Em vez disso, que sejam pessoas dispostas a usar suas mentes para estarem livremente sujeitas à mente de Cristo. Esse é um novo tipo de estudioso. Quando você tem um talento ou uma mente brilhante, você pode ser seduzido pelo academicismo do período. Porém, para crescer em Cristo, você tem que ser contracultural. Não pode ser dominado pelas ambições do estudo acadêmico.
Mas onde e como esses pensadores cristãos não profissionais vão ser preparados?
Eles são preparados pela vida, treinados nos relacionamentos com muitas pessoas. Mas, acima de tudo, são preparados pela oração. Se se dedicarem à oração diante de Deus, o Senhor dará a eles intuições. E eles irão seguir essas intuições.

Não seria uma preparação muito mística?

Algumas pessoas diriam que qualquer coisa a ver com Deus é mística [risos]. Mas, OK, é isso mesmo. Se você quer dizer que místico é tudo que tem a ver com esse amor por Deus, vamos todos ser místicos!

Em muitos dos seus livros, o senhor insiste na questão dos relacionamentos como uma forma de expressão da fé cristã. Por que os relacionamentos ainda são importantes no mundo de hoje?

Porque Deus é assim. O mistério do relacionamento do Pai com o Filho, e do Filho com o Pai, e de ambos com o Espírito Santo, me diz que Deus é essencialmente relacional. Tudo na ordem criada está em relacionamento com outro elemento. Seja no giro dos planetas, seja no ecossistema das plantas, nos habitats dos animais ou entre os próprios seres humanos, tudo no universo é baseado em relacionamentos.

Dessa forma, o individualismo...

É pecado! Porque o pecado é uma fratura nos relacionamentos.

E como as inovações tecnológicas são importantes para entender esse processo de isolamento do ser humano?

Toda técnica, como disse Jacques Ellul há alguns anos, é uma simples extensão do poder humano. Então, se um martelo é uma extensão da minha fúria, eu posso facilmente partir o crânio de um inimigo. Ou, por outro lado, posso usar o seu gravador aqui para gravar e preservar uma voz. Isso é uma bênção de tecnologia. Assim, o que a tecnologia pode simplesmente fazer é, em meio a um mundo caído, amplificar essas nossas ambiguidades. Você pode dizer que viver numa sociedade tecnológica é o melhor dos mundos e o pior dos mundos ao mesmo tempo, como Charles Dickens afirmou sobre viver em Londres durante a Revolução Industrial.

A ideia de “modernidade líquida”, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, é baseada no pensamento de que os relacionamentos estão cada vez mais superficiais e os valores, relativos. As certezas tornam-se incertezas rapidamente. Na sua opinião de observador cristão das últimas décadas, como isso tem afetado a Igreja?

A modernidade é líquida em vários níveis. É líquida porque não há mais um ambiente de aldeia: o que há é um ambiente global. A escala é diferente. Bauman está certo e a tecnologia amplificou essa liquidez. A forma como fazemos as coisas e a informação que podemos guardar têm criado uma nova velocidade; uma velocidade acelerada. Por outro lado, algumas coisas não mudam. Uma vez estava cortando uma árvore com uma serra elétrica, que soltou-se da minha mão e quase me decepou um dedo. Tive uma reação rápida que impediu que a ferramenta cortasse o osso. Eu, então, percebi que meu pensamento pôde ser rápido para causar uma reação mais rápida que a da serra, mas há limites. Não posso pensar mais rápido indefinidamente, nem reagir mais rápido sempre. Menos ainda, me adaptar a mudanças tão rapidamente ou conseguir me ajustar aos relacionamentos de maneira acelerada. Naquele dia, percebi que a velocidade de tornar-se semelhante a Cristo é a mais lenta de todas. A velocidade na qual podemos conhecer a Deus vai fazer essa tarefa nos tomar a vida inteira…

Como relacionar isso com a oração?

A melhor forma de perceber quão imaturos nós somos é notar como são nossas orações. Se eu só digo a Deus “me dá, me dá e me dá”, pareço uma criança muito pequena. Mas, a pessoa também pode ir para o parque diante de Deus, dizer “obrigado” e, ao voltar, outras pessoas, vendo sua expressão, queiram saber o que houve, ou o que fizera lá. E ela responde: “Nada! Nós só estamos apaixonados”. Uma vida de oração é a simples celebração da presença de Deus. Nós nem precisamos falar.

A Igreja tem ensinado isso?

Acho que não. Pois, alguém diz que tem um ministério, esse ministério tornou-se uma profissão. E a profissão é a identidade daquela pessoa. Lógico que ela vai dizer aos outros: “Você tem que estar sob esse meu ministério”.

E qual foi, na sua opinião, a grande mudança da Igreja nos últimos cem anos?

Nós, como o resto da cultura, estamos nos emancipando da modernidade, ou seja, do fato de termos que dar uma razão lógica para tudo que fazemos. A Igreja focou-se na busca das “doutrinas certas”. Isso não é um problema; precisamos ir atrás da verdade, onde quer que ela esteja. Porém, usando a metáfora dos lados do cérebro, tornamo-nos hipercognitivos, com ênfase no lado esquerdo. Só que, quando olhamos para as telas da fé cristã, elas são muito mais numerosas do que aquilo que apenas podemos captar com o uso da mente, como evangélicos racionais. Devemos estar preparados para abraçar todas as artes. Preparados para expressar todas as emoções no louvor a Deus e ao andar nos seus caminhos. Em outras palavras, a grande mudança é que os horizontes para a Igreja tornam-se muito mais amplos.

Isso nunca aconteceu antes na Igreja?

Não, nunca.

O que deveríamos fazer pra enxergar esses horizontes?

O que penso é que os cristãos deveriam se emancipar de suas denominações. Porque elas têm um passado histórico no sentido contrário, um compromisso de institucionalizar a fé. A ruptura com a institucionalização da fé é o novo grande empreendimento do Cristianismo. A igreja local deve ser mais importante, e as amizades locais, mais importantes ainda. Isso é o que os mais jovens já estão fazendo: procurando igrejas menores, nas casas, onde possam fazer isso. É lógico que há falácias e exageros nesse processo, especialmente exageros da geração anterior a essa, mas é um movimento saudável. Por último, há dois processos acontecendo. Nunca fomos tão personalistas e nem tão globalizados. E, quanto mais estou ciente de mim mesmo, mais eu posso estar sensível à multiplicidade de vozes e costumes étnicos pelo resto do mundo.

O senhor está pregando o fim das denominações?

Não exatamente. O que estou dizendo é que estamos vivendo uma profunda mudança cultural e haverá cada vez menos e menos entendimento do que elas são. Mas houve formas disso no passado. Richard Baxter, no século 17, estava tão cansado com as divisões durante a guerra civil, e com as questões sobre se ele era puritano ou anglicano, que disse: “Eu só quero ser como um cristão”. Ele já estava recusando as denominações.

No Brasil algumas denominações, especialmente as neopentecostais ou pós-pentecostais, cresceram bastante. Há quem diga que devemos deixá-las crescer e apenas no futuro avaliar se esse movimento provém de Deus ou não. Isso pode ser perigoso?

Eu acho que devemos dar uma olhada no evangelho de João. João está sempre falando da “multidão”. A multidão é instável. A multidão é superficial. A multidão significa imitar o outro. E a nossa fé não é para ser uma imitação. Sim, se imitamos Paulo, que imitava Cristo, é maravilhoso imitar alguém que teve a mente das massas transformada na mente de Cristo. Porém, suspeite sempre das multidões.

Esses pregadores da prosperidade e profetas da televisão irão durar?

Não, pois a fraude não dura. A fraude é sempre exposta.

O senhor conheceu gigantes do século passado, como C. S. Lewis, Henri Nouwen e J.R.R. Tolkien. Qual o legado deles para a Igreja de hoje?

Eles não foram importantes nos dias deles. Lewis não era uma voz importante em Oxford quando o conheci, há muitos anos. A voz dele, hoje, é um legado, mas não era uma realidade naqueles tempos. O mesmo com Henri Nouwen. E a razão porque as vozes deles foram ficando mais altas é porque tiveram coragem de permanecer contra a cultura deles. E nós hoje somos inspirados por eles a fazermos o mesmo. Qualquer um de vocês pode ser mais influente no Século 21 do que foi C.S. Lewis, simplesmente se for uma voz no Brasil. Mas, no seu tempo, provavelmente, vai ser um ninguém. Em sua cultura e tempo. um profeta não é ouvido. Esse é um privilégio de ser um velho. Você descobre que era um profeta 60 anos atrás e ninguém o ouvia [risos].

A Regent College surgiu décadas atrás com o propósito de preparar pessoas para serem relevantes nos seus contextos. Qual a relevância dessa escola, hoje?

Regent tem a simples convicção – e isso me convenceu a vir fundar a escola no passado – de que é um erro as pessoas tomarem toda a inteligência para a fé a partir do passado, não usando toda a inteligência que elas usam nos seus locais de trabalho, para a vida da igreja. Eu dizia: “Deixe sua inteligência ser tão consistente para a fé quanto ela o é para a vida, no mercado de trabalho”. Era uma simples voz, mas essa voz agora é compreendida. Mesmo assim, 60 anos é pouco. Por isso, a minha luta no início. A escola ainda é nova para nossa cultura. Regent está preparando pessoas para pensarem por si mesmas, para viverem a fé fora da igreja, mas contra a cultura.

Muitos pastores têm se mostrado decepcionados com o ministério exclusivo na igreja e buscado uma posição no mercado de trabalho. O senhor ainda acredita em ministério pastoral de tempo integral?

Sim, por que não? Há pessoas que estão dedicadas a fazer na vida da igreja aquilo que outros profissionais não poderão fazer. Somos seres humanos limitados e precisamos estreitar nossas opções. Acontece que alguns podem estar à procura de uma posição perante a sociedade: querem uma identidade profissional, procuram um diploma ou uma posição na academia. Por outro lado, fui convidado para falar no Japão e estava estudando sobre a competição e a pouca mobilidade profissional naquele país. Algumas pessoas sabem que, por 40 anos, não irão ser promovidos ou que suas posições são estáveis demais. Naquela cultura, os cristãos, às vezes seguem no sentido oposto ao que vocês talvez estejam seguindo no Brasil: “Se eu não vou ser promovido, se o mercado é competitivo demais, talvez então Deus esteja me chamando para o pastorado”. Em ambos os casos, pode ser só confusão.

E sobre a igreja na América do Norte, o senhor diria que hoje ela sofre pelo legado de líderes fundamentalistas de um passado não tão distante?

Eles, certamente, estão desaparecendo. E esse é um dos sinais de falta de verdade, pois a verdade é eterna. Eu penso que está provado que o fundamentalismo é um medo. Porém, “o perfeito amor lança fora todo o medo”, como diz a Escritura. Então, o medo está sempre errado. Por isso, é certo dizer que hoje não há muita diferença entre o ateísmo radical e o fundamentalismo radical – ambos são fundamentalismos. Lembre-se que a multidão está sempre errada.

Como equilibrar-se entre o fundamentalismo e o relativismo?

Bem, a verdade não é algo que se domina; é a verdade quem nos domina. Quando procuramos esse domínio, é uma procura sem fim. Só dominamos aquilo que compreendemos. Nessa busca, portanto, não há espaço para o mistério.

Em termos de esclarecimento e inspiração, a literatura sempre foi uma ferramenta importante para os cristãos. Como o senhor, autor de tantos e tão importantes livros, avalia a literatura cristã de hoje?

É claro que a literatura cristã é uma expressão da cultura e das mudanças culturais. Por isso, é importante para nós termos os clássicos como uma âncora. Eles se mantiveram, apesar das mudanças na cultura. A receita de C.S. Lewis era: “Para cada livro contemporâneo que leio, quero ler três clássicos”.

O que senhor quis dizer quando escreveu, em um de seus livros, que “o calcanhar de Aquiles de uma pessoa é o seu guia para um relacionamento com Deus”?

O calcanhar de Aquiles é onde vacilamos, onde estamos feridos e onde somos vulneráveis. Então, se eu não preciso de Deus, eu nunca vou conhecê-lo. Dessa forma, a situação onde eu vacilo é a situação onde preciso de Deus.

A forma como as pessoas, especialmente das classes médias e altas urbanas, têm vivido pelo mundo é construída para encontrar um jeito de não ter um calcanhar de Aquiles...

Não temos um calcanhar de Aquiles porque vivemos em competição. Qualquer um que cheirar a sangue, vai verter sangue. Na nossa fazenda animal, ninguém quer mostrar fragilidade e feridas. Ninguém quer expressar humildade num ambiente tão competitivo.

É melhor ser pobre e experimentar o sofrimento para conhecer a Deus ou é melhor ter uma vida disciplinada espiritualmente para conhecê-lo?

Penso que, para aqueles que vivem na pobreza, será certamente muito mais fácil clamar por Deus do que é para os ricos. Jesus diz que é muito difícil para o rico entrar no Reino dos céus. No entanto, você pode ter pessoas ricas e maravilhosamente devotadas a Deus, e que não usam suas riquezas para si mesmas. Havia uma riquíssima viúva em Roma que mantinha correspondência com Agostinho. Numa das, ela pediu a ele muito humildemente que a ensinasse o que pedir em oração. Não é maravilhoso ver uma pessoa rica e tão pura?

Na América Latina, a Teologia da Libertação advogou que, no encontro com o pobre, encontra-se Cristo.

Essa é uma meia-verdade, não é toda a verdade. Por isso, a Teologia da Libertação está morrendo hoje. Sim, nós precisamos libertar os cativos. Mas libertá-los de qual maneira? Socialmente? Espiritualmente? Eles estão propondo socialmente, mas não espiritualmente. Teólogos da libertação precisam ser libertados do seu próprio ego de serem teólogos da libertação [risos]. Há esperança. Há grande potencial de, em um ambiente de pobreza, anunciar o Evangelho para o pobre. Temos que libertar as pessoas da pobreza e anunciar-lhes o Evangelho, mas o último é mais importante. Do contrário, seremos inconsistentes.

Fonte: Revista Cristianismo Hoje
Reproduzida no Blog do Jadiel

31 outubro 2017

Contra a "cultura do mimimi"

Devemos rejeitar a moderna redenção através da linguagem? Certamente! Submeter-se às sensibilidades politicamente corretas é não só inócuo contra o mal humano, mas errado, pois um de seus objetivos inconfessados é apenas a elevação moral dos interlocutores envolvidos. Por outro lado, isso não significa desprezar os efeitos de nossas palavras ao ponto de provocar feridas desnecessárias. A oposição correta à "cultura do mimimi" não é a insensibilidade, mas o amor cristão bem ajustado a seu alvo e lugar, ao mesmo tempo em que não joga fora a firmeza das normatividades.

27 outubro 2017

Morrer e viver para Cristo

Uma das maiores belezas do cristianismo é a correspondência entre o senhorio absoluto de Cristo sobre a criação (conforme disse Abraham Kuyper, “não há um centímetro sobre o qual Jesus não proclame: é meu”) e  a adoração total que Deus requer de nós – “amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento” (Lucas 10.27). Ou seja, assim como Deus é íntegro e está profundamente comprometido conosco até, literalmente, a morte (Filipenses 2.8), ele quer que nossa resposta a ele também se aproxime cada vez mais dessa integridade. Essa integridade não é periférica, não é mero detalhe que agrada a Deus e pronto, mas é sobretudo onde residirá nossa saúde mental e emocional, em oposição ao pecado que fragmenta a vida e a identidade.

Continue a ler em Voltemos ao Evangelho!

09 outubro 2017

Show da vida

Quando eu assistia à tv, na companhia da família, já achava o Fantástico um programa deprimente. Fui criada desde pequena exposta ao "Show da Vida" em uma época maníaca por reportagens sensacionalistas (quem lembra da Revista Manchete, que pingava sangue?). A Globo nos mostrava sem pudor nenhum histórias de gente que conseguiu gravar vozes do além ("Hildaaaa...") e de um rosto humano que descobriram esculpido em Marte. Eram os fakes da época, desmentidos alguns episódios depois por jornalistas com a maior cara de concreto do mundo. Davam o maior ibope. E sempre eram noticiados com força e furor, acompanhados de músicas clássicas cheias de percussão histriônica. Não admira que eu tivesse um monte de pesadelos depois.
A conversão ao cristianismo me livrou da Globo nos domingos à noite - um dos muitos bônus de Deus na minha vida. Salvou meus domingos, que sempre haviam sido deprimentes. Por influência do André, não assisto à tv aberta há mais de uma década. Não faço cruzada contra a Globo, não compartilho mensagem de quem faz, não conheço os atores globais da última nem da penúltima (nem talvez da antepenúltima) geração, não ouço o que dizem nem acompanho o que fazem. Quando o cabeleireiro quer me dar uma referência global de corte de cabelo, fracassa miseravelmente, porque não sei do que ele está falando. Não é maravilhoso?
Em suma, penso que o formato de entretenimento televisionado - programação que você não decide entremeada de comerciais irritantes e chamadas mandando você fazer isso ou aquilo - já está extinto. E foi tarde. Ou seja, para mim, na era da internet e da Netflix, a Globo simplesmente não existe. A vida é tão melhor que vir direto do trabalho para a televisão. Quando André chega, podemos ficar cada um no seu canto, lendo ou vendo o que quisermos ver; podemos assistir juntos a um episódio de seriado (que escolhemos) enquanto jantamos; ou podemos passar o final do dia conversando sobre um milhão e meio de assuntos. Ou ainda, podemos fazer um pouco de tudo isso. É sempre bom; nunca é aquela coisa anestesiante, "estou muito cansado para qualquer coisa, então ligo o aparelho e morgo no sofá, engolindo o que passar", como era antigamente. Eu aderiria com prazer a uma campanha, não contra a Globo, mas no estilo Bia Bedran: "Criança, agora desliga a tv e vai brincar." E isso é tudo o que você vai ouvir de mim caso queira me perguntar o que eu acho de qualquer coisa relacionada à Rede Globo ou à bitoladora tv "aberta".

05 outubro 2017

Sobre a confrontação

- Se você está irado, não escreva em público contra ninguém. Se conhecer a pessoa, prefira escrever em privado, mas só depois que a ira passar.
- Mas e se eu estiver irado e não conseguir perceber isso?
- Desconfie de você mesmo em primeiro lugar. Ore. Peça para outras pessoas lerem seu texto antes de postar. Pergunte: "Está agressivo? Está direto demais? Pesado demais? Soa arrogante? Eu deveria antes fazer perguntas à pessoa, para entender melhor o que ela quis dizer?"
- Depende também da pessoa que queremos confrontar, né?
- Exato. Pense em dois modelos totalmente diferentes de confrontação: Jesus com os fariseus e Natã com Davi. No primeiro caso, gente dentro da religião que negava a religião, gente hipócrita, que estava arquitetando a morte de Jesus. Totalmente diferente do segundo caso: um crente verdadeiro que pecou. Ajuste o tom de acordo com cada situação. Principalmente se for alguém mais velho ou uma mulher (1Tm 5.1-2). A pessoa precisa sentir que nós a respeitamos mesmo quando não concordamos com o que ela disse ou fez. Como se fosse da família. Porque é. Se você critica um irmão com agressividade, está comunicando a ele que não o considera da família. Como se ele fosse um hipócrita fariseu. É grave.
- Puxa!...
- E olha que nem estou entrando no mérito da crítica. Se você é jovem e tem menos tempo de estrada com Deus, deveria triplicar todos os seus cuidados, porque muitas vezes o errado será você.
- Certo. Muitas vezes o silêncio será de ouro...
- E, se for sábio e esperar, poderá conversar tranquilamente com a pessoa de quem discorda, e ambos aprenderão muito, ainda que não mudem de opinião.

06 setembro 2017

É com o amor de Deus que nos vemos melhor

Para algumas pessoas, amar-se em um sentido pecaminoso às vezes significará uma série de atitudes que ninguém em sã consciência chamaria de amor próprio: encolher-se num canto, adiar tarefas, xingar-se secretamente, lamber feridas e sentir-se sempre o último da fila. Não é agradável, não é lisonjeiro, não é produtivo. Mas é mais um jeito que o pecado arrumou para nos manter longe de Deus: autodestruição com máscara de autopreservação. Nesses casos, a tendência é tão arraigada que o esforço precisa ser diário para não fugir da verdade que o próprio Deus nos comunicou: Ele nos ama; Ele perdoou nossas faltas; Ele nos olha através de Jesus e nos santifica dia a dia. Não está mais irado conosco, sem se impacienta por nossos recorrentes pecados, mas nos leva pela mão e com ternura contempla o estágio em que estamos, como um Pai. O olhar Dele é infinitamente melhor que o nosso, e nos dignifica ao mesmo tempo em que preserva nossa realidade como criaturas. Por isso, até para nos amar - ou seja, para pensar em nós mesmos devidamente (Rm 12.3) - precisamos do amor de Deus.

22 agosto 2017

A maledicência não vale a pena (II)

A primeira vítima de character assassination da história foi o próprio Deus. Em Gênesis 2, Deus proibiu Adão e Eva de comerem da árvore do conhecimento do bem e do mal, dizendo-lhes que, se comessem, morreriam. A Serpente, ou o velho Diabo, “homicida desde o princípio” segundo Jesus (Jo 8.44), sabia que precisava cortar os laços entre Deus e o homem para provocar sua morte. Ele se aproxima de Eva e diz:

- É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal. (Gn 3.4-5)

Nas minhas palestras, sempre digo que, com muita sutileza, essas duas frases curtas conseguiram destruir totalmente a imagem do Criador no espírito do casal. Na fala do Diabo estavam implícitas as seguintes ideias:

  1. “É certo que não morrereis” - Deus não falou a verdade. Isso significa que Ele pode mentir. Ele não é todo verdade e perfeição. Quando Ele fala sobre o que vai acontecer, não devemos confiar.
  2. “Porque Deus sabe…” - O que motivou a proibição não foi explicitado por Deus. Ele agiu ocultando sua própria agenda. Logo, Ele é dissimulado. Não há integridade Nele. Quando Ele fala de si mesmo, não devemos confiar.
  3.  “…que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” - Deus quer permanecer o único que conhece o bem e o mal. Não quer competição, mas teme que o homem fique igual a Ele e, quem sabe, tome o lugar Dele. Assim, seus desejos para o homem não são todos bons nem confiáveis.
Em resumo, o Diabo imprimiu nos corações de Adão e Eva as seguintes distorções: Deus é mentiroso; Deus tem motivações ocultas; Deus teme a competição do homem, portanto, embora seja o Criador do homem, não é tão diferente nem tão distante assim de sua criação. Toda a pretensa autonomia do homem está fundada nessas mentiras.



Sabemos que Deus nos redime para sermos semelhantes a Cristo. Quando o primeiro casal trocou a Palavra de Deus pela palavra do Diabo, estabeleceu para si um outro modelo. Em vez de refletir primariamente o caráter de Deus - que não mente, mas é todo bondade e amor, todo onipotência e onisciência -, o homem passou a refletir todas as mentiras que o Diabo contou sobre Deus. Nós é que passamos a ser, a partir do pecado, mentirosos, dúbios, hipócritas, pouco confiáveis e temerosos da competição. Um retrato muito fiel do ser humano após o pecado está em Tiago 4, que também fala da maledicência (v. 11-12):
Irmãos, não faleis mal uns dos outros. Aquele que fala mal do irmão ou julga a seu irmão fala mal da lei e julga a lei; ora, se julgas a lei, não és observador da lei, mas juiz. Um só é Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer perecer; tu, porém, quem és, que julga o próximo?
Essas palavras são profundas. Quando as correlacionamos com Gênesis 3 e João 8.44, observamos o seguinte: sempre que alguém fala mal de outra pessoa - espalhando mentiras, denegrindo, zombando, ainda que com sutileza - , está invocando o exemplo não de Cristo, mas do Diabo. Quando lembrou os fariseus de que o Diabo era homicida desde o princípio, Jesus estava explicitando a intenção deles: seu objetivo, ao "fazer a vontade do Diabo", era destruir o amado de Deus. O objetivo de todo maledicente é o assassinato da reputação, que mata a imagem da pessoa no coração dos ouvintes. Exatamente como o Diabo fez no Éden em relação a Deus.

E quem é o Diabo? Aquele que ousou competir com Deus, desafiando diretamente sua autoridade e soberania. Por isso, Tiago oferece outro ângulo para examinarmos a maledicência: colocou-se no lugar de Deus quem se apresenta diante do outro como alguém que, além de saber tudo o que está acontecendo, desfere o golpe fatal: Fulano é assim, portanto, não é alguém digno. O maledicente se senta na cadeira do juiz e condena à morte simbólica.

Se a Bíblia fala tão repetida e veementemente sobre a maledicência, é porque se trata de um pecado muito grave. Espero ter mostrado um pouco disso aqui. Se Jesus é seu modelo, e não o Diabo, não condene pessoas à morte com a sua língua. Afinal, Deus não lhe deu palavras de morte, mas de vida.

O fim do Diabo é a destruição. Sua maledicência valeu a pena? Assim será também o fim dos que o imitam (1 Coríntios 6.9-10). Deus conhece nosso coração e sabe que a maledicência "agrada" nosso ego (Pv 18.8). Por isso, recomenda deixar o maledicente falando sozinho (1Co 5.11) para não começar a viver a atmosfera da maledicência como se fosse algo normal e aceitável diante de Deus.

06 agosto 2017

Sobre as diferenças periféricas

Ninguém peca por pensar o que pensa sobre questões periféricas - ou seja, que não dizem respeito ao principal da doutrina cristã - , mas peca ao se ver mais crente que o outro, seja por aferrar-se a regras inócuas, seja por se achar livre de farisaísmo. Nesses casos, ambos os lados estarão automaticamente errados ao se verem superiores ao outro (Fp 2.3).

Por isso, os crentes precisam tomar muito cuidado quando abordam questões periféricas que não são consenso na igreja, porque a maior e mais perigosa tentação sempre será romper a unidade. Nisso cabe o conselho de Paulo em Fp 3.15: o ideal é que pensemos igual, mas, quando isto não ocorrer e nenhuma exegese for suficiente para resolver a diferença, tenhamos calma, pois em seu devido tempo Deus esclarecerá.

Devo a explicitação desse aprendizado precioso a Davi Charles Gomes.

01 agosto 2017

Bodas de lã

Ontem eu e André comemoramos sete anos de casamento, e eu ganhei o melhor presente do mundo: um poema!

Bodas de lã - André Venâncio
Por sete anos Jacó se sujeitou
a um sogro mau, que na lua de mel
o enganou, lhe dando a filha errada,
segundo, após Moisés, cantou Camões.
Eu mais feliz que o patriarca sou,
pois teu Pai é melhor que o de Raquel
e deu-te a mim sem Lia acrescentada,
que já nos bastam nossas confusões.
Começo a servir outros sete anos;
depois de ti, tu mesma, novamente:
mesma mulher; contudo, já mudada,
mais firme, mais serena frente aos danos,
mais bela, mais alegre e diligente,
mais forte em Cristo, mais por mim amada.

Sinatra e Jobim

Há um excelente documentário na Netflix, All or Nothing at All, com duração de quatro horas, sobre a vida de Frank Sinatra. Achei irretocável, e direi por quê. É situado historicamente: expostos a muitas fotos e filmagens de época, vemos como Sinatra passou pela depressão americana, acompanhou as duas grandes guerras, lutou contra o racismo, apoiou a candidatura Kennedy e assustou-se com a nova geração hippie. É situado culturalmente, afinal, Sinatra continuou ativo, desde o jazz antigo de Tommy Dorsey, passando pelo advento do rock (e há um dueto seu impagável com Elvis Presley) até o pop de Michael Jackson, sobrevivendo impávido com pouquíssimas (e hilariantes) concessões. Não tem narrações desnecessárias de atores novos e famosinhos, nem takes infinitos de paisagens atuais, mas somente imagens de época, junto com gravações (ou simulações de gravação) das personalidades que viveram cada momento. E há música, muita música, tocada inteira ou em grandes pedaços, para o deleite de quem amava ouvir Sinatra. Esteticamente, não há nada acessório no filme, assim como não é tendencioso o conteúdo: Sinatra é retratado em suas qualidades e defeitos, brilhando em sua generosidade, sua dedicação aos amigos, sua personalidade sedutora e seu perfeccionismo, mas também não ficam de fora o temperamento explosivo, os casos extraconjugais e a ligação com a Máfia italiana. É primoroso, enfim, sem recair na vulgaridade das fofocas. Uma verdadeira homenagem ao artista e a sua música.

Quando penso no documentário que foi feito no Brasil sobre Tom Jobim, que indubitavelmente ocupou em nossa cena artística um papel tão central como o de Sinatra nos EUA, não me contenho de indignação. Tínhamos um especial que passava na Globo, com quase todos os problemas que o de Sinatra não tem - muitas imagens supérfluas e pouco material biográfico sobre Jobim, por exemplo -, mas que era redimido (e o quanto!) pelas músicas inteiras que ele tocava e cantava com Gal Costa, Marina, Chico Buarque e Edu Lobo. Esse filme foi posteriormente editado - eu diria, esquartejado - e os encontros emocionantes foram reduzidos a trechos sem importância, cosidos pela irritante e anacrônica narração de uma jovem atriz global.

Diante disso, eu pergunto: quando produzirão um documentário à altura do gênio que foi Tom Jobim? Já passou da hora. E seria maravilhoso se tomassem All or Nothing at All como inspiração - em que, aliás, Tom aparece, em seu famoso dueto com Sinatra em Garota de Ipanema.

18 julho 2017

Conferência Fiel para Mulheres 2017

Por estar na reta final da redação de minha dissertação de mestrado em teologia para o Andrew Jumper, evitei ao máximo aceitar convites este ano para palestras fora de Natal. Mas a Conferência Fiel para Mulheres foi um desses impossíveis de recusar! Será em Águas de Lindoia, SP, nos dias 18 a 20 de agosto.

O tema da conferência não poderia ser melhor: "Jesus, nosso maior tesouro". De fato, Jesus é a resposta suprema que encerra todas as nossas idolatrias - tema de meu trabalho acadêmico e objeto de meus pensamentos há alguns anos. Em nossa época de autoempoderamento e construções de autoimagem tão estratosféricas que ocultam toda fragilidade feminina, falar de como somos ao mesmo tempo frágeis e fortes em Cristo será um privilégio e um prazer gigantescos.

Estarei lá junto a Gloria Furman e seu marido Dave, que são missionários em Dubai. Além das qualidades que demonstra como cristã, Gloria é uma escritora talentosa e divertida, que manteve um toque deliciosamente pessoal em seu texto. Estou lendo Vislumbres da graça e gostando bastante. Tomara que haja oportunidade para conversarmos! Também vou rever Heber Campos Jr., Sillas Campos e, espero, sua esposa Wanger, que sempre me alegra muito nessas ocasiões. Todos eles - Dave, Gloria, Heber e Sillas - serão palestrantes nessa conferência, além de mim.

Se você ainda não decidiu se vai ou não, não só espero ter lhe dado excelentes motivos para isso, mas trago aqui um estímulo a mais: um código de desconto para a sua inscrição. Aproveite!


28 junho 2017

Uma palavra sobre submissão feminina e igualdade

Um texto do Renato Vargens veiculado no Facebook, junto com outro do Pedro Pamplona compartilhado pelo Yago Martins - sobre os congressos femininos que sempre batem nas mesmas teclas - formam um quadro que quer nos dizer alguma coisa muito importante.

É crucial reintroduzirmos na igreja o ensino sobre submissão feminina (que não tem nada, nada a ver, com todo o sentido negativo que a palavra ganhou em nossos dias). Ao mesmo tempo, é crucial diferenciar muito bem a submissão bíblica da submissão que caracterizou determinadas épocas e que, por exemplo, gerou a imagem tão estereotipada (e detestada hoje) da mulher dos anos 1950 para trás, que deveria só cuidar do lar e não participar da vida pública de modo algum.

Nos tempos idos, como ideal, a mulher não votava, tinha pouca expressão intelectual e a vida pública lhe era vedada. Havia uma separação radical entre o mundo lá fora e a esfera familiar. A "rainha do lar" existia para comunicar beleza e ordem ao marido e aos filhos, e o resto era o resto. A feminilidade foi cortada de dimensões mais amplas e a masculinidade foi deturpada, confundida com uma força absoluta em comparação à fragilidade da mulher, também considerada absoluta.

Não é difícil entender por que esse ambiente tóxico, ao ser rejeitado, levou-nos a outro ambiente tóxico. Hoje, a mulher participa plenamente da vida pública, mas opondo-a radicalmente à esfera familiar - como se tivesse caído no conto daquela masculinidade deturpada e aceitado viver no outro extremo. Nunca a vida interior, a intimidade conjugal e a criação de filhos foram tão desprezadas como em nossos dias. Vivemos de exterioridade em exterioridade; só beleza física, carreira profissional e status social importam.

A Bíblia apresenta uma ideia muito mais bela e equilibrada da complementaridade dos sexos. A mulher não é o sexo frágil, e sim o MAIS frágil (1 Pe 3.7). Isso significa que a dimensão da fragilidade humana, universal, é expressada por ela de um modo mais íntimo e particular. Essa é uma missão muito necessária em um mundo que perdeu de vista a importância da humildade diante de Deus e da vulnerabilidade nos relacionamentos. Da mesma forma, a prioridade dada à família é para ambos, não só para a mulher - se assim não fosse, Paulo jamais teria dito a Timóteo que os candidatos a cargos na igreja deveriam antes ser bons cuidadores do lar (1 Tm 3.4). Quem inverte a prioridade, abandonando a família para cuidar da igreja, já está desclassificado. E, sempre que trata de liderança, em todos os níveis, a Bíblia deixa claro que somente Deus tem a prerrogativa da liderança absoluta: em Cristo todos nós somos iguais (Gl 3.28). A submissão feminina bíblica, portanto, é funcional e não absoluta, pois não nega essa igualdade: homens e mulheres são "co-herdeiros da mesma graça de vida" (1 Pe 3.7).

Só a cosmovisão bíblica nos faz escapar, ao mesmo tempo, da opressão machista e da deturpação do feminino - que no final são dois lados da mesmíssima moeda, uma moeda que muitas vezes não tem sido reconhecida como um instrumento duplo. Ao clamar contra o feminismo, faça-o de modo bíblico: não tire do homem a prioridade da família nem a vida pública das mãos da mulher. Na prática, isso significa que congressos femininos devem tratar de teologia e todos os assuntos correlatos - não só modéstia no vestir, submissão e criação de filhos. Significa igualmente que homens precisam se interessar tanto quanto as mulheres pela questão da feminilidade e da criação de filhos.

Complementaridade não significa separação nem oposição, mas cooperação em amor.

(Quando eu terminar o Jumper, escreverei mais sobre esse assunto, se Deus assim permitir.)

26 junho 2017

Decadência cultural

É interessante como a gente se acostuma com algumas formas culturais. A primeira vez em que vi Friends, na casa dos meus pais, achei os personagens tão apalermados quando abriam a boca que me espantei. Que diálogos eram aqueles, de gente que parecia lobotomizada? Décadas depois, ao assistir à série com o André, nos envolvemos com as tramas e lamentamos quando acabou. Do mesmo modo, "Sonífera Ilha", dos Titãs, soou amadora e grosseira quando ouvi, assim que lançada, mas hoje é uma sinfonia se comparada a Weslley Safadão e outros inferninhos musicais. Será que estamos nos rendendo à decadência da cultura e nem estamos percebendo? Em parte, creio que sim. Mesmo que vivamos em um bunker particular, somos modificados pelas ênfases do tempo, por essa simplificação excessiva, essa brutalidade formal, em suma, esse deslocamento do intelectual refinado para a crueza emocional. Nosso bunker (meu e do André) é recheado de música clássica, jazz, rock e MPB antiga, além de boa literatura e bons livros teóricos, mas não está imune aos seriados da Marvel (alguns são bons pra valer!) nem a livros mais bobinhos, daqueles que se leem de uma sentada numa viagem de avião (não consigo ler nada teórico em avião e fico dispersa demais para um Dostoievski com seus inúmeros personagens). E é para isso que servem textos como este abaixo - não para condenar a cultura popular, como espero ter ficado claro até aqui, mas sobretudo para nos lembrar de que é absolutamente impossível não participar da decadência cultural da nossa época em alguma medida. Somos seres culturais. Mesmo crentes em Cristo, somos seres culturais. Bem mais permeáveis do que imaginamos. E isso não é para lamentar (às vezes sim, mas não de modo absoluto), mas para, de modo sábio e consciente, buscar equilibrar o novo com o velho, o atual com a tradição, o fácil com o difícil, o superficial com o profundo, sempre submetendo tudo ao senhorio da Palavra que sai da boca de Deus.
Quanto aos nerds: amigos como Joey e Chandler podem ser preciosos, mas a vida fica mais agradável quando estamos cercados de gente que consegue nos ouvir até o final.
Ainda uma obs: no texto, os palavrões também indicam capitulação à época. Existe coisa mais atual, decadente e emocionalmente carregada que escrever, dar palestra, dar aula etc. com um monte de palavrão?

10 maio 2017

A maledicência não vale a pena

Eu tenho dois ou três excelentes amigos que são alvo costumeiro de campanhas de difamação, daquelas que, seja em público, seja em privado, nunca param. A Bíblia está recheada de advertências contra os assassinos de reputação, mas largar o vício pressupõe um autoexame que o viciado muitas vezes não está disposto a fazer. Ele precisaria compreender que age como se estivesse em uma gangorra, elevando sua autoimagem por meio do rebaixamento da imagem do outro. Ou seja, arrasta o outro na lama para sentir-se limpo. Mas, se o maledicente é cristão de verdade, um dia perceberá que não precisa lançar mão desse artifício. Cristo já o tornou limpo e já começou a restaurar sua imagem - e essa imagem é muito mais bela do que em seus melhores sonhos.