Hoje, dia da Reforma, é uma ótima ocasião para refletirmos sobre isso. :-)
Há não muito tempo - vou me furtar a fornecer detalhes porque meu objetivo é analisar o fenômeno, não apontar o dedo para pessoas - , um grupo de alunos evangélicos se revoltou porque o professor pediu um trabalho sobre a importância cultural de uma religião afrobrasileira. Com o apoio de seus pais, eles se negaram a escrever o tema, compondo em vez disso um texto sobre evangelização. Quando seus trabalhos foram logicamente recusados, responderam com um verdadeiro motim na escola.
Morro de vergonha ao ler sobre o episódio. O motivo é claro: tal atitude (e aqui me refiro mais aos pais que aos alunos) está tão recheada de pecados que é difícil começar a destrinchá-los. Em primeiro lugar, bem em consonância com nossa época, houve uma afronta direta à autoridade, quando deveria haver respeito e submissão; respeito e submissão só seriam possíveis caso houvesse a percepção de que o professor não estava pecando contra os alunos e contra Deus ao pedir-lhes tal trabalho; e o mais importante: faltou-lhes um terreno sólido para reagir biblicamente a tal ordem, somente possível caso eles compreendessem melhor o papel dos cristãos no mundo.
Vou devagar: diz Calvino, em consonância com a Bíblia (Atos 5.29), que só podemos desobedecer às autoridades caso elas nos ordenem desobedecer a Deus. O professor pediu aos alunos que pecassem? Não, obviamente. Toda religião pode ser analisada à luz de seu impacto cultural, e mesmo cosmovisões não-cristãs têm seus momentos de verdade. Ainda assim, caso os alunos discordassem por completo do aspecto positivo desse impacto, deveriam ter sido orientados a sutilmente questionar o enunciado do trabalho, sem descumpri-lo. Poderiam fazer citações, como, por exemplo, "nos livros de história nós lemos que as religiões afrobrasileiras beneficiaram a nação nos pontos 1, 2 e 3", e no final acrescentar uma "opinião pessoal" sobre o que citaram. Desse modo, não teriam mentido nem ferido suas consciências, e ainda comunicariam ao professor alguma verdade sobre a fé cristã.
Para isso, bastaria que enxergassem o aspecto louvável da iniciativa do professor, que consiste no seguinte: por décadas a fio, o pressuposto de todo o ensino institucional tem sido materialista e ateu; quando alguém propõe que se fale de determinada religião em sala de aula, está quebrando uma gigantesca barreira e indiretamente cavando espaço para que os estudantes também falem de suas crenças. Onde eles apontaram uma solicitação intolerável, havia uma abertura para a pregação do Evangelho - que infelizmente, por imaturidade, eles não perceberam.
A chave para a compreensão disso não é um argumento, mas sim uma postura interior, que poderia ser descrita assim: em vez de esperar que o mundo aja em conformidade com a Palavra de Deus e esbravejar quando isso não ocorre (passividade e ira), nós salgamos o mundo, sabendo que todos os que têm algum contato conosco na vida são alvos potenciais da graça de Deus (atuação e amor).
Todo o episódio ilustra bem o que venho testemunhando com preocupação crescente: a adesão, por pessoas cristãs, a um conservadorismo cujas atitudes emblemáticas não têm sido tão cristãs assim. Com grande frequência, o conservador - ou seja, aquele que acalenta os valores cristãos remanescentes na cultura, lamenta a galopante descristianização do Ocidente e deseja o atraso ou a interrupção desse processo - se comporta como gente mimada que vê as coisas mudarem para pior e só reclama, reclama, reclama. Entendo que um não-convertido se sinta assim: só o cristão verdadeiro pode assumir sua missão de "estar no mundo sem ser do mundo" (João 17.15), ou seja, comprometer-se com o bem ao mesmo tempo em que se guarda do mal (Tiago 1.27). Mas, enquanto o esquerdista inventa uma moralidade própria para sentir que age em nome do amor (e promove destruição), muitos conservadores se refugiam na memória de tempos mais morais e se entrincheiram ali, como se o máximo a fazer fosse alvejar a bagunça do mundo com cusparadas.
Que o leitor não se engane: eu sou conservadora. Mas aprendi na carne, com dores, que não posso reproduzir acriticamente um comportamento comum de meu meio. E um dos mais constantes é a ira pecaminosa (escrevi sobre isso aqui). Que tristeza: o conservador cristão que coloca seu conservadorismo no lugar das ênfases bíblicas vive irado. Por quê? Porque - grande novidade - o mundo jaz no maligno! Como se o mundo devesse naturalmente obedecer a Deus sem nossa intervenção como anunciadores de Cristo. Ora, quem não consegue aceitar a realidade do pecado se revela incapaz de se posicionar redentivamente. E acaba percebendo o incrédulo como um alvo primordial de ira (humana!), não de pregação. Trata-se de um desvio monstruoso na cosmovisão que o localiza mais perto do farisaísmo que de Cristo. Afinal, se o pecado alheio só suscita surpresa e indignação, em vez de compaixão, provavelmente a santidade é superficial e exteriorizada. Como a dos fariseus.
Na Parte II, vou analisar outros efeitos desse desvio abordando as reações a eventos mais perto de nós.