02 abril 2006

Eu, ex-agente semi-secreta da fé


As pessoas costumam dizer, brincando, que há muitos evangélicos que são como "agentes secretos": teoricamente concordantes com o ide de Jesus (exortação para que façamos discípulos por toda parte), esses cristãos não têm, no fundo, ânimo nem interesse especial algum em divulgar a própria fé. Adeptos inconscientes ou não do subjetivismo que reza ser toda fé "questão apenas pessoal", evitam até com certo zelo falar do que crêem na escola, na universidade, no trabalho, com medo de despertar antipatias ou preconceitos - e assim podem passar toda uma vida, mergulhados em uma espécie de mornidão cotidiana que se intercala sem conflitos entre os cultos de domingo, por mais "estimulantes" que esses cultos pareçam ser.

Não posso dizer que eu tenha sido uma agente secreta da fé, pois sempre falava de Cristo para alguém conhecido e invariavelmente mais chegado. Mas em algum nível eu me conformava a uma introspecção medrosa, sobretudo na universidade (onde jamais carregaria uma Bíblia na mão, por exemplo), e minha indignação diante de algum quase sempre presente anticristianismo em sala de aula raramente vinha à tona sob a forma de argumentos.

Essa situação interior provocava duas considerações antagônicas em mim: na primeira, eu me arrependia severamente por não manifestar meu cristianismo ali, e pedia a Deus com lágrimas que me transformasse; na segunda, eu me tranqüilizava com uma curiosa racionalização: para maior eficácia quanto ao ide, eu deveria ser algum tipo de agente semi-secreto, um ser híbrido e acima de tudo prudente, pronto a dar seu recado desde que fosse nas entrelinhas, nunca se opondo frontalmente aos conteúdos relativistas e imanentistas que costumam ser pano-de-fundo para a maior parte da produção acadêmica atual. Não que me agradasse esse ideal de "equilíbrio" e "tolerância": eu o via como quase impossível de ser alcançado, e me parecia especialmente desconfortável por causa do meu impulso irresistível para a autenticidade. E talvez, no fundo, esses pensamentos fossem apenas uma desculpa para que eu continuasse quieta: um rasteiro medo de rejeição, de ficar sozinha, de ser uma pária no meio intelectual.

Com esse doloroso impasse, não admira que eu tenha passado anos de faculdade praticamente muda com relação ao que acreditava, mesmo diante das maiores provocações. Mas sofria e continuava pedindo mudanças a Deus.

Ele me ouviu, e agiu sobretudo por meio de três autores. O primeiro, o filósofo
Olavo de Carvalho, possibilitou-me entender melhor o fenômeno anticristão moderno, ainda infundindo-me a primeira faísca de coragem ao aludir ao cristianismo em seus artigos de forma surpreendentemente desenvolta por entre altas conjeturas em filosofia. Em seguida, as preleções e o acompanhamento carinhoso de James M. Houston confirmaram em mim a possibilidade (e a urgência) de uma crítica da cultura a partir de uma perspectiva cristã: algo que eu já fazia interiormente, mas não punha à luz. Ele foi o primeiro autor evangélico em quem identifiquei a mesma vocação, as mesmas ênfases.

Para completar o processo, o pioneirismo de
René Girard mostrou com todas as letras que a essência do cristianismo podia ser base para toda uma teoria de relevância universal - sem que fosse necessário mascarar tal centralidade. Enfim, era possível que o mesmo rosto para o mundo contivesse harmoniosamente as duas faces: reflexão teórica e cristianismo. Era tudo de que eu precisava saber. Eu, que hesitava entre ser uma agente semi-secreta e uma intelectual cristã, sempre havia preferido infinitamente a segunda alternativa; mas só então, com a ajuda desses três valiosos modelos, poderia abraçá-la com alegria e alívio.

Agradeço a Deus por esses três autores, que foram instrumentos Dele para a progressiva cura do estado quase esquizofrênico em que eu me debati durante alguns anos.
Observação 1: Somos bem mais dependentes e influenciáveis que imaginamos, e desfazer o mito do individualismo romântico faz muito bem à alma. Sobre isso, o mesmo Girard discorre, com muita propriedade, em Mensonge romantique, vérité romanesque [Mentira romântica, verdade romanesca].

Observação 2: A imagem que ilustra este post, Secret Agent, foi tirada do belo site da artista Mary E. Berning.

12 comentários:

Tiago Ramos disse...

Cara Norma,

Fui sugestionado a ler o seu blog por uma amiga em comum, a Roxane, e o que aconteceu foi o que imagino que ela previra, gostei muito, quase que de imediato.

Com relação ao seu post, devo dizer que esse trabalho como agente secreto da cristandade também foi por muito tempo meu modus operandi. Hoje em dia sou bem descarado em relação ao que acredito, se não gostarem, azar. Não chamo as pessoas para se arrependerem das vidas dissolutas, mas sem dúvida alguma acho importante que nós, enquanto cristãos, façamos uso da nossa liberdade para professar a fé enquanto ainda a temos.

Os liberais e a esquerda acreditam que tudo nas relações humanas é permeado pela aparência e pela dissimulação, jamais irão entender, com esse raciocínio, a capacidade de se submeter a Deus, aceitar a Cristo e amar ao próximo e amar a verdade. Quem vê a mentira como pré-condição para a vida em sociedade não poderia compreender o sentimanto que liga a comunidade dos crentes em Cristo Jesus.

Mais uma vez, meus parabéns pelo blog. Fico contente em dizer que voltarei a passar por aqui.

Um abraço,

Tiago

Gustavo Nagel disse...

Oi, Norma.

Bom, eu agradeço as indicações dos três autores que te auxiliaram. É sempre útil saber as leituras que pessoas como você fazem.

É aquela história: os cristãos chegam nos centros acadêmico e acabam ficando envorganhados de ter a fé como fundamento do seu pensamento e reflexão por admitirem uma suposta inferioridade, suposta falta de objetividade histórica e científica.

Mas é importante que tomemos consciência que é possível formular uma vida, uma sociedade sobre bases cristãs. Aliás, não é só uma possibilidade, é a missão da igreja.

Beijão.

Luís afonso disse...

Muito legal este texto.
Eu sempre tive esta compulsão de defender o que acredito de forma mais estridente. Desde pequeno, lembro de acaloradas discussões com meus colegas de primeira série sobre evoluçãoXcriacionismo.
O meu problema é que nunca tive a certeza de qual das inúmeras vertentes da fé cristã era o verdadeiro "caminho estreito" que falava a Bíblia.
Então minha atuação como 'agente secreto' foi muito mais em tentar desmontar as intrigas relativistas e materialistas contra Deus do que apontar qual dos caminhos é o mais correto.
Não acredito que qualquer dos caminhos levem à Deus. Mesmo Jesus Cristo desautorizou quem cria que o adorava seguindo as regras dos "homens".
Então por aí eu deixo a questão em aberto.
Para terminar: Olavo foi uma grata surpresa. Muita coisa que eu acreditava mais por intuição tinha uma coincidência incrível com as visões Olavianas, ou seja, eram o signo de uma realidade cognoscível, a partir do estudo filosófico aplicado.

João Emiliano Martins Neto disse...

Prezada irmã Norma,

Mas que democracia essa de fachada que não permite que o debate se estabeleça? E logo em universidades, instituições que se dizem livres? De saída, irmã Norma, eles condenam o religioso ao isolamento com muralhas kantianas altíssimas dizendo que a fé é algo que está no campo da "espera" e não dos fatos e que ela se baseia e começa nos fatos - vide as curas milagrosas -. O pai da porcaria como Olavo de Carvalho chamou Immanuel Kant é o culpado por todo esse quadro calamitoso na política, na filosofia, nas ciências, na Igreja de Cristo e nas mentes das pessoas. Que bom que o Espírito Santo te ajudou e você não foi engolida pela maré montante do erro minha irmã.


Abraços do amigo,

JOÃO EMILIANO MARTINS NETO

Anônimo disse...

Oi, Norma,

Ao comentar o quarto mandamento, Martinho Lutero diz: “Três, portanto, são as espécies de pai apresentadas neste mandamento: os por genitura, os da casa e os da nação. Além destes há pais espirituais (...). Chamam-se pais espirituais apenas aqueles que nos governam e presidem mediante a Palavra de Deus. (...) Como, portanto, são pais, devida lhes é também a honra, até acima de todos os outros”. Martinho Lutero, “Catecismo Maior” em Obras Selecionadas. v. 7 (Porto Alegre: Concórdia & São Leopoldo: Sinodal, 2000), p. 360.

Muito bom seu post!

Abs,
Franklin

Lou H. Mello disse...

Pode ser que Jesus tivesse algo assim em mente quando disse aos discípulos: "Vós sois o sal da terra e a luz do mundo."

Juan de Paula disse...

Norminha,

assim como você sou grato a Richard Baxter, João Calvino, J. Gresham Machen e outros na área da teologia e da pastoral.

É muito interessante como somos abençoados com escritos e convivências com pessoas que são usadas para nos libertar de algumas raizes idolatras que residem em nossos corações.

Que Deus abençoe ricamente a sua peregrinação.

B-jokas,
Juan

P.S: Olavo e Houston são ótimos e Girard infelizmente ainda não li, :(

Volney Faustini disse...

Norma,

Terminei de reler Mentoria do Houston. O legal é que o cara veio pro Brasil dando oportunidade pra muita gente estar com ele de perto. Já temos umas boas heranças dele.

Lembro de vc ter mencionado Girard e depois o Ed René acabou falando sobre ele no Vida Acadêmica (postei sua fala lá no kerigma online). Vou começar a ler o cara.

Tá vendo? Temos muito mais em comum do que imaginamos!

Grande abraço e na expectativa (!)

Guilherme de Carvalho disse...

Oi Norma!

Concordo que o humanismo secular precisa ser confrontado. Mas vc não acha que confrontos, por exemplo, na sala de aula, dependem da situação? Se uma pessoa não está pronta para o debate, pode ser necessário esperar. Afinal, há "tempo de matar" e de "deixar viver"...

Nem que seja para "matar" no dia seguinte, depois de afiar bem a faca, hehehe!

Anônimo disse...

Olá Norma
Apenas para dizer que o Agente 86 passou por aqui e percebeu que este blog é que era o ovo da Páscoa deste sábado...
Besos
Yuri

Anônimo disse...

Ola Norma!!!
Creio que sempre podemos aprender com as nossas limitações, desde que, estejamos conscientes que o melhor Deus sempre quer e espera a nossa atitude em reagir.
Vejo que a sua experiência está despertando muitas vidas para um compromisso maior com Deus e sua obra. Estou orando para que em seus artigos Deus possa te usar cada vez mais.
Fp. 4:19

Cesar Chagas

Anônimo disse...

Norma, parabéns pelo post...

Saiba que eu também já tive medo de defender a fé em todo o ensino médio. Mês que vem eu entrarei para a universidade, e espero estar preparado para deixar de ser omisso e pronto para desmentir qualquer professor marxistóide que se meter a fazer doutrinação em sala de aula ou se julgar sábio o suficiente para questionar a nossa Fé. Abraços e parabéns mais uma vez!