09 setembro 2013

Teologia e liberdade

Meu amigo Sérgio Santos me fez uma pergunta em um de seus comentários. Aproveitei para transformá-la em postagem. Abaixo, a pergunta em itálico, seguida de minha resposta.

A leitura do mundo a partir de uma perspectiva marxista é uma forma de reducionismo, que fatalmente nos leva a uma distorção da realidade. É isso que promove o discurso esquerdista, que você tanto combate. Por que se substituirmos a perspectiva econômica pela teológica não recairíamos igualmente em uma forma de reducionismo? De que forma é possível compreender, então, que a cultura como algo indissociável da teologia pode ser libertadora?

De fato, você identificou uma possibilidade que, infelizmente, pode concretizar-se no pensamento de alguns cristãos que subjugam ou creem que devem subjugar a economia e/ou demais áreas do conhecimento à teologia. Esses cristãos estarão praticando o mesmo reducionismo com sinal trocado. Em seu livro Calvinismo, Abraham Kuyper esboça sua teoria da autonomia das esferas: a teologia e a cultura dialogam, pois ambas se reportam a Deus, assim como as demais esferas - família, igreja, Estado etc. Deus é o único que está acima de todas as esferas, o único que tem legitimidade para ser Senhor sobre todas elas (e na Bíblia há limites previstos para cada uma delas). Isso significa que, entre elas, há relação, mas jamais uma hierarquia abusiva. Por exemplo, o Estado deve coibir o mal e recompensar o bem, mas não pode exercer o papel professoral e moralizante que busca exercer hoje. Da mesma forma, a teologia precisa ser vista como uma organização humana dos saberes sobre Deus, que deverá reconhecer o tempo todo seus limites diante das demais disciplinas, recorrendo a elas quando necessário.

A existência de uma autoridade soberana, infinitamente boa e rica (ao ponto de ter criado tudo o que existe), sobre todos os seres humanos, é o que impedirá que algum dentre eles, ou qualquer outro aspecto da criação, exerça um papel autoritário sobre os demais. A autoridade absoluta de Deus é a única que liberta, pois, sendo Deus infinito e bom, legisla sobre aquilo que criou e faz com que as possibilidades de cada ser criado se expandam e se encaixem em um todo harmonioso. É justamente a ausência dessa autoridade que deixa os homens vulneráveis à tirania dos consensos de cada época e lugar - por isso todo governo ou sistema totalitário nega Deus ou reduz Deus a uma força manipulável pelo homem. Se o lugar da autoridade absoluta não estiver ocupado pelo Único que a merece, o espaço fica vago para absolutizações que sempre serão destrutivas. Colocar-se no lugar de Deus é precisamente o significado de idolatria. Assim, se aplicamos esse princípio à teologia, entenderemos que ela não pode ser confundida com o próprio Deus, para que não se torne idolátrica. Todas as esferas precisam reportar-se igual e diretamente a Deus, que é criador, legislador e mantenedor de todas elas. A meu entender, essa é a única forma de impedir a opressão do homem pelo homem e o autoritarismo dos sistemas de pensamento.

5 comentários:

Fernando Pasquini disse...

"A autoridade absoluta de Deus é a única que liberta, pois, sendo Deus infinito e bom, legisla sobre aquilo que criou e faz com que as possibilidades de cada ser criado se expandam e se encaixem em um todo harmonioso. É justamente a ausência dessa autoridade que deixa os homens vulneráveis à tirania dos consensos de cada época e lugar - por isso todo governo ou sistema totalitário nega Deus ou reduz Deus a uma força manipulável pelo homem."

Norma, estive faz poucas horas tentando articular essa ideia, mas para chegar ao consumismo e a cultura de massa produzidas pelo tecnicismo de nossa época. Muita coincidência! Isso significa que é uma questão bastante crítica. A ciência e a tecnologia prometem uma liberdade que deixa os homens vulneráveis a absolutizações (a tese de Lewis em "A Abolição do Homem"). O homem busca autonomia, mas para isso acaba tornando-se escravo de seus ídolos.

Tenho percebido que um princípio de solução é lidar com essas coisas não como forças que prometem autonomia, mas como coisas que ressaltam, desenvolvem e nos fazem andar na Lei de Deus; que é infinitamente boa e rica. Precisamos recuperar essa noção, não apenas na ciência e tecnologia, mas também na própria concepção de liderança e poder.

Paulo disse...

Norma,

Seu texto me fez lembrar de um belo poema/oração de C.S. Lewis - "The Apologist’s Evening Prayer"

From all my lame defeats and oh! much more
From all the victories that I seemed to score;
From cleverness shot forth on Thy behalf
At which, while angels weep, the audience laugh;
From all my proofs of Thy divinity,
Thou, who wouldst give no sign, deliver me.

Thoughts are but coins. Let me not trust, instead
of Thee, their thin-worn image of Thy head.
From all my thoughts,
even from my thoughts of Thee,
O thou fair Silence, fall, and set me free.
Lord of the narrow gate and the needle’s eye,
Take from me all my trumpery lest I die.

Norma disse...

Sim, Fernando. Em uma época como a nossa, cega a mais não poder para as idolatrias, nós precisamos alertar de modo contextualizado para a verdadeira liberdade que há em Cristo.

Bonito o poema, Paulo! :)

Aprendiz disse...

Norma

Eu sempre considerei que os católicos se saem muito melhor que nós nesse quesito, de levar a sua fé em consideração, mas não imaginar que tudo é teologia. A maioria dos evangélicos brasileiros não interage de forma sadia com as outras instâncias da vida. Entre os pentecostais (e sou um deles) é pior ainda.

Norma disse...

Olá, Aprendiz!

Sim, é difícil mesmo. Nós protestantes temos uma teologia historicamente separatista (estou para publicar um diálogo que fala sobre isso). Foi nos autores reformados calvinistas que eu pessoalmente achei bases firmes para romper esse separatismo - mas isso não impede o dualismo de muitos outros calvinistas, que inclusive costumam tender para o racionalismo. É dureza. Por outro lado, o católico incorre no erro oposto: a cultura engoliu a teologia e tudo virou uma maçaroca humanista.

Abraço!