Esses dias, na internet, vi uma citação de texto bíblico assim:
“Observe a formiga, (...) reflita nos caminhos dela e seja sábio! Ela não tem chefe, nem supervisor, nem governante” (Provérbios 6.6-7).
Como eu podia responder ao autor da postagem, assim o fiz:
Olá, X, tudo bom?
Desculpe, não pude deixar de comentar: você citou o texto bíblico pela metade. O correto é:
6 Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos e sê sábio.
7 Não tendo ela chefe, nem oficial, nem comandante,
8 no estio, prepara o seu pão, na sega, ajunta o seu mantimento.
Isso muda totalmente o sentido da sua postagem. No trecho completo, a formiga é louvada por trabalhar duro mesmo sem a pressão de uma autoridade sobre ela. Há muita gente que só trabalha sob pressão (é o caso do preguiçoso). O que está em questão, aqui, é a iniciativa da formiga no labor, não a autoridade em si. Na sua citação incompleta, parece que a Bíblia endossa a ausência de autoridade sobre nós, o que não é verdade, pois contradiria várias passagens que falam da importância da obediência, às autoridades não só espirituais, mas seculares também. Não só Romanos 13 (cuja leitura do anarquista Jacques Ellul carece, a meu ver, de fundamento), mas da ideia geral de autoridade, presente em toda a Escritura. De acordo com a Bíblia, a autoridade não é negativizada - pois isso colocaria em cheque a autoridade do próprio Deus, em primeiro lugar, e, em segundo a autoridade dos pastores, do governo etc. - , mas sim colocada em seu devido lugar. Enquanto a autoridade de Deus é absoluta (sendo o próprio Deus infinitamente superior aos seres humanos, chamado pela Palavra de Criador, Pai, Rei etc.), a dos homens é relativa e funcional, não ontológica. Não nos cabe ensinar a ausência de autoridade como um ideal, mas sim questionar suas práticas, quando são absolutizadas (com a vontade do líder equiparando-se à vontade de Deus, como ocorre nos regimes totalitários) e quando há abusos (com a quebra do princípio da liberdade de consciência).
O autor da postagem discordou polidamente, afirmando que conhecia meu blog e que de fato se sentia mais afinado com o pensamento de Jacques Ellul. Antes mesmo de ler sua resposta, eu já sabia dessa afinidade e conhecia o livro (tendo traduzido Anarquia e cristianismo para a Editora Garimpo). Essa obra de Ellul é interessantíssima: em alguns momentos, sua defesa da liberdade se assemelha muito à luta dos conservadores, quando sugere ações efetivas para a oposição aos abusos de poder. Gostei muito desse aspecto. Apreciei também sua crítica ao socialismo e ao santo pop Gandhi, que teria recorrido à não-violência somente “para instalar na Índia o poder opressor do Estado”. No entanto, é na teologia que a coisa “pega”: sua leitura da Biblia, principalmente de Romanos 13, é bastante controversa. De modo reiterado em todo o livro, chega a negar o senhorio divino, enfatizando demais o que concorda em chamar de “humanidade de Deus”. Apresenta ao leitor uma explicação confusa para suas posições, demonstrando uma apreensão fragmentária e seletiva da Bíblia com o objetivo de negativizar por completo toda noção de autoridade, terrena ou espiritual. Não preciso citá-lo, a obra fala por si.
Quanto a mim, creio que a Bíblia nos mostra que Deus é ao mesmo tempo, e em igual medida, Pai (que ama seus filhos e se relaciona intimamente com eles) e Criador (que pode dispor de suas criaturas como bem lhe aprouver, pois tudo lhe pertence). Como filhos, amamos o Pai, mas como criaturas tememos, pois conhecemos seu poder. Isso pode parecer um tanto esquizofrênico à primeira vista, mas é impossível dissociar o Pai do Criador, a não ser se negamos a soberania e o senhorio de Deus para nos sentir mais confortáveis ou para justificar alguma ideologia com a qual nos identificamos. Acredito ser este o caso de Ellul em relação à anarquia, assim como é o caso dos esquerdistas em relação ao socialismo ou ao comunismo. Porém, o único que pode nos confortar e nos fazer sentir seguros em relação ao Deus Todo-Poderoso é Jesus Cristo, que nos apresenta santos e imaculados perante o Pai. Nenhuma ideologia é capaz de fazer isso: vencer o pecado. Nem para romper as barreiras entre nós e Deus, nem para nos regenerar, pois a resposta para o poder abusivo (nosso e dos outros – aliás, por que será que o anarquista nunca pensa no próprio eventual abuso de poder?) está, novamente, em Cristo. Além disso, se o senhorio divino não existe, estamos entregues a nossa sorte – algo que, a exemplo do post anterior, invalida o plano da salvação.
Agora, enquanto escrevo, outro aspecto da citação mencionada acima me salta aos olhos: o termo “preguiçoso” é retirado. Por que será? Uso politicamente correto das palavras? Pode ser, mas não só: o destinatário do texto bíblico original, sob a forma de vocativo, é de fato o preguiçoso, para que, observando o exemplo das formigas (que trabalham mesmo sem chefe!), possa se arrepender e mudar. Sem o “ó preguiçoso”, a citação se transforma, aplicando-se a todos os leitores; mutilada, vira uma regra geral – no caso, uma regra geral anarquista. Isso é manipulação textual, espelho de mais um exemplo de leitura encampada pela ideologia.