28 setembro 2008

Como eu era: pequeno dossiê Conversão

Alguns anos antes de me converter, em 1992, um rapaz no ônibus pregou para mim a caminho da faculdade, provocando-me a uma ira intensa. (Posso compreender hoje a ira que algumas pessoas sentem quando prego para elas.) No mesmo dia fiz um relato raivoso das palavras trocadas com ele, que começava assim:

Há muito tempo eu já havia deixado para trás essa história da existência de Deus – se ele existe, ótimo, mas isso não muda em nada a minha vida. Pois eu estava desenvolvendo uma crença forte em mim, em meu deus interno, cansada de querer acreditar em algo ou alguém mais poderoso que eu capaz de me salvar e de fazer tudo por mim.

Esse parágrafo é revelador de como eu era, de como eu estava: sufocando uma sempre presente ânsia por Deus debaixo de uma penca de conteúdos espíritas e esotéricos, todos destinados a camuflar com um disfarçado humanismo uma insegurança infinita. Eu me queria forte a todo custo, um inadmitido falseamento de mim mesma, e a incoerência dos textos esotéricos que me chegavam às mãos se encarregava do falseamento de tudo o mais. Ao mesmo tempo em que tentavam solapar o desejo pelo transcendente ao persuadir o leitor de que o homem era sua própria divindade e deveria se satisfazer com isso, essas estranhas e ilógicas construções textuais eram imbuídas de conteúdos que atribuíam a tudo no mundo uma pessoalidade roubada do ser de Deus. Enquanto o mundo se afigurava mais que humano, doador de múltiplos sentidos, Deus não passava de uma força perfeitamente moldável pelo homem. Uma árvore era mais pessoal que Deus e podia ser fonte de vida e transformação, como qualquer outro ser. O mundo esotérico é cheio de uma adoração difusa a todo e qualquer objeto, concomitante à negação da pessoalidade e do poder de Deus. Poderoso fator de inversão, o esoterismo faz transbordar nossa subjetividade, sobrepondo-a ao real – um perigosíssimo alheamento que eu não podia perceber na época, mas que me custara experiências muito penosas.

Quando me converti, lia a Bíblia com bastante dificuldade, pois ainda estava me desintoxicando da indistinção mental esotérica, responsável por atribuir sentidos até contraditórios ao mesmo texto. Quase decorei o trecho de Hebreus que desfaz a crença na reencarnação, porque precisava ter certeza de seu significado. Lia os evangelhos e as passagens jogavam minha mente para várias direções, deixando-me louca, fazendo com que eu orasse de modo bem dolorido para que Deus firmasse minha mente na interpretação correta.

E tudo retornou aos poucos a seu lugar. Minha visão tomava foco: nada mais pedia para ser adorado, mas tudo no mundo apontava para o criador. E eu "ganhei" um Pai amoroso, que me presenteava com o fardo leve da fé: não precisava mais ser forte, bastava ser fraca Nele. Compreendendo a cegueira anterior, eu era como uma criança novamente, agradecida por receber partes de um verdadeiro conhecimento – do mundo, de mim, de Deus. Lembro que ouvia uma música de John Lennon, Oh my love, e partilhava dos mesmos sentimentos expressos ali. Bastava trocar my love por "My Lord", e a letra descrevia com exatidão o maravilhamento que eu experimentava ao enxergar pela primeira vez.

Oh my Lord for the first time in my life,
My eyes are wide open

Oh my Lord for the first time in my life,

My eyes can see

I see the wind, I see the trees,

Everything is clear in my heart,

I see the clouds, I see the sky,
Everything is clear in our world,
Oh my Lord for the first time in my life,
My mind is wide open,
Oh my Lord for the first time in my life,
My mind can feel
I feel the sorrow, I feel dreams,
Everything is clear in my heart
I feel life, I feel love
Everything is clear in our world

11 setembro 2008

Diálogos (medicamente) irrelevantes VI

- E aí, já foi participar da campanha do Temporão? Foi tomar a vacina da rubéola?

- Não. Eu não vou me vacinar.

- Como assim, “eu não vou me vacinar”? Tá maluco?

- Ué, eu tive rubéola quando era criança.

- Mas você não viu o aviso do governo? Homens e mulheres de 20 a 39 anos devem tomar a vacina mesmo já tendo contraído a doença.

- E qual o sentido lógico de tomar uma vacina se todos os médicos dizem que, tendo tido a doença, estou imunizado para sempre?

- O site da campanha explica que os sintomas da rubéola podem ser confundidos com os da gripe...

- Aquele site da campanha é horrível, os textos são superficiais e cheio de erros de português. Você confiaria num profissional que nem sabe falar direito?

- Mas...

- Além disso, eu tive rubéola, e não gripe. Lembro muito bem. Eu tinha uns sete anos. Não conseguia dormir porque meu corpo estava quente demais. De repente começou uma coceira horrível nas mãos e nos pés. Quando olhei, estavam vermelhos. No hospital falaram que era rubéola.

- Mas, e se erraram no diagnóstico?

-Se erraram, qual a garantia de que uma vacina do governo vai consertar o erro? Você confia tanto assim no governo? Prefiro confiar nos médicos que me atenderam quando eu era criança.

- Cara, não custa nada...

- Ah, custa sim. Você já se vacinou?

- Ainda não.

- Na internet tem gente reclamando de efeitos colaterais, alergias. Tem gente de cama por causa da vacina.

- Não vi.

- Também tem gente que não teve nada. Mesmo assim, para que tomar uma vacina se os efeitos da vacina podem ser piores que os da própria rubéola?

- Ah, você acredita nessas histórias de internet?

- E você acredita no governo?

[Pausa]

- Se você acredita em tudo que sai na internet, você também deve ter visto aquela história ridícula de que a vacina pode causar infertilidade...

- Não há nada provado. Mas não desconsidero.

- Caramba. Você está mesmo sendo irracional.

- Irracional? Vamos lá. Número um: eu já tive rubéola. O governo diz que eu tenho que me vacinar e não me explica por quê. Bom, se eu estivesse sendo irracional é que eu iria me vacinar. Justamente por ser racional é que não vou. Ninguém me convenceu de que eu preciso dessa vacina. E olha que pesquisei.

- Certo. Número dois?

- Número dois: a vacina está causando efeitos colaterais. A vacina é do governo. Se os serviços do governo fossem bons, ninguém reclamava tanto.

- Tá bom. Tem um número três?

- Tem.

- [Suspirando] Qual é?

- O ministro Temporão.

- Que é que tem?

- Ele defende o aborto declarando que é uma questão de saúde pública. Pois bem: quem confunde feto com doença não sabe o que é doença. Não acha?

- ...

- Foi o que pensei.

03 setembro 2008

Discussões lingüísticas

Gustavo Nagel veio hoje todo faceiro me indicar um post do novo blog de... Caetano Veloso! Pois é, o post trata justamente do assunto da recente discussão que tive com Raquel Nery sobre algumas implicações da lingüística moderna (ou nem tão moderna, já que essas idéias têm pelo menos quarenta anos). O fato é que o post é bom demais e eu não resisti: comentei. Minha felicidade é que, com esse comentário, consegui algo que não tinha conseguido até então com Raquel: resumi praticamente tudo o que penso sobre o assunto. Sintam-se à vontade para continuar debatendo aqui! Abaixo, o comentário, com o link para o post do blog de Caetano.
Olá, Caetano,

Que coincidência receber agora a notícia deste post: estava justamente conversando sobre isso em público, via blogs, com uma professora de lingüística (sou professora de francês e literatura). Em resposta a meus lamentos sobre algumas mudanças no português brasileiro que atentam contra a ossatura do idioma (ou seja, a sintaxe - como "é o carro que você precisa"), ela me acusava de elitismo. Ora, cito você -

"as pessoas que dizem “grobo” são as mesmas que têm vocabulário menor, menos acesso aos conhecimentos, menos poder"

- para afirmar que, se há no estudo do idioma a função descritiva e a normativa, não entendo por que os profissionais de Letras envolvidos na primeira função (os lingüistas) insistem em menosprezar a segunda, negando a necessidade de padrões para os idiomas e transformando a norma culta numa espécie de instrumento de opressão próprio das "classes dominantes" - um marxismo barato transposto para estudos lingüísticos. Além do mais, embora sejam duas funções igualmente importantes, há uma diferença significativa entre elas: a primeira é eminentemente acadêmica (descreve-se para compreender melhor o idioma e produzir teoria), enquanto a segunda gera resultados fora das portas da universidade, na medida em que, através do ensino para um maior domínio da modalidade culta, há um real aumento não só de possibilidades de ascensão social, mas de desenvolvimento pessoal. Quem domina o padrão culto não só angaria mais oportunidades profissionais, mas lê melhor, escreve melhor e, acredito, até pensa melhor. Assim, o resumo de meu argumento é: enquanto os lingüistas pretendem criar para essas pessoas de "menos poder" uma ilha de falso consolo, são os professores de português (os Pasquale da vida) que de fato lhes estendem a mão e as puxam para cima.

Que os lingüistas continuem portanto naquilo que é de sua especialidade - descrever o uso do idioma - enquanto os professores de português fazem o que é de sua competência: ensinar a variante culta da língua. Descrever e normatizar são duas funções diversas, mas ambas possuem relevância. Não é preciso que uma diminua para que a outra cresça.

Seu blog e esse post foram uma agradável surpresa. Parabéns!

Abraços,

Norma

P.S. Manuel Bandeira confessou achar bonitinho quando os cariocas dizem "para mim fazer". Particularmente não gosto, mas tenho especial simpatia pelo fenômeno que você citou na linguagem oral de Minas Gerais: a ausência dos pronomes em determinados verbos ("Ele assustou!"). Ora, podemos de fato apreciar alguns desvios da norma culta (orais ou escritos) sem, com isso, adotar esse discurso populista de nivelamento. Aliás, saber apreciar desvios é uma das condições para a fruição da literatura. Senão, professores de português jamais leriam ou recomendariam Guimarães Rosa! ;-)

02 setembro 2008

Por que eu ainda gosto de Girard

Essa entrevista (em inglês) está sensacional. Trechos:

We are losing every contact between language and the regions of being. Today we believe only in language. We love fairy tales more than in any other era. But Christianity is a linguistic truth, the logos.

I filled my head with the farcical, with the stupid, simple mediocrity of the avant-garde. I know well how the postmodern denial of reality can lead to the discrediting of the moral questions about man. The avant-garde, at one time relegated to the artistic field, today extends to the scientific, which thinks about the origin of man. In a certain sense, science has become the new mythology: man has created life.

The Christian religion, the greatest revolution in human history, is the only one to remind us of the correct use of reason. It is a challenge that carries with it the concept of guilt. For a long time, Europe had decided that the Germans had to be the scapegoats for World War II; it was impossible to attack communism or nazism. Once the death of God was declared, along with the end of the possibility for the word ‘enlightenment’ to have any religious meaning, there had to arise an ‘anti-God,’ a counter-divinity: communism. I agree with Ernst Nolte’s thesis on the affinity between Nazism and communism. Every totalitarian regime begins with the suppression of religious liberty. Today, this anti-life counter-divinity is revived in scientism.

From here, there is born a culture shipwrecked in the present. From here, there originates even a hatred for a vibrant culture that affirms universal truth. Today, it is widely believed that sexuality is the solution to everything; instead, it is the origin of the problem. We are continually being seduced by a suggestive ideology of allurement. Yet deconstruction does not contemplate the sexuality at the core of human folly. Our insanity thus lies in our willing efforts to make sexuality a banal, frivolous matter. I hope Christians don’t follow this direction of deconstruction. For violence and sexuality are inseparable. This is why sexuality contains both the most beautiful and the darkest elements that we carry within.

The twentieth century was the century of classical nihilism. The twenty-first century will be the century of alluring nihilism. C. S. Lewis was right when he talked about the abolition of man. Michel Foucault added that the abolition of man was becoming a philosophical concept. Today, one can no longer speak of ‘man.’ When Friedrich Nietzsche announced the death of God, in fact he was announcing the death of man. Eugenics is the negation of human rationality. If one considers man as the outcome of mere chance and as crude material for the laboratory, a malleable object to be manipulated, one reaches the point of being able to do anything to man. That ends with the destruction of the fundamental rationality that belongs to the human being. But man cannot be reorganized thus and still remain man.