Há muito tempo eu já havia deixado para trás essa história da existência de Deus – se ele existe, ótimo, mas isso não muda em nada a minha vida. Pois eu estava desenvolvendo uma crença forte em mim, em meu deus interno, cansada de querer acreditar em algo ou alguém mais poderoso que eu capaz de me salvar e de fazer tudo por mim.
Esse parágrafo é revelador de como eu era, de como eu estava: sufocando uma sempre presente ânsia por Deus debaixo de uma penca de conteúdos espíritas e esotéricos, todos destinados a camuflar com um disfarçado humanismo uma insegurança infinita. Eu me queria forte a todo custo, um inadmitido falseamento de mim mesma, e a incoerência dos textos esotéricos que me chegavam às mãos se encarregava do falseamento de tudo o mais. Ao mesmo tempo em que tentavam solapar o desejo pelo transcendente ao persuadir o leitor de que o homem era sua própria divindade e deveria se satisfazer com isso, essas estranhas e ilógicas construções textuais eram imbuídas de conteúdos que atribuíam a tudo no mundo uma pessoalidade roubada do ser de Deus. Enquanto o mundo se afigurava mais que humano, doador de múltiplos sentidos, Deus não passava de uma força perfeitamente moldável pelo homem. Uma árvore era mais pessoal que Deus e podia ser fonte de vida e transformação, como qualquer outro ser. O mundo esotérico é cheio de uma adoração difusa a todo e qualquer objeto, concomitante à negação da pessoalidade e do poder de Deus. Poderoso fator de inversão, o esoterismo faz transbordar nossa subjetividade, sobrepondo-a ao real – um perigosíssimo alheamento que eu não podia perceber na época, mas que me custara experiências muito penosas.
Quando me converti, lia a Bíblia com bastante dificuldade, pois ainda estava me desintoxicando da indistinção mental esotérica, responsável por atribuir sentidos até contraditórios ao mesmo texto. Quase decorei o trecho de Hebreus que desfaz a crença na reencarnação, porque precisava ter certeza de seu significado. Lia os evangelhos e as passagens jogavam minha mente para várias direções, deixando-me louca, fazendo com que eu orasse de modo bem dolorido para que Deus firmasse minha mente na interpretação correta.
E tudo retornou aos poucos a seu lugar. Minha visão tomava foco: nada mais pedia para ser adorado, mas tudo no mundo apontava para o criador. E eu "ganhei" um Pai amoroso, que me presenteava com o fardo leve da fé: não precisava mais ser forte, bastava ser fraca Nele. Compreendendo a cegueira anterior, eu era como uma criança novamente, agradecida por receber partes de um verdadeiro conhecimento – do mundo, de mim, de Deus. Lembro que ouvia uma música de John Lennon, Oh my love, e partilhava dos mesmos sentimentos expressos ali. Bastava trocar my love por "My Lord", e a letra descrevia com exatidão o maravilhamento que eu experimentava ao enxergar pela primeira vez.
Oh my Lord for the first time in my life,
My eyes are wide open
Oh my Lord for the first time in my life,
My eyes can see
I see the wind, I see the trees,
Everything is clear in my heart,
I see the clouds, I see the sky,
Everything is clear in our world,
Oh my Lord for the first time in my life,
My mind is wide open,
Oh my Lord for the first time in my life,
My mind can feel
I feel the sorrow, I feel dreams,
Everything is clear in my heart
I feel life, I feel love
Everything is clear in our world