Por telefone – fixo, é claro –, tenta-se marcar uma entrevista. A esperança é conseguir espaço na agenda de um ativo senhor de 93 anos, que não atende pelos títulos de pastor ou teólogo, mas que há décadas é uma das vozes mais relevantes no meio evangélico internacional. Jim (James) Houston atende, ouve o pedido e responde, docemente: “Você pode vir amanhã às oito? Podemos tomar o café da manhã juntos”. O acesso fácil ao concorrido acadêmico e pregador James Houston, fundador da renomada Regent College, em Vancouver (Canadá), e autor de diversos livros cristãos que influenciam gerações de crentes, não é sorte e nem milagre. Na verdade, refeições com alunos, professores e amigos de todo o mundo são uma marca do ministério do ainda professor e palestrante.
No dia seguinte, a reportagem chega às oito horas e sete minutos da manhã na porta do prédio onde Houston vive sozinho e completamente independente. O senhor de hábitos britânicos desce, abre a porta, oferece vaga na garagem e lembra ao entrevistador brasileiro que ele está atrasado, ao dizer: “Como você não chegava, não sabia mais se vinha”. Deixados os sete minutos de lado, da porta do apartamento já dava para ver uma mesa semi-arrumada. Houston pede uns minutos, oferece uma visita à varanda – com direito à brisa e uma bela vista de Vancouver – e dá início uma detalhada composição da mesa. Louças impecáveis, café e croissants frescos mostram que a hospitalidade é um hábito bem treinado ao longo de décadas.
A conversa começa diante de um homem cuja virtude, confirmada por quase todos que ficam diante dele, é dar aos seus interlocutores a certeza de que está sendo atentamente ouvido. Houston atendeu CRISTIANISMO HOJE com exclusividade menos de doze horas depois de assistir uma palestra sobre neuropsicologia e espiritualidade na Regent College. A agenda do ancião continua cheia: em agosto, Houston voa mais uma vez para falar no Brasil, mas antes tem compromissos em Hong Kong e no Japão. Nesta conversa de varanda, ele fala sobre espiritualidade, oração, relacionamentos – temas com os quais conviveu ao longo da vida ministerial e que fizeram dele um dos mestres mais requisitados e queridos da Palavra de Deus nas últimas décadas.
CRISTIANISMO HOJE – O senhor já completou muitas tarefas e tem um papel importante na academia cristã. Por que um homem de 93 anos de idade continua buscando conhecimento até hoje?
JAMES HOUSTON – Bem, na verdade é muito mais do que perseguir conhecimento; é perseguir a verdade. Nós estamos sempre perguntando o que é a verdade e, como cristãos, nós queremos ser fiéis até o fim. Eu nasci exatamente quatro anos depois da rendição alemã na Primeira Guerra Mundial e tive todos os ecos daquele conflito na minha infância. Imagine ter experimentado todas as mudanças com a Grande Depressão [de 1929], a Segunda Guerra, a riqueza de ter vivido na Espanha quando criança, depois ter crescido na Escócia e viajado o mundo como geógrafo. Acho que o que acontece quando você tem todas essas ricas experiências, assim como os sofrimentos pelos quais passa, é que você quer continuar vivendo.
Muitos idosos estão lutando consigo mesmos, se perguntando “o que é para eu fazer agora?”. O senhor não enfrenta esse problema?
Eu acho que o que você percebe é que também tem que passar pela redenção das feridas emocionais de quando era uma criança. Algumas pessoas nunca as superam; é por isso que elas parecem derrotadas no fim da vida. Temos que perceber isso e, realmente, celebrar a redenção do nosso passado emocional. Além disso, também me foi dado o dom de ver coisas além do tempo. No entanto, eu sempre me senti, por muito anos, um prisioneiro das minhas próprias circunstâncias. As pessoas não entendiam do que eu estava falando. Agora, 60 anos depois, são ideias reivindicadas, mas elas não eram muito populares quando eu as disse. Então, é uma alegria ter algumas ideias sobre tendências e cultura, que todos criticavam, obtendo a concordância de todo mundo e ver essas coisas que eu dizia fazerem parte do senso comum hoje. Sentir-me frustrado e aprisionado outrora e, agora, ser compreendido, me faz renovado, liberto da prisão, como Pedro, pronto para sair e gritar um pouco mais na praça pública.
O que o senhor aos idosos que estão apenas descansando enquanto aguardam pelo dia final de suas vidas?
Isso é trágico! É muito triste de ver esse desperdício. Uma das coisas loucas dessa cultura global é que nós nos esquecemos das etapas da vida. Então, em vez de pensarmos em juventude e velhice, sem nada no meio, deveríamos reconhecer que crescemos. Crescemos a partir da criança, do adolescente, do jovem, para o adulto médio, depois o maduro e assim por diante. Precisamos reconhecer que, em todas essas fases da vida, nos são dados novos desafios, novas oportunidades de continuar crescendo. É claro, portanto, que pessoas que ficam paralisadas desistem da vida.
Como seus últimos anos ao lado da sua esposa, Rita [Houston, falecida em outubro de 2014 após um período de perda progressiva das suas capacidades cognitivas], moldaram o seu pensamento atual sobre a vida?
Uma coisa importante de estar ao lado de uma boa esposa é que ela contradiz você. Os últimos anos foram muito duros e, ao mesmo tempo, uma benção. Um jovem casal estava vendendo o apartamento deles para nós porque estavam se divorciando. Eu estava muito triste porque estávamos nos beneficiando da compra, mas eles adoravam o lugar. Um dia, a moça veio para retirar as últimas coisas, dar um último adeus ao ex-marido e me disse: “Deve ser muito difícil para o senhor, com sua mulher perdendo a memória.” Eu respondi: “Não, não é. Esses são os nossos anos dourados”. Ela olhou-me chocada. Ela estava lá, jovem, lutando com todas as dificuldades de manter um casamento, e eu com a minha mulher sofrendo demência e dizendo que eram nossos melhores anos. Ela perguntou-me: “O que quer dizer com isso?” Respondi, então, que isso é amor incondicional e que eu me sentia privilegiado por ser a memória de minha mulher naquela fase. E essa era uma maravilhosa nova forma de expressão de afeição entre nós. Bem, ela foi embora naquela tarde e depois me disse que estava com coração ferido e orgulhosa demais para manter o casamento. O resultado daquela conversa é que. alguns meses depois. ela voltou para casa, eles se reconciliaram e continuam vivendo no mesmo lugar. E, mais tarde, eu pude dizer-lhes o que significava crer em Jesus e o que era um casamento cristão.
Sabemos que o senhor tem uma relação afetiva com o Brasil e muitos amigos no país. Pode nos falar brevemente sobre a importância deles no seu ministério?
O que acontece é que nós podemos ter relacionamentos comuns com as pessoas, relações que pensamos que não são nada. Mas, se você é fiel e leal a uma amizade cristã, o amor de Cristo une uma pessoa à outra. É como ter um bom casamento. Se eu tenho uma boa esposa, ela vai me dar aventuras maravilhosas – e, quando você ama Cristo, ele vai lhe dar aventuras que você nunca imaginaria. É fantástico perceber que, ao longo dos anos, esses relacionamentos que construímos tornam-se significantes. Quando você fala a verdade, ama Cristo e procura o Senhor, é como Paulo disse aos crentes de Éfeso: Deus é poderoso para fazer infinitamente mais do que você pensa. Eu não tinha nenhuma ideia de que, até o fim da minha vida, estaria ligado a esses relacionamentos tão profundos e eles a mim. Eu considero que tenho amigos muito fiéis no Brasil.
Suas áreas de estudo têm sido a mentalidade cristã, a oração, a Trindade e formação espiritual. Nas suas viagens ao Brasil, quais foram as necessidades espirituais que mais chamaram sua atenção na Igreja brasileira?
Quando eu estava na universidade, em Oxford, decidi ser um tipo específico de geógrafo, estudando o que se pode chamar de história das ideias. Isso me permitiu entender como as ideias e identidades surgiam em um determinado período da história ou dentre determinado grupo étnico. Mas minha paixão era buscar entender a identidade de um discípulo de Cristo em vários ambientes. Qual o caráter de Pedro no primeiro século? Qual o caráter de Bernardo de Claraval ou de João Calvino? Diante do calvinismo ou de um movimento de Espiritismo, por exemplo, precisamos dissecá-los para entendê-los. Da mesma forma, no Brasil precisamos dissecar o que é essa nova espiritualidade, descobrir porque a teologia da prosperidade é tão atraente às classes médias, entender o Evangelho numa cultura que se emancipou da escravidão tão tarde etc. Então, vocês precisam conhecer a história e a cultura. Precisam de uma história das ideias do Brasil; e, então, vamos entender melhor o que está no DNA do Brasil.
Isso significa que o país precisa de mais estudiosos e pesquisadores?
Bem, eu não os chamaria de estudiosos e pesquisadores. Eu simplesmente os chamaria de gente que pensa claramente, que não tenha pretensões de ter uma identidade profissional de “pensador”. Em vez disso, que sejam pessoas dispostas a usar suas mentes para estarem livremente sujeitas à mente de Cristo. Esse é um novo tipo de estudioso. Quando você tem um talento ou uma mente brilhante, você pode ser seduzido pelo academicismo do período. Porém, para crescer em Cristo, você tem que ser contracultural. Não pode ser dominado pelas ambições do estudo acadêmico.
Mas onde e como esses pensadores cristãos não profissionais vão ser preparados?
Eles são preparados pela vida, treinados nos relacionamentos com muitas pessoas. Mas, acima de tudo, são preparados pela oração. Se se dedicarem à oração diante de Deus, o Senhor dará a eles intuições. E eles irão seguir essas intuições.
Não seria uma preparação muito mística?
Algumas pessoas diriam que qualquer coisa a ver com Deus é mística [risos]. Mas, OK, é isso mesmo. Se você quer dizer que místico é tudo que tem a ver com esse amor por Deus, vamos todos ser místicos!
Em muitos dos seus livros, o senhor insiste na questão dos relacionamentos como uma forma de expressão da fé cristã. Por que os relacionamentos ainda são importantes no mundo de hoje?
Porque Deus é assim. O mistério do relacionamento do Pai com o Filho, e do Filho com o Pai, e de ambos com o Espírito Santo, me diz que Deus é essencialmente relacional. Tudo na ordem criada está em relacionamento com outro elemento. Seja no giro dos planetas, seja no ecossistema das plantas, nos habitats dos animais ou entre os próprios seres humanos, tudo no universo é baseado em relacionamentos.
Dessa forma, o individualismo...
É pecado! Porque o pecado é uma fratura nos relacionamentos.
E como as inovações tecnológicas são importantes para entender esse processo de isolamento do ser humano?
Toda técnica, como disse Jacques Ellul há alguns anos, é uma simples extensão do poder humano. Então, se um martelo é uma extensão da minha fúria, eu posso facilmente partir o crânio de um inimigo. Ou, por outro lado, posso usar o seu gravador aqui para gravar e preservar uma voz. Isso é uma bênção de tecnologia. Assim, o que a tecnologia pode simplesmente fazer é, em meio a um mundo caído, amplificar essas nossas ambiguidades. Você pode dizer que viver numa sociedade tecnológica é o melhor dos mundos e o pior dos mundos ao mesmo tempo, como Charles Dickens afirmou sobre viver em Londres durante a Revolução Industrial.
A ideia de “modernidade líquida”, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, é baseada no pensamento de que os relacionamentos estão cada vez mais superficiais e os valores, relativos. As certezas tornam-se incertezas rapidamente. Na sua opinião de observador cristão das últimas décadas, como isso tem afetado a Igreja?
A modernidade é líquida em vários níveis. É líquida porque não há mais um ambiente de aldeia: o que há é um ambiente global. A escala é diferente. Bauman está certo e a tecnologia amplificou essa liquidez. A forma como fazemos as coisas e a informação que podemos guardar têm criado uma nova velocidade; uma velocidade acelerada. Por outro lado, algumas coisas não mudam. Uma vez estava cortando uma árvore com uma serra elétrica, que soltou-se da minha mão e quase me decepou um dedo. Tive uma reação rápida que impediu que a ferramenta cortasse o osso. Eu, então, percebi que meu pensamento pôde ser rápido para causar uma reação mais rápida que a da serra, mas há limites. Não posso pensar mais rápido indefinidamente, nem reagir mais rápido sempre. Menos ainda, me adaptar a mudanças tão rapidamente ou conseguir me ajustar aos relacionamentos de maneira acelerada. Naquele dia, percebi que a velocidade de tornar-se semelhante a Cristo é a mais lenta de todas. A velocidade na qual podemos conhecer a Deus vai fazer essa tarefa nos tomar a vida inteira…
Como relacionar isso com a oração?
A melhor forma de perceber quão imaturos nós somos é notar como são nossas orações. Se eu só digo a Deus “me dá, me dá e me dá”, pareço uma criança muito pequena. Mas, a pessoa também pode ir para o parque diante de Deus, dizer “obrigado” e, ao voltar, outras pessoas, vendo sua expressão, queiram saber o que houve, ou o que fizera lá. E ela responde: “Nada! Nós só estamos apaixonados”. Uma vida de oração é a simples celebração da presença de Deus. Nós nem precisamos falar.
A Igreja tem ensinado isso?
Acho que não. Pois, alguém diz que tem um ministério, esse ministério tornou-se uma profissão. E a profissão é a identidade daquela pessoa. Lógico que ela vai dizer aos outros: “Você tem que estar sob esse meu ministério”.
E qual foi, na sua opinião, a grande mudança da Igreja nos últimos cem anos?
Nós, como o resto da cultura, estamos nos emancipando da modernidade, ou seja, do fato de termos que dar uma razão lógica para tudo que fazemos. A Igreja focou-se na busca das “doutrinas certas”. Isso não é um problema; precisamos ir atrás da verdade, onde quer que ela esteja. Porém, usando a metáfora dos lados do cérebro, tornamo-nos hipercognitivos, com ênfase no lado esquerdo. Só que, quando olhamos para as telas da fé cristã, elas são muito mais numerosas do que aquilo que apenas podemos captar com o uso da mente, como evangélicos racionais. Devemos estar preparados para abraçar todas as artes. Preparados para expressar todas as emoções no louvor a Deus e ao andar nos seus caminhos. Em outras palavras, a grande mudança é que os horizontes para a Igreja tornam-se muito mais amplos.
Isso nunca aconteceu antes na Igreja?
Não, nunca.
O que deveríamos fazer pra enxergar esses horizontes?
O que penso é que os cristãos deveriam se emancipar de suas denominações. Porque elas têm um passado histórico no sentido contrário, um compromisso de institucionalizar a fé. A ruptura com a institucionalização da fé é o novo grande empreendimento do Cristianismo. A igreja local deve ser mais importante, e as amizades locais, mais importantes ainda. Isso é o que os mais jovens já estão fazendo: procurando igrejas menores, nas casas, onde possam fazer isso. É lógico que há falácias e exageros nesse processo, especialmente exageros da geração anterior a essa, mas é um movimento saudável. Por último, há dois processos acontecendo. Nunca fomos tão personalistas e nem tão globalizados. E, quanto mais estou ciente de mim mesmo, mais eu posso estar sensível à multiplicidade de vozes e costumes étnicos pelo resto do mundo.
O senhor está pregando o fim das denominações?
Não exatamente. O que estou dizendo é que estamos vivendo uma profunda mudança cultural e haverá cada vez menos e menos entendimento do que elas são. Mas houve formas disso no passado. Richard Baxter, no século 17, estava tão cansado com as divisões durante a guerra civil, e com as questões sobre se ele era puritano ou anglicano, que disse: “Eu só quero ser como um cristão”. Ele já estava recusando as denominações.
No Brasil algumas denominações, especialmente as neopentecostais ou pós-pentecostais, cresceram bastante. Há quem diga que devemos deixá-las crescer e apenas no futuro avaliar se esse movimento provém de Deus ou não. Isso pode ser perigoso?
Eu acho que devemos dar uma olhada no evangelho de João. João está sempre falando da “multidão”. A multidão é instável. A multidão é superficial. A multidão significa imitar o outro. E a nossa fé não é para ser uma imitação. Sim, se imitamos Paulo, que imitava Cristo, é maravilhoso imitar alguém que teve a mente das massas transformada na mente de Cristo. Porém, suspeite sempre das multidões.
Esses pregadores da prosperidade e profetas da televisão irão durar?
Não, pois a fraude não dura. A fraude é sempre exposta.
O senhor conheceu gigantes do século passado, como C. S. Lewis, Henri Nouwen e J.R.R. Tolkien. Qual o legado deles para a Igreja de hoje?
Eles não foram importantes nos dias deles. Lewis não era uma voz importante em Oxford quando o conheci, há muitos anos. A voz dele, hoje, é um legado, mas não era uma realidade naqueles tempos. O mesmo com Henri Nouwen. E a razão porque as vozes deles foram ficando mais altas é porque tiveram coragem de permanecer contra a cultura deles. E nós hoje somos inspirados por eles a fazermos o mesmo. Qualquer um de vocês pode ser mais influente no Século 21 do que foi C.S. Lewis, simplesmente se for uma voz no Brasil. Mas, no seu tempo, provavelmente, vai ser um ninguém. Em sua cultura e tempo. um profeta não é ouvido. Esse é um privilégio de ser um velho. Você descobre que era um profeta 60 anos atrás e ninguém o ouvia [risos].
A Regent College surgiu décadas atrás com o propósito de preparar pessoas para serem relevantes nos seus contextos. Qual a relevância dessa escola, hoje?
Regent tem a simples convicção – e isso me convenceu a vir fundar a escola no passado – de que é um erro as pessoas tomarem toda a inteligência para a fé a partir do passado, não usando toda a inteligência que elas usam nos seus locais de trabalho, para a vida da igreja. Eu dizia: “Deixe sua inteligência ser tão consistente para a fé quanto ela o é para a vida, no mercado de trabalho”. Era uma simples voz, mas essa voz agora é compreendida. Mesmo assim, 60 anos é pouco. Por isso, a minha luta no início. A escola ainda é nova para nossa cultura. Regent está preparando pessoas para pensarem por si mesmas, para viverem a fé fora da igreja, mas contra a cultura.
Muitos pastores têm se mostrado decepcionados com o ministério exclusivo na igreja e buscado uma posição no mercado de trabalho. O senhor ainda acredita em ministério pastoral de tempo integral?
Sim, por que não? Há pessoas que estão dedicadas a fazer na vida da igreja aquilo que outros profissionais não poderão fazer. Somos seres humanos limitados e precisamos estreitar nossas opções. Acontece que alguns podem estar à procura de uma posição perante a sociedade: querem uma identidade profissional, procuram um diploma ou uma posição na academia. Por outro lado, fui convidado para falar no Japão e estava estudando sobre a competição e a pouca mobilidade profissional naquele país. Algumas pessoas sabem que, por 40 anos, não irão ser promovidos ou que suas posições são estáveis demais. Naquela cultura, os cristãos, às vezes seguem no sentido oposto ao que vocês talvez estejam seguindo no Brasil: “Se eu não vou ser promovido, se o mercado é competitivo demais, talvez então Deus esteja me chamando para o pastorado”. Em ambos os casos, pode ser só confusão.
E sobre a igreja na América do Norte, o senhor diria que hoje ela sofre pelo legado de líderes fundamentalistas de um passado não tão distante?
Eles, certamente, estão desaparecendo. E esse é um dos sinais de falta de verdade, pois a verdade é eterna. Eu penso que está provado que o fundamentalismo é um medo. Porém, “o perfeito amor lança fora todo o medo”, como diz a Escritura. Então, o medo está sempre errado. Por isso, é certo dizer que hoje não há muita diferença entre o ateísmo radical e o fundamentalismo radical – ambos são fundamentalismos. Lembre-se que a multidão está sempre errada.
Como equilibrar-se entre o fundamentalismo e o relativismo?
Bem, a verdade não é algo que se domina; é a verdade quem nos domina. Quando procuramos esse domínio, é uma procura sem fim. Só dominamos aquilo que compreendemos. Nessa busca, portanto, não há espaço para o mistério.
Em termos de esclarecimento e inspiração, a literatura sempre foi uma ferramenta importante para os cristãos. Como o senhor, autor de tantos e tão importantes livros, avalia a literatura cristã de hoje?
É claro que a literatura cristã é uma expressão da cultura e das mudanças culturais. Por isso, é importante para nós termos os clássicos como uma âncora. Eles se mantiveram, apesar das mudanças na cultura. A receita de C.S. Lewis era: “Para cada livro contemporâneo que leio, quero ler três clássicos”.
O que senhor quis dizer quando escreveu, em um de seus livros, que “o calcanhar de Aquiles de uma pessoa é o seu guia para um relacionamento com Deus”?
O calcanhar de Aquiles é onde vacilamos, onde estamos feridos e onde somos vulneráveis. Então, se eu não preciso de Deus, eu nunca vou conhecê-lo. Dessa forma, a situação onde eu vacilo é a situação onde preciso de Deus.
A forma como as pessoas, especialmente das classes médias e altas urbanas, têm vivido pelo mundo é construída para encontrar um jeito de não ter um calcanhar de Aquiles...
Não temos um calcanhar de Aquiles porque vivemos em competição. Qualquer um que cheirar a sangue, vai verter sangue. Na nossa fazenda animal, ninguém quer mostrar fragilidade e feridas. Ninguém quer expressar humildade num ambiente tão competitivo.
É melhor ser pobre e experimentar o sofrimento para conhecer a Deus ou é melhor ter uma vida disciplinada espiritualmente para conhecê-lo?
Penso que, para aqueles que vivem na pobreza, será certamente muito mais fácil clamar por Deus do que é para os ricos. Jesus diz que é muito difícil para o rico entrar no Reino dos céus. No entanto, você pode ter pessoas ricas e maravilhosamente devotadas a Deus, e que não usam suas riquezas para si mesmas. Havia uma riquíssima viúva em Roma que mantinha correspondência com Agostinho. Numa das, ela pediu a ele muito humildemente que a ensinasse o que pedir em oração. Não é maravilhoso ver uma pessoa rica e tão pura?
Na América Latina, a Teologia da Libertação advogou que, no encontro com o pobre, encontra-se Cristo.
Essa é uma meia-verdade, não é toda a verdade. Por isso, a Teologia da Libertação está morrendo hoje. Sim, nós precisamos libertar os cativos. Mas libertá-los de qual maneira? Socialmente? Espiritualmente? Eles estão propondo socialmente, mas não espiritualmente. Teólogos da libertação precisam ser libertados do seu próprio ego de serem teólogos da libertação [risos]. Há esperança. Há grande potencial de, em um ambiente de pobreza, anunciar o Evangelho para o pobre. Temos que libertar as pessoas da pobreza e anunciar-lhes o Evangelho, mas o último é mais importante. Do contrário, seremos inconsistentes.
Fonte: Revista Cristianismo Hoje
Reproduzida no Blog do Jadiel