26 novembro 2014

Da telinha aos livros

 
Em meados dos anos 1970, por causa da tv, eu já estava familiarizada com os personagens do Sítio do Picapau Amarelo quando, na casa da minha avó, encontrei pelos cantos os livros antigos de Monteiro Lobato que haviam sido do meu pai. Claro, comecei a ler imediatamente: eram histórias do Sítio! Estavam amarelados, com alguns buraquinhos de traça, e tinham um cheiro característico que passei a amar. Continham apenas duas ou três ilustrações em preto e branco: eram os singelos desenhos de André Le Blanc, que eu admirava não apenas pelos traços (mais realistas, se comparados a outros desenhos infantis), mas porque sua Emília, ao contrário da figura coloridíssima que aparecia na televisão, era fiel à descrição do autor em Reinações de Narizinho: morena de cabelos curtos espetados e vestido simples, feinha até. O texto vinha em uma ortografia antiga que me fazia sempre tropeçar na pronúncia das palavras desconhecidas, pois não havia acento em nenhuma proparoxítona. (Foi com espanto que, anos depois, soube como se diziam algumas delas!)

Faz anos que não vejo televisão, mas desconfio de que não há hoje programas para crianças com essa finalidade tão nobre e desinteressada: levá-las da telinha aos livros, inclusive dotando-as de capacidade crítica pela inevitável comparação.

E, apesar das diferenças ortográficas, nunca me cansarei de dizer que o autor a quem mais devo meu português continua sendo Monteiro Lobato.

 

 

20 novembro 2014

Rosa e as pirâmides

Guimarães Rosa aconselhava jovens escritores: "Façam pirâmides, não biscoitos." Ainda era vivo quando Nelson Rodrigues colocou na boca de um personagem o seguinte comentário: "O que é a obra de Guimarães Rosa, senão uma pirâmide de confeitaria?" Tremendamente injusto, mas muito engraçado.

Lembrei-me disso agora, ao comprar para Kindle dois livros do Rosa: Tutameia e Estas estórias. Estão por um preço ótimo na Amazon! "Meu tio o Iauaretê", em Estas estórias, é um dos melhores textos literários que já li na vida. Mas fiz essa avaliação aos vinte e poucos anos. Quero ver o que vou achar agora (algo me diz que continuará sendo um dos melhores textos literários que já li na vida).




11 novembro 2014

Reminiscência

Organizando meu iTunes, fui criar uma lista com músicas de Paul McCartney, quando me deparei com um leve mal estar: não combinava misturar as músicas que eu ouvia quando menor (Another Day, Pipes of Peace, Coming Up) com as músicas que passei a conhecer mais recentemente (Ram On, The Back Seat of my Car), mesmo que fossem da mesma época.
Por quê? Pensei melhor e construí rapidamente uma pequena teoria - que, na pior das hipóteses, só se aplica a mim mesma. Quando somos menores (infância e parte da adolescência), o contato com a cultura é também uma busca identitária. Nós nos projetamos para nos encontrar no outro. No caso específico de Paul ou dos Beatles, quando ouço aquelas músicas marcadas pelo tempo, sinto bastante prazer ainda, mas preciso estar em uma certa "onda" nostálgica. Ou narcísica: é como se a música estivesse se entranhado tão profundamente em mim que eu a ouço vinda do meu próprio corpo, não das caixas de som. Como quem revisita antigos cadernos e lembra de certos sentimentos, certos cheiros, detalhes esquecidos de certos ambientes.
É um processo totalmente diferente da escuta atual, que não me parece tanto uma projeção, mas o movimento inverso: de acolhimento de um outro que se agrega em mim, mas permanece outro. E esse processo coincidiu, no meu caso, com a entrada na fase adulta. Por exemplo, ouço Dave Brubeck desde os meus dezoito anos, e ainda ouço do mesmo jeito. Mas a maioria das músicas dos Beatles, que comecei a ouvir aos nove anos (e era beatlemaníaca aos quatorze), talvez sejam para sempre reminiscência.

03 novembro 2014

Reeleição e lições de Downton Abbey

Fiquei em silêncio durante a maior parte da fase de propaganda eleitoral. Não acompanhei debates, nem dos candidatos, nem dos formadores de opinião. Considerei que já havia falado tudo o que se havia para falar, em todos esses anos de blog. Munidos dos princípios expostos ali, meus leitores saberiam o que fazer; eu não precisaria ser explícita. E assim procedi. Cuidando das necessidades mais concretas de minha casa, permaneci calada, aguardando qual seria a vontade de Deus para o país.

E, nos momentos de descanso, comecei a assistir à série britânica Downton Abbey. Justo no dia das eleições, terminei a primeira temporada e vi o primeiro episódio da segunda, em que se inicia a Primeira Guerra Mundial. Emblemático. [Atenção: segue SPOILER do final da primeira temporada] Na casa de Lady Grantham, um dos personagens que se mostram mais vis, o volante Thomas, alegra-se porque vê no caos uma oportunidade de mudança. Sua visão pragmática e egoísta combina com seu comportamento até ali: valia tudo para conseguir alguma ascensão social. Tentara chantagear o amante aristocrata e derrubar com mentiras o colega que o vira roubando vinho. Sem sucesso, sente-se atraído pelo trabalho no corpo médico do exército. Não dá mostras de patriotismo nem solidariedade: sua esperança é deixar de ser criado. O sofrimento que advém do conflito não parece comovê-lo - assim como não o comovem minimamente as mortes da criança que nasceria na casa, nem da mãe de outro dos criados.

Mais matizadas são as personagens Mary e Edith, filhas do casal Grantham. São moças com seus caprichos, mas capazes de atos desinteressados. Porém, a rivalidade que nutrem entre si é tão grande (Mary é a preferida e provoca a desdenhada Edith) que as leva a decisões odiosas. Antes de deflagrada a guerra, Edith havia conseguido estragar a reputação de Mary espalhando um segredo; em retaliação, Mary conta uma mentira ao pretendente da irmã que o faz desistir da proposta. Quando vem a grande guerra, ambas estão sozinhas e sem perspectivas - a guerra menor entre elas havia promovido destruição. 

Nesses tempos de coletivismo e acirramento de conflitos, eu queria que não esquecêssemos que, para Deus, todas as guerras têm a mesma importância. Ou melhor: que todas as guerras derivam daquela fundamental, inaugurada na Queda e travada no coração contra o próprio Deus. Sim, precisamos nos engajar, de modo honesto e sem pecado, na "guerra" da oposição a este mundo, e isto inclui lutar contra as cosmovisões que mentem sobre Deus e os homens - a mais poderosa delas, hoje, insiste que o Estado deve ter o poder sobre tudo, inclusive a consciência, ideia encarnada, infelizmente, pelo partido que venceu esta eleição. Por outro lado, nada nos fará mais infelizes e nos deixará mais longe da vontade de Deus que enxergar somente as guerras exteriores, fantasiando-nos de soldados enquanto permanecemos alheios à inimizade que faz cama dentro de nós, solapando crescimento espiritual, relacionamentos e atos de bondade.

Um dos primeiros atos da presidente reeleita foi retirar símbolos cristãos de seu gabinete - um sinal inequívoco de que a cordialidade forçada com católicos e protestantes logo cederia a declarações de guerra. Visto que boa parte dos evangélicos se opôs ao partido governista, podemos esperar vislumbres da face irada de Leviatã. Na série, Matthew diz a Thomas: "A guerra tem um jeito de separar as coisas que importam daquelas que não importam." Grande pensamento para nós, cristãos, diante da perspectiva de mais quatro anos de PT no governo.

Acima de tudo, lembrar-se disso a partir deste fatídico outubro de 2014 - "aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor" (1Jo) - será um antídoto poderoso contra o esfacelamento social e moral promovido pelas convicções socialistas do governo reeleito. Nada de ecoar as inimizades entre ricos e pobres, brancos e negros, heterossexuais e homossexuais, paulistas e nordestinos, mas sim repudiar com todo conhecimento de causa o "politicamente correto", produtor de bodes expiatórios e violência. Se não queremos sucumbir em uma atmosfera de perpetuação de conflitos e fortalecimento estatal, devemos orar e buscar que toda ação, toda palavra, todo desejo e todo pensamento brotem de um interior renovado por Deus. Só assim nossa oposição terá chances de êxito.


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Em um blog petista, as coisas são ditas às claras: o Estado se apresenta como o deus mais poderoso, que deve controlar as instituições religiões de um país. Isso você não vai ouvir tão cedo da presidente, nem do líder do partido, mas quem estuda de fato o socialismo sabe que é assim. Veja:
Precisamos salvar o Brasil do atraso, e fazer a defesa enfática de um Estado laico, que só será possível com a eleição de Dilma Rousseff. A Igreja é que deve se submeter ao Estado, e não o contrário. Este caminho já foi traçado pelo companheiro Hugo Chávez na Venezuela: depois de sofrer uma campanha sórdida como a que estamos sofrendo agora, decretou a laicidade do Estado, e agora é o governo venezuelano que controla sua própria Igreja.
Tempos difíceis se delineiam à frente. É hora de apegar-se à Rocha com todas as nossas forças.