Junto com um Feliz Ano-Novo, revelo no blog uma das melhores descobertas livrescas de 2012: Cornelius Van Til, responsável não só pelo aprofundamento de algumas de minhas intuições mais caras, mas também, e sobretudo, por respostas preciosas a questões muito antigas e cruciais. "Vantilianas" é o título que inaugura aqui, às portas do novo ano, uma série de pequenos textos
inspirados na leitura deste filósofo reformado. Um 2013 recheado de autores crentes sensacionais para você! E não deixe de ler a recente postagem de meu marido André Venâncio, também bastante vantiliana.
Com Van Til, percebemos o quanto o racionalismo e o irracionalismo, esses dois extremos tão presentes no pensamento de nosso século, são faces da
mesma moeda. Quando pensamos ter escapado de uma dogmática crença no poder da
razão lógica para formular universais, logo caímos em uma não menos
dogmática crença de que a existência de particulares é o único absoluto
possível. Em ambas as pontas, ainda ocupamos indevidamente a poltrona de
legisladores do que existe. A única solução para esse dilema é
transferir para Deus a prerrogativa de criar e prescrever absolutos,
permanecendo na posição relativa que é a nossa, mas sempre referente a
Ele.
Claro, esse Deus precisa ser o Deus da Bíblia, o único que não participa de nenhum dos extremos, pois é
transcendente e imanente ao mesmo tempo: o único que mantém sua
onipotência enquanto invade nosso mundo e se torna um de nós, em Cristo, e que, por ser quem é, fornece ao homem um modelo
correto para a correlação entre universais e particulares.
Um esforço, com a graça de Deus, de recolocar o cristianismo na via dos debates intelectuais. Não por pedantismo ou orgulho, mas por uma necessidade quase física de dar nomes às minhas intuições e contornar o status quo das idéias hegemônicas deste mundo.
31 dezembro 2012
24 dezembro 2012
É Natal!
Enquanto andou entre nós, Cristo foi um habitante da eternidade que veio ao tempo; através dele e com ele, por sua morte e ressurreição, somos libertos do pecado e seremos, por fim, criaturas do tempo habitando na eternidade. Essa é a extraordinária boa nova que comemoramos a cada ceia, quando nos alimentamos de seu corpo e seu sangue, e que podemos também comemorar no Natal, suposto dia de sua vinda.
Natal de 2011. André e eu ainda sem amigos mais chegados em Fortaleza, sozinhos em casa, encomendamos uma ceia da confeitaria Fiorella (éramos fregueses assíduos do sushi – nem sempre tinha leite em saquinho ou em caixa, mas se podia contar sem falta com um sushi excelente e barato de segunda a sábado). Foi um arranjo simples, com peru fatiado e alguns breguetinhos para enfeitar (cereja, passas, essas coisas), junto com uma bandeja de queijos que durou mais de uma semana (eu ainda não tinha descoberto a intolerância absoluta a lactose). E uma sobremesa sob medida, sem glúten: um pudim de claras. Tudo isso porque minha enxaqueca estava diária (teria sido a reação à lactose?) e não queríamos arriscar o dia de Natal com todas as tarefas da cozinha em minhas mãos. Fiz apenas o arroz. Coloquei um cd do Josué Rodrigues no som e fomos cear quando sentimos fome. Orações de gratidão e letras de hinos antigos emolduraram aquele momento. Preciso fazer um esforço para lembrar os presentes que ganhei, mas até hoje não esvaneceu minha memória emocional da alegria e da paz que preencheram nosso jantar a dois. Que seu 25 de dezembro de 2012 seja assim, leitor, leitora: simples, belo e focado em Jesus.
Quero pedir mais por vocês neste dia. Que Deus, através de seu Espírito, possa convencê-los de uma só vez (conversão) e um pouco a cada dia (santificação) do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.8), até que, transformados de glória em glória (2 Co 3.18), vocês cheguem à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus (Ef 4.13).Esse é o lindo desejo de nosso Pai para cada um de nós. Feliz Natal!
* * *
Natal de 2011. André e eu ainda sem amigos mais chegados em Fortaleza, sozinhos em casa, encomendamos uma ceia da confeitaria Fiorella (éramos fregueses assíduos do sushi – nem sempre tinha leite em saquinho ou em caixa, mas se podia contar sem falta com um sushi excelente e barato de segunda a sábado). Foi um arranjo simples, com peru fatiado e alguns breguetinhos para enfeitar (cereja, passas, essas coisas), junto com uma bandeja de queijos que durou mais de uma semana (eu ainda não tinha descoberto a intolerância absoluta a lactose). E uma sobremesa sob medida, sem glúten: um pudim de claras. Tudo isso porque minha enxaqueca estava diária (teria sido a reação à lactose?) e não queríamos arriscar o dia de Natal com todas as tarefas da cozinha em minhas mãos. Fiz apenas o arroz. Coloquei um cd do Josué Rodrigues no som e fomos cear quando sentimos fome. Orações de gratidão e letras de hinos antigos emolduraram aquele momento. Preciso fazer um esforço para lembrar os presentes que ganhei, mas até hoje não esvaneceu minha memória emocional da alegria e da paz que preencheram nosso jantar a dois. Que seu 25 de dezembro de 2012 seja assim, leitor, leitora: simples, belo e focado em Jesus.
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Quero pedir mais por vocês neste dia. Que Deus, através de seu Espírito, possa convencê-los de uma só vez (conversão) e um pouco a cada dia (santificação) do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.8), até que, transformados de glória em glória (2 Co 3.18), vocês cheguem à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus (Ef 4.13).Esse é o lindo desejo de nosso Pai para cada um de nós. Feliz Natal!
17 dezembro 2012
Revolucionários e conservadores
"Precisamos viver uma vida mais revolucionária que a dos revolucionários." Irmão André
Vamos pensar nesses termos em seu sentido mais básico e universal. O que são as tradições em si? Apenas o saber humano acumulado ao longo do tempo e cristalizado em linguagens, costumes, valores morais, comportamentos, leis. Nada são, se Deus não as sanciona, ou seja, se não procedem da sabedoria divina. E o que são as revoluções? Apenas as mudanças radicais e corajosas.
Nessa apreciação mais ampla da palavra, Jesus foi, sim, um grande revolucionário em sua época. Ele desafiou e aboliu as tradições vazias do judaísmo que vigorava então, oferecendo a quem desejasse um relacionamento profundo e verdadeiro com Ele, a fonte de vida. Da mesma forma, podemos dizer que nossa fé é revolucionária: enquanto todas as demais religiões enaltecem o mérito humano, pois procedem do coração enganoso, viver na graça de Deus será sempre novidade de vida enquanto estivermos neste mundo. Por outro lado, Jesus deixou muito claro que não vinha para abolir a Lei judaica, mas para a cumprir. Reportava-se sempre ao Antigo Testamento como fonte de verdade, assim como fazemos hoje em relação à Bíblia inteira. Ele não jogou tudo fora, muito pelo contrário: seus embates com os fariseus objetivavam restabelecer o espírito original e legítimo da Lei. Assim, Jesus também foi um conservador, afirmando o sentido correto de uma tradição que não vinha de mãos humanas, mas havia sido entregue aos homens pelo próprio Deus.
A questão central, como o leitor já deve ter percebido, não é a postura conservadora ou a postura revolucionária em si, mas a boa triagem do que se deve conservar e do que se deve abolir - um equilíbrio que deve ser mantido tanto no nível individual quanto no da sociedade, já que tal equilíbrio é responsável pelo progresso. Não se consegue muito na vida apegando-se demais ao passado, sem critério algum; muito menos projetando tudo para o futuro, sem o devido apreço por aquilo que funciona adequadamente há gerações.
Tendo dito isso, passo a considerar o sentido moderno e contextualizado no mundo ocidental dos termos "conservador" e "revolucionário". Afinal, palavras e conceitos não são unívocos, mas ganham sentidos específicos de acordo com cada tempo e cultura. Assim, há certo consenso em torno dos termos "conservador" e "revolucionário" hoje quando usados como "termos técnicos", ou seja, por gente que entende minimamente de política.
Esse sentido, moderno e contextualizado, obviamente tem história, e sua história se confunde com a do próprio cristianismo ocidental. Através da graça comum de Deus, o Ocidente passou a moldar-se pela ampla influência da igreja cristã, desde os tempos do primeiro imperador cristão, Constantino (272-337), dando um fim aos aspectos mais cruéis dos costumes romanos. Esse processo gerou aos poucos um consenso cultural em torno de valores legitimamente bíblicos, tais como: a apreciação incondicional pela vida humana independentemente de status social; o amor como mais alto ideal; o amor pelos inimigos; a importância da interioridade; a inviolabilidade da consciência; o cuidado com os mais fragilizados da sociedade (pobres, estrangeiros, órfãos e viúvas); a valorização da mulher e da criança, e muitos outros. Se você abre sua Bíblia, encontra nela esses valores e concorda com eles de imediato, como se respondesse "é óbvio" à Palavra de Deus, não se engane: foram necessários séculos para que você chegasse a esse estado. A graça comum de Deus gerou consensos na cultura e você, leitor, como ser social, também é fruto desses consensos.
No século XIX, Karl Marx (1818-1883) definiu toda a realidade em torno do conceito de luta de classes. Para ele, uma sociedade igualitária seria desprovida de classes sociais, diferenças econômicas e divisão do trabalho. Ora, tal nivelamento não-natural dos indivíduos só pode ser conseguido através de um poder gigantesco que atue em duas frentes: coerção violenta (prisões arbitrárias, execuções sumárias, instituição do crime de consciência) e pressão ideológica onipresente (controle estatal da mídia e da educação). Assumido como tarefa do Estado, tamanho ideal aniquilava as vocações pessoais, as benesses merecidas por esforço, o livre pensar, a individualidade. O povo precisava deixar seus princípios mais básicos de lado e consentir com assassinato, roubo, mentira, manipulação, tudo em nome da idolatria ao Estado. Quem não se adaptasse seria suprimido - por isso os regimes comunistas e socialistas mataram tanto na antiga União Soviética, na China, e ainda matam em Cuba e na Coreia do Norte.
Nos países mais democráticos, imaginava-se que, expandindo-se o marxismo pelo mundo, o proletariado se levantaria naturalmente para lutar pela causa socialista. Tal não ocorreu, e os ideólogos da Escola de Frankfurt culparam os valores cristãos pela ausência de um espírito revolucionário espontâneo. O Deus cristão, zeloso e exclusivista, passou a ser novamente o alvo maior por parte de poderosos e aspirantes ao poder, tal como havia sido na época do Império Romano. A diferença é que, enquanto a ambição dos ditadores romanos não era totalitária, a nova ideologia coletivista demandava que essa idolatria fosse prestada de coração, substituindo por completo tanto a consciência individual inviolável perante Deus quanto os limites morais em conformidade com os dez mandamentos e os ensinamentos de Jesus. Para isso, em prol da revolução por vir, conforme concluíram esses ideólogos, a "cultura judaico-cristã" teria de ser combatida. Sob as bandeiras da modernidade, do progressismo, da juventude e do amor, as mentes revolucionárias de nosso tempo buscam solapar toda ideia do Deus cristão, negando o certo e o errado, a moral sexual, os laços familiares, a noção dos deveres. Intentam criar uma geração de pessoas vazias, mesquinhas e devassas, mais facilmente corruptíveis ou manipuláveis.
Esses são os "revolucionários" de hoje, que, além da revolução socialista propriamente dita, geralmente defendem causas relacionadas ao marxismo cultural, ou pensamento politicamente correto, aferrando-se ao feminismo, ao movimento gay, às ações afirmativas, à negação de qualquer autoridade (divina ou constituída por Deus), a projetos de descriminalização do aborto, do infanticídio (cf. Peter Singer) etc. Em contraste, os conservadores ocidentais (sempre nessa segunda acepção, mais específica) são os não-socialistas que se importam com a manutenção do substrato cristão na cultura, cujos ideais são frontalmente opostos aos anteriores. Esses sabem que a preservação dos valores cristãos que compõem a civilização judaico-cristã é fundamental para impedir a morte e a destruição de pessoas e sociedades - em um sentido literal. Sabem que, quando abençoa a cultura, o cristianismo:
- protege o indivíduo, impedindo a injustiça e a opressão máxima, inclusive a estatal (pois estamos todos igualmente debaixo de autoridade divina e a ela respondemos);
- protege os laços familiares (pois milita contra o divórcio e o adultério);
- protege a mulher do abandono e da maternidade enquanto solteira (pois a ajuda a guardar-se para um homem que realmente se comprometa com ela);
- protege a criança no ventre e fora do ventre (pois abomina o aborto, o infanticídio e os abusos sexuais).
Esses são aspectos concernentes à graça comum. Mas sabemos que o cristianismo ultrapassa em muito os benefícios para esta vida, iniciando-se com a morte do velho homem e o renascimento espiritual em Cristo. Assim, caso sejam cristãos verdadeiramente convertidos, os conservadores conseguirão escapar ao moralismo raivoso e infrutífero que por vezes os caracteriza, salgando e iluminando a terra, ao mesmo tempo em que apontarão para a necessidade de conservar, sem tradicionalismos vãos, mas de modo vívido e atento, todas as bênçãos advindas da graça comum de Deus para a sociedade, através da infusão da Bíblia na cultura. E é por amor que o farão.
É claro que, na prática, o espectro de variações é enorme. Há os conservadores naturais, pouco afeitos a mudanças, e os revolucionários naturais, muitas vezes "rebeldes sem causa". No âmbito político, além de conservadores e revolucionários, há os liberais, que defendem o Estado mínimo mas, presas de um economicismo que é quase a outra face da moeda marxista, não se importam com o fim dos valores cristãos na cultura; nos EUA, há os "neocons", menos apegados ao cristianismo. Mas atenção: no Brasil, "direita" é coronelismo e militarismo; nunca houve um verdadeiro conservadorismo histórico em nosso país. Existem esquerdistas moderados, não totalitários, mas são bichos raros na América Latina, continente rico de vitimizações e antigos complexos de colônia, onde se espera que tudo venha do governo. O Brasil, infelizmente, tende à esquerda "deixe que o governo faça por você". Entre os cristãos, além dos conservadores convictos, há muitos conservadores inconscientes que simpatizam de longe com a esquerda somente pela "causa social". Conheço alguns deles e, quando encontro abertura, procuro ajudá-los a compreenderem melhor sua posição. E há muitos esquerdistas cristãos que tentam, sem sucesso, preservar a ideologia, rejeitando o relativismo moral que lhe é inerente e adotando apenas o amor aos pobres e o sonho de uma sociedade igualitária. O problema é que, ao sancionarem regimes como o de Cuba ou demonstrarem indiferença diante das matanças comunistas, aderem ao relativismo moral inescapavelmente (em outras questões também, via de regra - e quanto mais socialistas, mais tenderão a confundir revolução com Reino de Deus).
Ainda uma nota sobre Francis Schaeffer. Quando o grande apologista escreveu isto,
espero que tenha ficado claro agora, com meu artigo, que ele se referia ao sentido universal de "conservador", e não ao sentido moderno, político. Na política, Schaeffer era indiscutivelmente conservador, ou seja, não comungava de modo algum com os ideais esquerdistas. Se você não leu o suficiente de sua obra para constatar isso, fique atento, pois pretendo escrever mais sobre o tema "Schaeffer conservador" no futuro. Se tiver pressa, porém, leia O grande desastre evangélico e Como viveremos, e depois venha falar comigo nos comentários.
Por fim, uma observação pessoal. É no sentido político que me considero conservadora, e não no sentido amplo. Nunca deixei de ter coragem para mudar, e quem me conhece há muitos anos sabe disso. Aliás, minhas inclinações naturais sempre foram progressistas em vários aspectos, mas foi Deus que me ensinou a abandonar os deslimites tão daninhos incentivados hoje pela cultura e a abraçar Seus limites protetores. Glória a Ele por isto!
Vamos pensar nesses termos em seu sentido mais básico e universal. O que são as tradições em si? Apenas o saber humano acumulado ao longo do tempo e cristalizado em linguagens, costumes, valores morais, comportamentos, leis. Nada são, se Deus não as sanciona, ou seja, se não procedem da sabedoria divina. E o que são as revoluções? Apenas as mudanças radicais e corajosas.
Nessa apreciação mais ampla da palavra, Jesus foi, sim, um grande revolucionário em sua época. Ele desafiou e aboliu as tradições vazias do judaísmo que vigorava então, oferecendo a quem desejasse um relacionamento profundo e verdadeiro com Ele, a fonte de vida. Da mesma forma, podemos dizer que nossa fé é revolucionária: enquanto todas as demais religiões enaltecem o mérito humano, pois procedem do coração enganoso, viver na graça de Deus será sempre novidade de vida enquanto estivermos neste mundo. Por outro lado, Jesus deixou muito claro que não vinha para abolir a Lei judaica, mas para a cumprir. Reportava-se sempre ao Antigo Testamento como fonte de verdade, assim como fazemos hoje em relação à Bíblia inteira. Ele não jogou tudo fora, muito pelo contrário: seus embates com os fariseus objetivavam restabelecer o espírito original e legítimo da Lei. Assim, Jesus também foi um conservador, afirmando o sentido correto de uma tradição que não vinha de mãos humanas, mas havia sido entregue aos homens pelo próprio Deus.
A questão central, como o leitor já deve ter percebido, não é a postura conservadora ou a postura revolucionária em si, mas a boa triagem do que se deve conservar e do que se deve abolir - um equilíbrio que deve ser mantido tanto no nível individual quanto no da sociedade, já que tal equilíbrio é responsável pelo progresso. Não se consegue muito na vida apegando-se demais ao passado, sem critério algum; muito menos projetando tudo para o futuro, sem o devido apreço por aquilo que funciona adequadamente há gerações.
Tendo dito isso, passo a considerar o sentido moderno e contextualizado no mundo ocidental dos termos "conservador" e "revolucionário". Afinal, palavras e conceitos não são unívocos, mas ganham sentidos específicos de acordo com cada tempo e cultura. Assim, há certo consenso em torno dos termos "conservador" e "revolucionário" hoje quando usados como "termos técnicos", ou seja, por gente que entende minimamente de política.
Esse sentido, moderno e contextualizado, obviamente tem história, e sua história se confunde com a do próprio cristianismo ocidental. Através da graça comum de Deus, o Ocidente passou a moldar-se pela ampla influência da igreja cristã, desde os tempos do primeiro imperador cristão, Constantino (272-337), dando um fim aos aspectos mais cruéis dos costumes romanos. Esse processo gerou aos poucos um consenso cultural em torno de valores legitimamente bíblicos, tais como: a apreciação incondicional pela vida humana independentemente de status social; o amor como mais alto ideal; o amor pelos inimigos; a importância da interioridade; a inviolabilidade da consciência; o cuidado com os mais fragilizados da sociedade (pobres, estrangeiros, órfãos e viúvas); a valorização da mulher e da criança, e muitos outros. Se você abre sua Bíblia, encontra nela esses valores e concorda com eles de imediato, como se respondesse "é óbvio" à Palavra de Deus, não se engane: foram necessários séculos para que você chegasse a esse estado. A graça comum de Deus gerou consensos na cultura e você, leitor, como ser social, também é fruto desses consensos.
No século XIX, Karl Marx (1818-1883) definiu toda a realidade em torno do conceito de luta de classes. Para ele, uma sociedade igualitária seria desprovida de classes sociais, diferenças econômicas e divisão do trabalho. Ora, tal nivelamento não-natural dos indivíduos só pode ser conseguido através de um poder gigantesco que atue em duas frentes: coerção violenta (prisões arbitrárias, execuções sumárias, instituição do crime de consciência) e pressão ideológica onipresente (controle estatal da mídia e da educação). Assumido como tarefa do Estado, tamanho ideal aniquilava as vocações pessoais, as benesses merecidas por esforço, o livre pensar, a individualidade. O povo precisava deixar seus princípios mais básicos de lado e consentir com assassinato, roubo, mentira, manipulação, tudo em nome da idolatria ao Estado. Quem não se adaptasse seria suprimido - por isso os regimes comunistas e socialistas mataram tanto na antiga União Soviética, na China, e ainda matam em Cuba e na Coreia do Norte.
Nos países mais democráticos, imaginava-se que, expandindo-se o marxismo pelo mundo, o proletariado se levantaria naturalmente para lutar pela causa socialista. Tal não ocorreu, e os ideólogos da Escola de Frankfurt culparam os valores cristãos pela ausência de um espírito revolucionário espontâneo. O Deus cristão, zeloso e exclusivista, passou a ser novamente o alvo maior por parte de poderosos e aspirantes ao poder, tal como havia sido na época do Império Romano. A diferença é que, enquanto a ambição dos ditadores romanos não era totalitária, a nova ideologia coletivista demandava que essa idolatria fosse prestada de coração, substituindo por completo tanto a consciência individual inviolável perante Deus quanto os limites morais em conformidade com os dez mandamentos e os ensinamentos de Jesus. Para isso, em prol da revolução por vir, conforme concluíram esses ideólogos, a "cultura judaico-cristã" teria de ser combatida. Sob as bandeiras da modernidade, do progressismo, da juventude e do amor, as mentes revolucionárias de nosso tempo buscam solapar toda ideia do Deus cristão, negando o certo e o errado, a moral sexual, os laços familiares, a noção dos deveres. Intentam criar uma geração de pessoas vazias, mesquinhas e devassas, mais facilmente corruptíveis ou manipuláveis.
Esses são os "revolucionários" de hoje, que, além da revolução socialista propriamente dita, geralmente defendem causas relacionadas ao marxismo cultural, ou pensamento politicamente correto, aferrando-se ao feminismo, ao movimento gay, às ações afirmativas, à negação de qualquer autoridade (divina ou constituída por Deus), a projetos de descriminalização do aborto, do infanticídio (cf. Peter Singer) etc. Em contraste, os conservadores ocidentais (sempre nessa segunda acepção, mais específica) são os não-socialistas que se importam com a manutenção do substrato cristão na cultura, cujos ideais são frontalmente opostos aos anteriores. Esses sabem que a preservação dos valores cristãos que compõem a civilização judaico-cristã é fundamental para impedir a morte e a destruição de pessoas e sociedades - em um sentido literal. Sabem que, quando abençoa a cultura, o cristianismo:
- protege o indivíduo, impedindo a injustiça e a opressão máxima, inclusive a estatal (pois estamos todos igualmente debaixo de autoridade divina e a ela respondemos);
- protege os laços familiares (pois milita contra o divórcio e o adultério);
- protege a mulher do abandono e da maternidade enquanto solteira (pois a ajuda a guardar-se para um homem que realmente se comprometa com ela);
- protege a criança no ventre e fora do ventre (pois abomina o aborto, o infanticídio e os abusos sexuais).
Esses são aspectos concernentes à graça comum. Mas sabemos que o cristianismo ultrapassa em muito os benefícios para esta vida, iniciando-se com a morte do velho homem e o renascimento espiritual em Cristo. Assim, caso sejam cristãos verdadeiramente convertidos, os conservadores conseguirão escapar ao moralismo raivoso e infrutífero que por vezes os caracteriza, salgando e iluminando a terra, ao mesmo tempo em que apontarão para a necessidade de conservar, sem tradicionalismos vãos, mas de modo vívido e atento, todas as bênçãos advindas da graça comum de Deus para a sociedade, através da infusão da Bíblia na cultura. E é por amor que o farão.
É claro que, na prática, o espectro de variações é enorme. Há os conservadores naturais, pouco afeitos a mudanças, e os revolucionários naturais, muitas vezes "rebeldes sem causa". No âmbito político, além de conservadores e revolucionários, há os liberais, que defendem o Estado mínimo mas, presas de um economicismo que é quase a outra face da moeda marxista, não se importam com o fim dos valores cristãos na cultura; nos EUA, há os "neocons", menos apegados ao cristianismo. Mas atenção: no Brasil, "direita" é coronelismo e militarismo; nunca houve um verdadeiro conservadorismo histórico em nosso país. Existem esquerdistas moderados, não totalitários, mas são bichos raros na América Latina, continente rico de vitimizações e antigos complexos de colônia, onde se espera que tudo venha do governo. O Brasil, infelizmente, tende à esquerda "deixe que o governo faça por você". Entre os cristãos, além dos conservadores convictos, há muitos conservadores inconscientes que simpatizam de longe com a esquerda somente pela "causa social". Conheço alguns deles e, quando encontro abertura, procuro ajudá-los a compreenderem melhor sua posição. E há muitos esquerdistas cristãos que tentam, sem sucesso, preservar a ideologia, rejeitando o relativismo moral que lhe é inerente e adotando apenas o amor aos pobres e o sonho de uma sociedade igualitária. O problema é que, ao sancionarem regimes como o de Cuba ou demonstrarem indiferença diante das matanças comunistas, aderem ao relativismo moral inescapavelmente (em outras questões também, via de regra - e quanto mais socialistas, mais tenderão a confundir revolução com Reino de Deus).
Ainda uma nota sobre Francis Schaeffer. Quando o grande apologista escreveu isto,
A maior injustiça que se pode pedir a um jovem é pedir que ele seja conservador. O cristianismo não é conservador, mas revolucionário. Ser conservador é não entender o principal, pois o conservadorismo significa permanecer na corrente do status quo, e isso não mais nos pertence
espero que tenha ficado claro agora, com meu artigo, que ele se referia ao sentido universal de "conservador", e não ao sentido moderno, político. Na política, Schaeffer era indiscutivelmente conservador, ou seja, não comungava de modo algum com os ideais esquerdistas. Se você não leu o suficiente de sua obra para constatar isso, fique atento, pois pretendo escrever mais sobre o tema "Schaeffer conservador" no futuro. Se tiver pressa, porém, leia O grande desastre evangélico e Como viveremos, e depois venha falar comigo nos comentários.
Por fim, uma observação pessoal. É no sentido político que me considero conservadora, e não no sentido amplo. Nunca deixei de ter coragem para mudar, e quem me conhece há muitos anos sabe disso. Aliás, minhas inclinações naturais sempre foram progressistas em vários aspectos, mas foi Deus que me ensinou a abandonar os deslimites tão daninhos incentivados hoje pela cultura e a abraçar Seus limites protetores. Glória a Ele por isto!
09 dezembro 2012
Onde está a contracultura?
Estamos no mundo mas não somos do mundo. Somos o sal da terra, a luz do mundo. São palavras de Jesus sobre nós. Os cristãos são chamados por Ele para ser contracultura. “Eles não são do mundo, como eu também não sou” (Jo 17.14). Isto significa que lutamos pela pureza: dentro de nós, no caminho tão pessoal e bonito da santificação, pela graça de Deus; e também fora de nós, denunciando a crueldade do pecado e convidando a outros para que sigam o mesmo caminho, escorados de igual modo na graça de Deus. Quando o fazemos fora de nós, confrontamos não só os incrédulos, para que se convertam, mas também os próprios crentes, para que deixem determinados pecados e se santifiquem, desatando os laços com outros (falsos) doadores de identidade – bens materiais, aparência, ideologias, saberes, profissões, condição social etc. Nossa identidade realmente última deve ser Cristo em todas as esferas da vida.
Quando o cristão adere inadvertidamente ao culto a um ídolo
mundano, incorporando ao cristianismo elementos espúrios, esse chamado de
Cristo tende a se tornar inócuo. Afinal, se nossa identidade é partilhada entre
Cristo e ídolos, não nos diferenciamos do mundo o suficiente para salgá-lo. E o
sal que não salga “só presta para ser pisado pelos homens” (Mt 5.13). Esse
culto ambíguo e informe recebe um nome na filosofia reformada: “síntese”. E há
muito mais sínteses do que conseguimos identificar, certamente: como dizia
Calvino, o coração é uma incansável fábrica de ídolos.
No blog, e também no livro, uma das sínteses mais presentes
em minha denúncia do pecado é a que mistura cristianismo com esquerdismo.
Dediquei longo tempo ao estudo do esquerdismo em suas variadas formas –
soviético, chinês, cubano, politicamente correto – e ainda pretendo fazê-lo
muito mais. Porém, sabendo que o pecado nos empurra para extremos que apenas
parecem opostos, mas são análogos, tenho ocupado minha mente hoje com a síntese
que indiferencia cristianismo e conservadorismo – ou, de modo mais específico,
cristianismo e luta contra o esquerdismo (ou luta cultural). Encerro a ambas as
sínteses – com esquerdismo e com conservadorismo – sob a expressão “politização
da fé”.
O que ocorre quando o cristianismo se dilui na politização
da fé? A luta contra o pecado se torna predominantemente exterior, quando na
verdade é primordialmente interior – ou seja, sempre se inicia com a
identificação dos pecados íntimos, seguindo-se com arrependimento, perdão e
cura diante de Deus. De fato, esse autoexame é uma condição sine qua non para o exame adequado dos
pecados exteriores, conforme enfatizou Jesus em Lucas 6.41-42. Se não
conhecemos nem nossos próprios pecados, como enxergaremos o pecado alheio?
Em Letters of Francis
A. Schaeffer [Cartas de Francis A. Schaeffer], o grande apologista apresenta
um referencial para que a importância da interioridade na vida cristã seja
preservada, representado por um esquema onde aparecem três círculos
concêntricos:
O círculo da apologética se correlaciona com “a aplicação da
teologia à incredulidade” (John Frame), ou seja, com a luta da verdade contra a
mentira que reside no coração humano (a começar pelo coração do próprio
apologista: não esquecer Lucas 6.41-42). O das doutrinas diz respeito à
afirmação positiva da fé cristã. E o interior é de onde fluem “os rios de água
viva”, onde ocorre a conversão, onde se dá o relacionamento pessoal da alma
individual com Deus . Sem o interior, nenhum dos outros dois pode constituir um
cristianismo legitimamente bíblico. Sem o interior, de fato, não pode haver um
salgar efetivo, pois somente nos diferenciamos do mundo à medida que nos
deixamos transformar por Cristo.
Para Schaeffer, e também para mim, não há alternativa a não
ser pedir a graça de Deus para que cada um desses círculos esteja em seu devido
lugar na nossa vida. Porque somos pecadores, nossa tendência sempre será nos
afastar de Deus para manter nossos pecados intactos (Jo 3.19). Então, para
disfarçar esse afastamento, tenderemos a substituir a vida interior com Deus
pela luta exterior com as pessoas, as ideologias, os pais, os professores, o
“sistema”, achando que servimos a Deus com isso, sem perceber o quanto estamos
secos por dentro. É quando o empunhar das armas toma o lugar da novidade de vida em Cristo. Se você
acredita ter caído nessa armadilha, talvez ajude lembrar que estamos
soldados neste mundo, mas nossa verdadeira natureza é de adoradores: amar a
Deus e aos irmãos é o que faremos por toda a eternidade.
É precisamente nessa inversão – que suprime a primazia da
vida interior e a substitui pela luta cultural – que eu identifico o cruzamento
entre esquerdismo e conservadorismo como sínteses com o cristianismo. A única
diferença é que não creio ser possível, para o cristão, aderir ao esquerdismo
sem realizar sínteses, enquanto o conservadorismo, por ser a posição mais
natural biblicamente, pode ser adotado sem corromper o cerne da fé. Porém, isto
não significa que o cristão conservador deva se sentir imune ao mecanismo da
inversão – e de fato, nesses tempos em que (finalmente!) as posições
conservadoras “saem do armário” e se mostram à luz do dia, vários exemplos
desse mecanismo já podem ser percebidos. Ainda tratarei mais disso aqui.
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