Nessa segunda parte da palestra, tratei de alguns conceitos da obra de René Girard (autor que é figurinha frequente no blog), conceitos que podem nos ajudar a compreender melhor nossa época. Autor católico pouco ortodoxo, com muita simpatia pelo protestantismo, Girard – talvez eu não tenha enfatizado o suficiente neste espaço – não pode ser lido sem reservas com relação à teologia. Em geral, sua teologia é confusa, com distorções por vezes bastante sérias. Porém, quando trata da antropologia cristã, ele é excelente, com intuições fantásticas sobre o espírito da contemporaneidade. O primeiro conceito que sempre exploro é o do bode expiatório, fenômeno estudado por ele em diversas sociedades que consiste no uso dos sacrifícios humanos como uma forma de purgar o mal dessas sociedades. Ele descobriu que muitas formas de organização social através dos tempos, desde as mais primitivas até as mais complexas, sempre apresentam esse processo: tribos escolhem arbitrariamente uma pessoa dentre o povo para encarnar o mal que é preciso combater; essa pessoa é morta e durante algum tempo a paz reina na comunidade. Uma das características mais importantes do mecanismo do bode expiatório é: o eleito para ser morto jamais tem uma culpa real. Ele não cometeu crime algum, mas uma determinada sociedade é levada a ver o Mal em determinada pessoa por motivos variados. Por exemplo, até hoje, aqui no Brasil, entre alguns índios da Amazônia, as crianças que nascem com defeitos congênitos são mortas, porque se acredita que aquilo é um sinal de malignidade, e que os espíritos vão atormentar a tribo caso aquela criança não seja morta. (Falei sobre isso aqui.) Esse é uma das expressões do mecanismo, que é sempre cruel.
Mas o mecanismo está presente também na nossa “avançada” civilização. Porque não nos livramos de tais loucuras com o progresso tecnológico, mas isto depende da cosmovisão religiosa de cada época. E, mesmo em uma época como a nossa, em que as pessoas mais intelectualizadas desprezam a religião e muitos não acreditam em Deus, existe uma visão sobre o bem e o mal que domina a sociedade. Embora a teologia de Girard seja confusa, sua consciência do pecado original é certeira. Ele afirmou o seguinte:
Crer na bondade inata do homem, fonte perpétua de desilusões, leva sempre à caça do bode expiatório.
Como cristãos, nós sabemos que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3.23). Ninguém entre nós é bom. Por isso, na conversão ao cristianismo, a primeira ilusão a ser desfeita é a da bondade inata do ser humano, e a fé sempre se inicia com o arrependimento dos nossos pecados. No entanto, o não-convertido costuma naturalmente acreditar na bondade inata do homem, ao mesmo tempo em que nutre uma visão muito pouco profunda do mal. Ele crê que somente alguns dentro da sociedade são maus e, como tem dificuldades para enxergar o mal dentro de si – e geralmente se guia pela lógica “não roubo, não mato, portanto sou bom” - , o mal só pode estar fora, nos outros. Então, a solução para o mal na sociedade passará necessariamente pela escolha de um bode expiatório: alguém que encarna o mal de toda a sociedade, alguém que é sempre inocente daquele mal específico. Girard afirma que o mecanismo do bode expiatório é sempre inconsciente: a sociedade, em um estado de cegueira extrema, não consegue perceber a inocência dos sacrificados, exatamente como as tribos indígenas não conseguem perceber a inocência das crianças doentes que são mortas. (Isso será ampliado com mais exemplos nas partes seguintes.)
E onde a antropologia de Girard dá as mãos ao cristiansimo? O sacrifício de Cristo é a morte do único ser inocente de todo mal que passou por esta terra. Somente Cristo poderia, como o único justo, morrer pelos pecados de toda a humanidade. A perversão inerente ao mecanismo do bode expiatório consiste na crença de que o escolhido para o sacrifício é de fato o ser que porta o mal, enquanto os sacrificadores são bons. Girard enfatiza que o mecanismo é insaciável: sempre surgem novos conflitos no seio da sociedade que “precisarão” de novos sacrifícios para ser aplacados. Já a Bíblia nos informa que, inocente, Cristo morreu de uma só vez por todos os nossos pecados reais: o inocente morre pelos culpados. Segue-se que o cristão pode enxergar, mais que qualquer outra pessoa, a crueldade dos processos de sacrifício do bode expiatório, alertando para a sede de sangue dos sacrificadores e para a inutilidade desse tipo de sacrifício, pois somente Jesus tem o poder de levar embora nossos pecados e matar todo mal, inclusive matar nossa morte, na cruz. Que você possa meditar nessas coisas neste domingo de Páscoa!
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Não deixe de ler o excelente texto de André Venâncio sobre a missão de Cristo, com muitas referências bíblicas, respondendo à pergunta de um amigo descrente. E aproveite para mostrar o texto nesta Páscoa aos não-cristãos que você conhece. Infinitamente melhor que oferecer chocolates! ;-)