Fui criada lendo e ouvindo falar de uma época antiga, no Brasil, em que considerava-se normal que os principais pensadores e autores trocassem farpas argumentativas na mídia, deliciando-se em escrever e publicar um para o outro, um contra as idéias do outro. Sou uma "filha intelectual" dessa época - de Nelson Rodrigues, Carlos Lacerda e Monteiro Lobato para trás - em que os brasileiros tinham respeito suficiente pelo debate teórico para não deixá-lo morrer quando iniciasse, e respeito suficiente também pelo voluntário a debatedor, para que não se ficasse falando sozinho. Mesmo com toda a exaltação decorrente do choque de mentalidades, o público acompanhava com o mesmo prazer tanto o esmero argumentativo com que se conduziam os diálogos, quanto a mordacidade e a exaltação que os acompanhavam – e que, dependendo do esprit de jeu de cada um, resultavam em eternas hostilidades ou eternas admirações.
Hoje é diferente; hoje, a "nova moralidade" não se importa com nada que esteja fora da agenda politicamente correta, pouco afeita à lógica e à verdade. Nossa época dá de ombros para a clareza e a delimitação fina entre as diversas idéias. É um tempo confuso, de aglomeração mental: todos gravitam em torno dos mesmos assuntos e, com a mesma linguagem, transferem artificialmente para arremedos de debate uma cosmovisão planificada, absoluta, por trás de um pretenso e alardeado “pluralismo”. No fim das contas, trata-se de um mal-disfarçado horror à discordância, vício tão onipresente que ninguém reclama dele. Pois eu reclamo. Onde estão os debatedores, onde estão os reais adversários teóricos, onde está a velha cordialidade em meio às diferenças racionais? Procurem em congressos universitários, em mesas-redondas dos meios de comunicação, em reuniões políticas. Se encontrarem, não deixem de me avisar, pois são artigos raros.
Com muito mais freqüência, em vez da franca hostilidade intelectual casada (e não oposta) a um respeito pela pessoa, encontramos reações de desdém e punição à voz dissonante. Quem se recusa a participar da exaltação coletiva de cosmovisões interpostas e vocabulários eternamente conciliados acaba sendo deixado no vácuo, transformando-se em um pária, ausente de seminários, livros, rádios, jornais. Basta incomodar um pouquinho, nem é preciso enunciar grandes verdades ou elaborar potentes argumentações anti-status quo.
Da década de setenta para cá, mesmo depois que a esquerda liberada seguiu a estratégia gramsciana de "preencher espaços" na educação e na mídia, o brasileiro ainda treme de revolta à lembrança do finado e pouco cordato poderio militar, sem perceber que tem sido preparado para receber de bom grado uma ditadura mansa que dessa vez - oh paradoxo! - clama o amor para solidificar-se. Nesse novo regime, concede-se a poucos não só o privilégio da opinião pública, mas o da hiperssensibilidade: membros do partido-governo (prontos para disparar processos na justiça à menor menção negativa de seus sacrossantos nomes), defensores do aborto (que não podem mais ser chamados de "abortistas"), gays (praticamente intocáveis se aprovado o projeto da homofobia), professores esquerdistas que ensinam Che Guevara em vez de sociologia, geografia, matemática. Do outro lado, longe do abrigo nuclear estatal, estão os religiosos, os direitistas e os conservadores, escolhidos como os costas-de-aço da nova sociedade politicamente correta do Amorrrr.